Ocupar de forma ordenada e revitalizar áreas antes consideradas nobres nos centros das cidades brasileiras, e que hoje vivem franco processo de degradação, ocupadas muitas vezes pelo crime e pela marginalidade, por omissão do poder público. Esse é o desafio enfrentado pelas prefeituras, em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador. Muitos exemplos bem-sucedidos inspiram os prefeitos e os legisladores brasileiros, como o de Barcelona, na Espanha, cuja zona portuária, antes abandonada, passou por uma profunda revitalização, por ocasião dos Jogos Olímpicos de 1992, permanecendo como legado para a sociedade mesmo após as competições. Encontrar modelos que sirvam para o Brasil é outro desafio dos administradores locais.
Em São Paulo, o modelo adotado está provocando grande polêmica. Nova Luz é o nome do projeto que, de acordo com a Secretaria das Subprefeituras, envolve grandevolume de obras e investimentos, concebido para promover a revitalização de uma parte quase esquecida do centro de São Paulo, localizada entre as avenidas Rio Branco, Duque de Caxias, Mauá, Cásper Líbero e Ipiranga e a Praça Alfredo Issa. Embora abandonada pelas sucessivas administrações públicas, a região abriga um acervo arquitetônico valioso, e instalações importantes como a centenária estação ferroviária da Luz, a Pinacoteca do Estádio e o Museu da Língua Portuguesa, entre outras. Tamanho abandono fez com que a região fosse apelidada de Cracolândia, numa referência ao comércioe consumo do crack e outras drogas.
Apesar da reação contrária dos comerciantes do bairro da Luz, a Câmara Municipal de São Paulo aprovou os projetos de lei que regulamentaram um instrumento inédito de recuperação urbana. Inédito e polêmico. Trata-se da concessão urbanística com participação da iniciativa privada. Para os representantes do comércio local, o projeto facilitará uma espécie de "leilão" da cidade pela iniciativa privada. A Associação dos Comerciantes do Bairro da Santa Ifigênia (ACSI) é uma das entidades que se posicionam contra a concessão urbanística, do jeito que foi estruturada. "O projeto é inconstitucional, entre outras coisas. Com a desculpa de que se trata de ação de interesse público, está-se transferindo para empresas privadas o direito de desapropriar e de explorar comercialmente imóveis da região", alerta o diretor da ACSI, Paulo Garcia.
De acordo com ele, a entidade vem tentando barrar o projeto: "Como a via de negociação política mostrou-se totalmente ineficaz, tanto que os vereadores aprovaram o projeto de lei, estamos entrando com ações coletivas e individuais na Justiça, inclusive a de inconstitucionalidade, para buscar salvaguardar os interesses e a sobrevivência dos comerciantes que, tradicionalmente, atuam na região da Santa Ifigênia".
Calcula-se que cerca de cinco mil comerciantes de produtos eletroeletrônicos estejam estabelecidos na área, o que responde pela geração de aproximadamente 50 mil empregos, diretos ou indiretos.
Com a aprovação pelo legislativo municipal, a prefeitura poderá implantar o modelo de recuperação do espaço urbano em outras regiões deterioradas da cidade, sempre com a participação da iniciativa privada, desde que, para cada projeto, a proposta tenha quorum qualificado, ou seja, aprovação de no mínimo 33 dos 55 vereadores.

O projeto

Como parte inicial do Projeto Nova Luz, a partir de março de 2005, a prefeitura realizou, em ação conjunta com outros órgãos e instituições públicas, diversas megaoperações de fiscalização que identificaram, autuaram e interditaram um grande número de empresas clandestinas e ilegais.
Ao mesmo tempo, a prefeitura desenvolveu um programa de incentivos fiscais para empresas e organizações que se instalassem na região, com o objetivo de ocupar definitivamente o centro, procurando reverter a situação de abandono e impedir a continuidade de sua degradação.
As empresas que se alinharam com a proposta municipal, e que foram habilitadas para isso, terão isenção de 50% do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) e do Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) e até 60% de desconto no Imposto sobre Serviços (ISS), por um período de cinco anos, a partir da comprovação de investimentos na região. Das 34 empresas inscritas no projeto, 23 foram habilitadas para ter o direito aos incentivos e duas já estão realizando seus empreendimentos no local. As aprovadas são empresas de sistemas (12), call centers (3), publicidade (1), cultural (1), gráfica (1) e investidores imobiliários (5).
Com isso, a prefeitura espera que, em apenas três anos, a área envolvida pelo Projeto Nova Luz já apresente as mudanças esperadas, com significativos sinais de recuperação e revitalização. A expectativa é que sejam investidos mais de R$ 750 milhões e gerados quase 26 mil empregos.
Através de concessões urbanísticas, segundo informa a Secretaria das Subprefeituras, a prefeitura está passando para a iniciativa privada, por meio de licitação, o poder de desapropriar a área. A empresa vencedora ganha o direito de negociar os terrenos, desde que execute algumas obras como contrapartida, definidas por projeto urbanístico.
A sede da Guarda Civil Metropolitana (GCM), como parte do projeto, já foi instalada na região, na rua General Couto de Magalhães. A Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU) receberá da prefeitura, como doação, os terrenos cujos imóveis foram desapropriados e demolidos, onde deverá construir conjuntos habitacionais.
A requalificação urbana das ruas do centro, proposta pela prefeitura, prevê: troca de piso, implantação de projeto paisagístico (154 árvores, entre ipê

s rosa e pau-ferro, serão plantadas), requalificação da iluminação e, em toda extensão das ruas Santa Ifigênia e General Couto de Magalhães, alargamento das calçadas e recapeamento das vias. Na Praça Alfredo Issa, haverá requalificação da travessia de pedestre (redesenho do alinhamento viário) e recapeamento.
As obras de reforma de 16 ruas comerciais, localizadas na região, segundo a prefeitura, tiveram início em fevereiro último e têm prazo de 15 meses para a conclusão, com investimentos previstos de cerca de R$ 14 milhões.
O projeto envolve um perímetro de cerca de 218 mil m² (ou 23 quadras), incluindo as seguintes ruas e avenidas: Duque de Caxias, Mauá, Santa Ifigênia, Cásper Líbero, General Couto de Magalhães, Rua dos Protestantes, Praça Alfredo Issa e Largo General Osório, Coronel Batista da Luz, Beneficência Portuguesa, trechos da Ipiranga, Seminário, Gusmões, Triunfo, Vitória e Washington Luís. Empresas que já estão habilitadas para se instalar na Nova Luz: IBM Brasil, Microsoft Informática, Audatex Brasil, Bravo Telecomunicações, BRQ Soluções de Informática, Digisign, Pyxisinfo Tecnologia, Magna Sistemas, Magna Web, Mercado Eletrônico, Meta Serviços em Informática, E-Safetransfers, Atento, TNL Contax, TMS Call Center, Fess’Kobbi, Instituto Moreira Salles, Klar Indústria e Comércio de Eletro-eletrônico, Bracor, BR Properties, DMF Construtora, Klar e Partifib.

Especulação ou revitalização

A prefeitura alega que o modelo de concessão urbanística não deveria causar tanta estranheza, pois já estava prevista no artigo 239 no Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo desde 2002. A alegação é contestada pela ACSI, pelo menos da forma como está sendo colocada em prática. Garcia afirma que o plano foi equivocadamente interpretado, dando margem ao surgimento do que se pode chamar de "exploração imobiliária especulativa por parte de empresas privadas".
O prefeito Gilberto Kassab afirma que esse projeto vai gerar empregos, recuperar o centro de São Paulo, trazer de volta à cidade o sonho da restauração e da modernidade: "Estarei empenhado pessoalmente coordenando as ações. Vou fazer com esse projeto o mesmo que fiz com o da Cidade Limpa, com a minha presença diária à frente das operações".
A segurança pública, segundo ele, também será intensificada para combater o crime na região. "Nosso objetivo não é apenas construir empreendimentos, mas também mostrar que temos respeito pelas pessoas, oferecendo tratamento de saúde aos que necessitam (dependentes químicos) e mais segurança para as pessoas que aqui trabalham e vivem", finaliza o prefeito.
Porém, apesar das "boas intenções" o projeto é contestado também em relação à destinação dada aos moradores de rua, traficantes, viciados em drogas e prostitutas que se instalaramna região.
Os críticos do Projeto Nova Luz afirmam que as ações de recuperação da região estão apenas deslocando toda essa gente de um local para outro. Efetivamente, até o momento, isso é o que se pode ver na cidade. Grupos de viciados e moradores de rua saem da região abrangida pelo Projeto Nova Luz e se transferem para outras áreas circunvizinhas. Falta, no entender de alguns especialistas e da própria população, o desenvolvimento paralelo de programas que também atendam e recuperem essas pessoas que estão à mercê de traficantes e criminosos.
A secretaria se defende, dizendo que esse deslocamento deve ser encarado como normal e que só a continuidade, o aprofundamento e a expansão do projeto, aliados à criação de novas iniciativas, poderão favorecer o surgimento de uma solução definitiva para os problemas apontados. Para que isso se concretize, segundo o órgão municipal, a prefeitura conta com a parceria de outras instituições e da iniciativa privada, que estão empenhadas na revitalização da área atendida pelo projeto Nova Luz.


Fonte: Estadão