Um rio e sua história. O novo ciclo do aproveitamento do Madeira, onde serão construídas as hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau, está sendo iniciado, coincidentemente, quando Porto Velho, capital do Estado de Rondônia, completa um século de fundação. Ela nasceu no dia 4 de julho de 1907 originária da vila ferroviária de Porto Velho de Santo Antônio, antigo Porto Velho dos Militares, que proporcionou apoio logístico ao grupo de empreiteiros May, Jeckill & Randolph, responsável, naquela data, pelo começo da construção da Ferrovia do Diabo – a Madeira-Mamoré.

Testemunha das histórias da exploração do rio, tantas vezes sacrificado, e da transformação do antigo território de Rondônia em Estado, Porto Velho é colocada no circuito dos grandes interesses industriais e governamentais que movem a economia do País. Daí, a pergunta da população: Mexer novamente, e desta vez com maior profundidade, com as potencialidades do rio, será um bem ou será um mal?

Inegável a necessidade do aproveitamento das quedas de água dos rios amazônicos nos projetos hidrelétricos necessários ao desenvolvimento brasileiro. Mas a degradação dos rios do País torna compreensível a preocupação de pesquisadores – inclusive do Museu Emílio Goeldi, do Pará – quanto às medidas de proteção ambiental que devem ser adotadas antes, durante e depois de todas as etapas da construção e posterior operação das duas hidrelétricas.

Dois problemas, entre outros, continuam a ser colocados e debatidos pelos pesquisadores: com as barragens, os grandes bagres que vivem no rio, não poderiam, mais, migrar da foz até quase às cabeceiras, no Peru e na Bolívia. Em razão disso, será exigida muita criatividade dos planejadores para se atender à imposição do EIA-Rima, tendo em conta a construção de um corredor que facilite a continuidade desse caminho dos peixes. O outro problema diz respeito a uma característica própria do Madeira: ele carrega ininterruptamente sedimentos da bacia amazônica. Estes podem se acumular nos reservatórios, ensejando inundações das áreas do entorno.

O rio da resistência

O rio Madeira tem resistido, heroicamente, a todas as tentativas para degradá-lo. Os exemplos datam de meados do século passado, quando garimpeiros descobriram grandes aluviões de cassiterita (minério de estanho) em áreas de antigos seringais. A partir daí a garimpagem manual atraiu enormes contingentes de migrantes das mais diversas regiões brasileiras para Porto Velho, que adquiriu, naquela fase, a feição de uma cidade do velho Oeste.

Em 1971 o Ministério das Minas e Energia proibiu a garimpagem manual. A mecanização da lavra teve efeito devastador. No pico dessas operações chegou-se a uma produção de 4.721 t de minério de estanho. Ao final daquela década, Rondônia respondia por cerca de 70% da produção nacional. Nessa escalada, em 1989, a produção ali registrada foi da ordem de 54 mil t.

Mas a essa fase sobreveio a etapa da epopéia do ouro. Até fins de 1980 mais de 600 dragas e 450 balsas (casas flutuantes) extraíam ouro do fundo do rio. Como os processos eram rudimentares, as perdas chegavam a ser de 50%. O trabalho nas balsas era considerado muito perigoso. O mergulhador tinha de se arriscar nas águas turvas para levar o mangote de sucção ao fundo do rio, a profundidades que chegavam a 15 m. Caso fosse atingido por algum tronco de árvore, teria morte certa.

Esse ciclo de exploração predatória do Madeira gerou riqueza, mas provocou, em contrapartida, erosão nas duas margens, contaminação das águas e da cadeia alimentar pelo mercúrio, poluição ocasionada pelo despejo de óleo, rejeitos, equipamentos abandonados e sedimentação do canal navegável.

Plantas, animais, peixes e grande parte da população foram afetados. O povo de Rondônia e, em especial, a população de Porto Velho, têm razões, portanto, quando alerta contra os métodos inadequados de exploração do Madeira.

A saga da ferrovia

Outro aspecto que aumenta aquela preocupação é a experiência com a construção da Ferrovia do Diabo. A idéia da ferrovia ligando os rios Madeira, em Porto Velho, e Mamoré, em Guajará-Mirim, numa distância de 364 km, é atribuída ao general boliviano Quentin de Quevedo e ao engenheiro brasileiro João Martins da Silva Coutinho.

As obras viabilizaram-se em 1903, com a assinatura do “Tratado de Petrópolis” entre o Brasil e a Bolívia, pelo qual o País se obrigava a fazer a ferrovia “por si ou por empresa particular”. No dia 4 de julho de 1907 instalou-se em Santo Antônio – o local previsto para a implantação da hidrelétrica Santo Antônio – a empresa May, Jeckyll & Randolph, do empresário norte-americano Percival Farqhuar, que utilizou mão-de-obra brasileira e de outros países. A conclusão da obra coincidiu com a decadência do ciclo da borracha, o que prejudicou a possibilidade do retorno econômico.

Ambientalistas de Rondônia recordam que, quando da construção da Ferrovia Madeira-Mamoré, centenas de trabalhadores morreram à beira do rio, nos acampamentos e em hospitais, vítimas da malária, doença endêmica na região. A construção das duas hidrelétrica deverá concentrar, em Porto Velho, um contingente da ordem de 20 mil operários. Por isso, segundo eles, todos os cuidados do ponto de infra-estrutura de saúde precisam ser adotados, para que não se repita, em escala maior, a tragédia da construção da Ferrovia do Diabo.

Santo Antônio e Jirau são consideradas obras até convencionais, se for levada em conta a experiência brasileira nesse campo. A construção das barragens e das grandes estruturas de concreto não deverão oferecer desafio maior para as empresas que forem contratadas para fazê-la. O fato que chama a atenção é que as duas hidrelétricas abrem uma fase nova para os projetos hidrelétricos na região amazônica.

Santo Antônio e Jirau

As duas usinas hidrelétricas, que exigirão investimentos entre R$ 20 bilhões e R$ 28 bilhões, acrescentarão à capacidade instalada do país 6.450 MW. Santo Antônio contribuirá com 3.150 MW e Jirau, com 3.300 MW. Para que essa contabilidade energética se confirme, será necessária a construção de uma linha de transmissão de 2.450 km, ligando Porto Velho (RO) a Araraquara (SP), que promoverá a distribuição da energia gerada para o Centro-Oeste e o Sudeste. Essa obra, com custo estimado entre R$ 7 bilhões e R$ 9 bilhões, deverá ser licitada em junho de 2008, com previsão de conclusão até o final do segundo sem

estre de 2012.

O consórcio Furnas/Odebrecht, responsável pela elaboração dos estudos iniciais que deram sustentação à licença prévia ambiental concedida pelo Instituto Brasileira do Meio Ambiente e dos recursos Naturais Renováveis (Ibama), informa que as técnicas construtivas consideram as peculiaridades das obras e os cuidados com o meio ambiente.

O acesso à usina de Santo Antônio, cujo eixo situa-se nas proximidades da Ilha do Presídio, será feito a partir da estrada que leva à área onde se encontram o cemitério, a igreja de Santo Antônio e a Companhia de Água e Esgoto de Rondônia (CAERD). Outro acesso, um pouco mais longo, é o que passa por fora da cidade e é considerado o melhor para a fase construtiva. Ele começa no km 11,5 da BR-364, não pavimentado, segue em direção às pedreiras Rondomar e ao 5o BEC, com cerca de 8 km, entre a BR-364 e o eixo do barramento.

O aproveitamento hidrelétrico de Jirau ficará na cachoeira homônima, no rio Madeira, a 136 km medidos ao longo do rio, à montante de Porto Velho. O acesso ao local é feito a partir da capital do estado, pela BR-364, trecho Porto Velho-Abunã. No km 126, há um acesso não pavimentado, à direita, que conduz ao local das obras distante cerca de 6 km da BR-364.

Santo Antônio será constituída por uma estrutura de vertedouro na margem direita, sobre a Ilha do Presídio, e uma estrutura de casa de força e de tomada de água na margem esquerda, com 44 unidades geradoras. Na calha do rio, entre as duas estruturas, será construída barragem de enrocamento com núcleo argiloso.

Jirau terá estruturas de tomada de água e casa de força, na margem direita, com 44 unidades geradoras, e de vertedouro, na margem esquerda, com 21 vãos. Na calha do rio, entre as duas estruturas, será construída uma barragem de enrocamento com núcleo argiloso.

Montagem e instalação do canteiro de obras

Como as obras se desenvolverão simultaneamente nas duas margens, até o desvio do rio, quando então as estruturas do vertedouro, de tomada de água e da casa de força já deverão estar em estágio que permita tal operação, foram previstos canteiros nas duas frentes de obra, com alojamentos independentes. Cada canteiro contará com instalações industriais, oficinas de manutenção, depósitos, escritórios, alojamentos, etc.

O processo de escavação será o tradicional em obras de hidrelétricas. Em função dos grandes volumes envolvidos e do prazo previsto para a construção, serão utilizados equipamentos de grande porte. Para a escavação comum, serão utilizados escavadeiras e caminhões basculantes para o transporte do material até o seu destino final – ensecadeiras, bota-fora, barragem, etc. Para a escavação em rocha, serão empregadas perfuratrizes hidráulicas no desmonte e escavadeiras para a carga do material em caminhões basculantes, que transportarão o material.

Processo de lançamento de materiais

Terra: Uma vez depositada no seu destino previsto, por meio de basculantes, a terra será espalhada por trator de esteira e nivelada em camadas por meio de montoniveladora. Para a compactação, serão usados rolos compactadores ou outro tipo de equipamento, dependendo da finalidade da estrutura.

Concreto: O concreto será produzido em central e transportado até o local de lançamento por meio de caminhões (dumpcrete) ou caminhões betoneira. O lançamento será realizado por meio de equipamentos adequados a cada tipo de estrutura, podendo ser bomba, guindaste torre, guindaste móvel ou outro.

Estruturas de concreto

As estruturas serão convencionais. O vertedouro será composto por ogiva em perfil Creager, calha de restituição, pilares intermediários aos vãos de 20 m. Sobre os pilares será construída uma ponte permanente. Haverá uma ponte à jusante da estrutura, com 15 m de largura e ao longo do vertedouro, que será a ponte de serviço, a ser utilizada durante as obras.

A casa de força e a tomada de água terá estrutura única, para abrigar todos os equipamentos previstos. À montante, serão instaladas grades de proteção e comportas ensecadeiras. À jusante, serão instaladas comportas de emergência e ensecadeira.

Nessa estrutura serão instalados a turbina bulbo (veja ilustração) e o gerador. A casa de força abrigará também as galerias elétricas e mecânicas, bem como as subestações e transformadores elevadores.

Equipamentos

Durante as obras, diversos equipamentos serão empregados para atender a cada tipo de serviço. No início, serão utilizados equipamentos específicos para o desmatamento. Logo após essa operação, e em paralelo, estarão os equipamentos de escavação e de aterro. Assim que for liberada área para as estruturas de concreto, serão utilizados equipamentos específicos para essa atividade (centrais de concreto, caminhões dumpcrete e betoneiras, guindastes, bombas, etc).

Condições básicas de logística

A cidade de Porto Velho possui aeroporto com capacidade para receber aeronaves de grande porte, com linhas regulares para as principais capitais brasileiras e também para outros países. A capital do Estado de Rondônia é ligada pelas rodovias pavimentadas BR-364, a Cuiabá (MT), distante cerca de 1.270 km, e BR-319, a Manaus (AM), a aproximadamente 880 km, sendo que a travessia do rio Madeira é feita por balsa. A rodovia BR-364 ultrapassa Porto Velho, seguindo o curso do rio Madeira para montante até Rio Branco, no Acre. A travessia do rio também é feita por balsa, em Abunã.

Porto Velho também é servida pela hidrovia do rio Madeira, que possibilita sua ligação com Manaus e Porto de Itacoatiara, no rio Amazonas, que tem capacidade para atender a navios oceânicos. Esse aspecto é importante para o empreendimento das usinas de Santo Antônio e de Jirau, uma vez que a hidrovia possibilita o transporte, com menor custo, de equipamentos, máquinas e materiais para a obra. Com essas vias de acesso, Porto velho apresenta logística satisfatória para dar suprimento e apoio às obras. A mão de obra para a execução das usinas deverá ser, preferencialmente, a disponível na região. Prevê-se o treinamento de trabalhadores, sempre que possível utilizando recursos locais.

Fonte: Estadão