Há vários anos escrevi o texto abaixo.
Italo Calvino preserva a memória do pai no trecho autobiográfico O caminho de San Giovanni, em livro do mesmo nome. O velho, cuja idade parecia permanentemente a mesma, entre os sessenta e os setenta anos, tinha rígidos hábitos de camponês num cotidiano entregue a afazeres nos quais não poupava forças, "apenas tempo". De certa forma, quando Calvino traça o perfil do pai, enfatizando que, para ele, as palavras "deviam servir como confirmação das coisas e como sinal de posse", de certo modo me leva a recordar não meu pai, mas o meu sogro. Para este, a palavra significava a coisa visível e palpável. Aquilo que acaso não estivesse dentro dessa conformação não merecia ser discutido nem levado a sério. Outra crônica memorialística do escritor fala do tempo em que ele, adolescente, frequentava cinemas em San Remo. Eram aqueles antigos filmes norte-americanos em preto e branco. Mais do que discorrer sobre os filmes, ele diz de suas sensações ao sair do sol para ingressar nas salas escuras e, depois, ao sair das salas escuras para a luminosidade do dia. O contato com a sequência de tons provocava um corte brusco em seu cotidiano, o que era ainda mais aguçado pelas emoções despertas no decorrer dos filmes, de cujos atores ele nos dá algumas definições: Clark Gable representava uma certa brutalidade "alegrada pela fanfarrice"; Gary Cooper, um sangue-frio filtrado pela ironia; James Stewart, um introvertido que vence a própria timidez e Spencer Tracy, em seu entender, um modelo de homem aberto. Como Calvino, eu também assisti a muitos filmes da época a que ele se refere e recordo algumas fisionomias: Charlie Chan, o solerte detetive chinês; Charles Laughton, muito bom no papel de advogado e, depois, no papel do Corcunda de Notre Dame; Boris Karloff, em suas atuações de terror e Fred Astaire, leve, quase etéreo em seus passes de dança com Ginger Rogers. Mas lembro outros filmes que talvez não tenham passado pela cabeça de Calvino: os de faroestes com Rock Lane e as fitas com Durango Kid. Desde aquela época – meados da década de 40 e início dos anos 50 – o cinema americano se distinguia do cinema francês, italiano e de outros países porque sempre se caracterizou por uma marca de nascença: a preocupação sempre foi a de divertir e não a de fazer refletir. Claro que há numerosas e ótimas exceções de que lembro alguns exemplos: Gato em teto de zinco quente, Sindicato de ladrões, Um homem tinha 2 m de altura e por aí afora. O cinema, com o componente social firmemente engajado, nunca foi o seu forte, o que é natural em um país refestelado nos frutos de sua extraordinária riqueza e na obsessão por invadir as terras dos outros.
Fonte: Estadão
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