Nildo Carlos Oliveira

Apesar do alerta de especialistas, a expansão urbana prossegue a qualquer custo e risco, impermeabilizando cidades, sufocando rios, córregos e lagoas,
e se agravando com as mudanças climáticas

O tema proposto para um encontro em São Paulo (SP), de especialistas nas áreas da engenharia e da geologia – Mudanças climáticas e enchentes: deslizamentos de encostas e colapso de estruturas – extrapolou os limites possíveis e derivou para o campo da responsabilidade pública e do papel que aqueles segmentos do conhecimento humano devem exercer para prevenir tragédias como as que ocorreram recentemente em São Paulo, Rio de Janeiro, Niterói e em outras regiões brasileiras.

O encontro, organizado pela revista O Empreiteiro e pela Totvs, teve a presença do engenheiro Francis Bogossian, presidente do Clube de Engenharia do Rio de Janeiro. Ele interveio enfatizando que há duas maneiras de se cuidar das encostas para prevenir deslizamentos: o tratamento passivo ou preventivo e o tratamento ativo. No primeiro caso, suavizando-as antes de ocupá-las, protegendo-as contra as erosões externas e internas e executando drenagem superficial ou profunda. No segundo caso, desenvolvendo ações de contenção após os escorregamentos ou quando contatado que eles estariam prestes a acontecer.

O Rio, que se urbanizou nos limites das encostas e invariavelmente escalando-as, aprendeu com as tragédias. E, hoje, segundo Francis, conta com o sistema Alerta-Rio, que tem mapeado diversas áreas de risco e dispõe de rede de pluviômetros capazes de prever condições para isso. "Mesmo assim", reconhece o engenheiro, "o poder público não tem sido capaz de acompanhar a enorme velocidade de crescimento da ocupação desordenada das várias encostas cariocas. Por conta disso, novas áreas de risco surgem nas comunidades de baixa renda, instaladas nos morros".

Desde 2005, a Associação Brasileira de Mecânica dos Solos (ABMS), o Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura (Crea-RJ), o Clube de Engenharia, a Associação Brasileira de Geologia de Engenharia e Ambiental e a Associação dos Engenheiros e Arquitetos de Angra dos Reis, vêm propondo ao governo fluminense a criação de um órgão, nos moldes da Geo-Rio, para prevenir acidentes de encostas no Estado.

Proposta, com o mesmo fim, foi levada ao ministro Márcio Fortes, das Cidades, mostrando a urgência de procedimento desse tipo para prevenir tragédias nos municípios brasileiros com áreas montanhosas. Mas, conforme diz Francis Bogossian, o ministro não deu, até aqui, qualquer resposta aos órgãos empenhados naquela ação.

Bogossian lembra que, ao longo dos anos, o termo "remoção de favelas" foi visto como politicamente incorreto. Sem meios para oferecer opção melhor às famílias de baixa renda, os prefeitos fecharam os olhos às invasões de áreas públicas e privadas. Resultado: nos morros, a vegetação acabou substituída por construções irregulares. "Foi preciso que acontecessem mais mortes, como em Angra e, depois, no Rio, em Niterói (Morro do Bumba) e em São Gonçalo, para que se pudesse voltar a falar em remoção de famílias nas áreas de risco".

Ele acha que, diante dos acontecimentos que estão à vista e na lembrança de todos, "chegou a hora de mudar". Mas, assim como não se pode cortar uma árvore sem o consentimento de um órgão ambiental, não se deveria construir em áreas de encostas sem a exigência de um estudo geotécnico. Por isso, "urge a criação de um organismo estadual – ou mesmo federal – no formato da Geo-Rio".

Em seu entendimento, o programa Minha casa, minha vida, do governo federal, pode ser uma saída, uma vez que traz, em seu contexto, a retomada de financiamento imobiliário.

Uma coisa, no entanto, precisa ficar clara. Programa habitacional do governo federal para a baixa renda não pode, jamais, ser compreendido como uma concessão. Quando foi criado, em 1966, o FGTS, além de sinalizar com a garantia da proteção ao trabalhador regido pelo Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), previa a aplicação de recursos em programas sociais, tais como habitação popular, saneamento básico e infraestrutura urbana. Se, com o passar dos anos, não cumpriu essa finalidade, é porque contrariou, no fundamental, a legislação que o criou.

As cidades se impermeabilizaram

O geólogo Álvaro Rodrigues dos Santos mostrou como a cidade de São Paulo cresceu asfixiando a estrutura física original e, depois, foi se impermeabilizando, ilimitadamente. E, não parou por aí o processo que a estrangula: eliminou a possibilidade de vazão de rios e córregos e deixou que entulhos da construção civil e lixo de toda ordem contribuíssem para o impacto das enchentes.

Ampliando o leque de suas observações, ele lembrou que, a exemplo das enchentes, das quedas de barreiras nas estradas e dos acidentes, cada vez mais comuns, em obras de engenharia, "tudo continua se passando como se definitiva e estupidamente decidíssemos não considerar que nossas ações sobre os terrenos naturais interferem com uma natureza geológica viva, que tem história, leis, comportamentos e processos dinâmicos próprios".

Álvaro garantiu que, do ponto de vista técnico, há soluções para os problemas ocasionados pelos fenômenos naturais. Disse que a cidade deveria optar por sistemas adequados de impermeabilização em suas ruas, praças e jardins. Contudo, no caso das tragédias urbanas, como a que ocorreu recentemente em Niterói, "não há como se pretender resolver questão dessa ordem somente através da abordagem técnica. Há necessidade de programas habitacionais mais ousados, que ofereçam à população de baixa renda moradias próprias, na mesma faixa de custos em que ela se encontra na situação de risco geológico".

Em relação aos piscinões que têm sido adotados pela prefeitura paulistana como solução para as enchentes, disse que esta deveria ser a última providência a ser "retirada da prateleira". No fundo, eles constituem uma panacéia. E condenou a situação a que estão relegados vários piscinões, que se transformaram em focos de sujeira, de proliferação de insetos e de males para população do entorno da área em que eles têm sido construídos.

O engenheiro José Carlos Wertematti, que tem atuado no desenvolvimento e aplicação de geotêxteis e geossintéticos, expôs soluções técnicas capazes de reduzir a impermeabilização do solo urbano. Mostrou como as superfícies de cidades estão impermeabilizadas por concreto e asfalto, e como essa situação obstrui os dispositivos de microdrenagem, reduzindo, também, a capacidade dos dispositivos de macrodrenagem.

Apontou diversas soluções para esse problema: os piscinões, desde que dispostos ao longo de rios e canais; reservatórios de acumulação; construção de pequenos reservatórios de acumulação em residências unifamiliares e uso de capa asfáltica porosa na construção de novos arruamentos e até de estradas. Ele exibiu exemplos desse sistema.

Planejamento da engenharia

O engenheiro Márcio Amorim, presidente do Sindicato das Empresas de Arquitetura e Engenharia Consultiva (Sinaenco) do Rio de Janeiro, enfatizou o fato de que condições climáticas adversas sempre existiram. Apesar disso, não deve ser atribuída unicamente à inclemência da natureza – mudanças climáticas, chuvas torrenciais etc. – a responsabilidade pelas tragédias que vêm acontecendo e que implicam graves perdas de recursos materiais e humanos. Afinal de contas, não é de hoje que, no caso brasileiro, a administração pública dispõe de meios para planejar, projetar e construir obras capazes de prevenir desastres naturais. Disse que o Sinaenco conta com 18 mil empresas de arquitetura e de engenharia de projetos que podem ser acionadas pelo governo, a qualquer dia e hora, para trabalhar em favor da sociedade.

O engenheiro João Alberto Viol, presidente nacional do Sinaenco, bateu na mesma tecla. E, encerrando os debates, apontou a raiz dos problemas que tradicionalmente têm afetado o Brasil: os governos historicamente têm sido lentos na adoção de medidas preventivas. Citou até o caso da Lei 11.445/07, finalmente promulgada e que estabelece as diretrizes para uma política de saneamento básico, mas cujo marco regulatório ainda não foi regulamentado.

Ao final, um dado ficou claro: as mudanças climáticas e as chuvas torrenciais são fenômenos que continuarão a acontecer. O que o País precisa fazer é antecipar-se aos fatos, investindo em obras preventivas. E todos concordaram com um dos argumentos do geólogo Álvaro Rodrigues dos Santos: não é a natureza que deve adaptar-se aos projetos da engenharia, mas são os projetos de engenharia que precisam adaptar-se à natureza.

Fonte: Estadão