A hidrelétrica de Paulo Afonso, entre Alagoas e Bahia, primeira projetada pela engenharia nacional, encontrou soluções criativas para conter as águas do rio São Francisco

Por muitos anos as obras hidrelétricas foram dominadas pelos estrangeiros. Havia certa resistência em acreditar que a engenharia nacional seria capaz de levar a diante obra de tal envergadura. Mas isso começou a mudar como o projeto da hidrelétrica de Paulo Afonso, concebido pelo engenheiro Otávio Marcondes Ferraz. Paulo Afonso é considerada a primeira usina construída pela engenharia nacional, que enfrentou logos de cara um desafio: instalar uma usina com casa de força subterrânea, algo então inédito no País.
A história de Paulo Afonso começa ainda no século XIX quando Henrique Hafeld desenvolveu os primeiros estudos sobre bacia do São Francisco. João José de Monte foi o primeiro a obter a concessão para explorar a cachoeira de Paulo Afonso, mas não conseguiu iniciar a construção dentro do prazo exigido e, em 1911, o industrial cearense Delmiro Gouveia obteve direitos da usina, inaugurada dois anos depois com o nome de Angiquinho.
A hidrelétrica possuía três turbinas, de 250, 500 e 750 HP e gerava energia para acionar as máquinas da fábrica de linhas e fios de Delmiro Gouveia e fornecer luz à vila operária de Pedra, cidade do sertão alagoano que atualmente tem o nome tem o nome do industrial. O empresário pretendia estender o fornecimento de energia para todo o sertão nordestino, mas, em 1917, foi assassinado e o projeto esquecido. Em homenagem ao empresário, que pela primeira vez aproveitou o potencial hidráulico da região, Angiquinho posteriormente foi rebatizada e recebeu o nome de Delmiro Gouveia.
Na década de 20, um grupo de engenheiros do Serviço Geológico e Mineralógico do Brasil voltou a estudar o potencial hidráulico do rio São Francisco na região de Paulo Afonso. Entre eles, estava o engenheiro recém-formado Antônio José Alves de Souza, que muitos anos depois seria o primeiro presidente da Companhia Hidro Elétrica do São Francisco (Chesf). Mas muito tempo se passou até que outra obra fosse iniciada nas cachoeiras de Paulo Afonso. Foi apenas na década de 40, com Apolônio Sales à frente do Ministério da Agricultura, que o projeto de construir uma hidrelétrica de maior capacidade no local ressurgiu, visando a impulsionar o desenvolvimento da região com a expansão no Núcleo Agroindustrial de Petrolândia, em Pernambuco.
Em 1945 nascia a Chesf, que passou a existir de fato apenas em 1948, quando foi realizada a assembléia geral da constituição da empresa. E, nesse mesmo ano, foi iniciada a construção da hidrelétrica de Paulo Afonso, com o projeto elaborado pelo engenheiro Otávio Marcondes Ferraz, diretor técnico da Chesf. Hoje (2002) seria apenas uma operação rotineira, mas nos anos 40 era uma verdadeira revolução.
O professor Milton Vargas trabalhava, na época, no Instituto de Pesquisa Tecnológicas (IPT) de São Paulo e foi com o engenheiro geológico Ernesto Picheler analisar o sítio da usina. Como Vargas é da área de solos e o terreno era basicamente formado por rochas, a maior parte do trabalho ficou mesmo a cargo de Picheler. Vargas lembra que este desenvolveu em Paulo Afonso um dos primeiros ensaios do mundo para determinar a natureza da rocha, pois na época existiam apenas algumas experiências desse tipo realizadas na Itália. O ensaio consistia em abrir um pequeno túnel na rocha, injetar água e observar as deformações.
Vargas se recorda também que o engenheiro Asa White Kenney Billings, vice-presidente e responsável pelas obras da Light, estava convicto de que não havia a possibilidade de construir uma hidrelétrica de tal porte fora dos domínios da empresa. Na época, Paulo Afonso era uma verdadeira ousadia da engenharia nacional e, principalmente, de Marcondes Ferraz.
A variação no nível de água no canyon do São Francisco representava um problema para a engenharia resolver. Se a usina fosse instalada em um ponto muito alto, a salvo das enchentes, haveria a perda do potencial de geração de muitos quilowatts. Por outro lado, colocá-la em um ponto mais baixo, para aproveitar melhor o potencial hidráulico, demandava a construção de escudos envolvendo a usina. A solução encontrada foi construir a casa de força subterrânea, escavando na rocha uma caverna com 60 m de cumprimento, 16 m de largura e 30 m de altura, capaz de acomodar três unidades geradoras de 60 MW. Todos os projetos, a construção e a montagem foram feitos pela equipe da Chesf. Os equipamentos foram fornecidos pela Westinghouse e a Morrison-Knudsen ficou encarregada de instalar duas linhas de transmissão para Salvador e Recife e as quatro primeiras subestações.
Desviar o rio não foi uma tarefa fácil e demandou boa dose de criatividade. A velocidade e a profundidade das águas impediam o emprego de estacas-prancha cravadas, formando uma ensecadeira, processo clássico para desvio do rio. Marcondes Ferraz então resolveu inovar e construir um caixão flutuante, em forma de navio, com 18 m de comprimento, 12 m de altura e 350 t. Com base em modelos reduzidos e testes em laboratório desenvolvidos pelo engenheiro André Jules Balança, o “navio” foi construído na França e durante o período de enchentes foi afundado no rio, criando assim uma área de águas calmas onde as pranchas flexíveis poderiam ser colocadas.
Mas essa solução, apesar de criativa, não resolveu totalmente o problema, pois ainda havia a segunda fase de desvio do rio e não era possível afundar o outro “navio” porque o primeiro já provocara o aumento da força das águas. Marcondes Ferraz então resolveu usar estruturas enroscadas, mergulhadas no leito do rio. Mas novamente a audácia do engenheiro despertou desconfiança. O representante do Banco Mundial, que financiava parte do projeto, não via como tal solução poderia funcionar e enviou um relatório a Washington, nos Estados Unidos, desaprovando totalmente a idéia. Marcondes Ferraz não se deixou impressionar. Embarcou para Washington para explicar a segunda etapa do desvio do rio e convenceu os diretores do banco de sua viabilidade. O rio foi fechado em setembro de 1954 e, em janeiro de 1955, o presidente João Café Filho inaugurou a usina, com a primeira das três turbinas operando. As outras duas unidades geradoras foram finalizadas e, em setembro de 1955, a usina operava com seus 180 MW.
Imaginando o crescimento da demanda por energia, Marcondes Ferraz planejou ampliar Paulo Afonso em etapas. Com isso, na seqüência de Paulo Afonso I, já em 1955, começaram as obras de Paulo Afonso II, ao lado da anterior e aproveitando a mesma bacia, que incluiu a construção de mais uma tomada d’água e a casa de máquinas igualmente subterrânea, abrigando seis unidades geradoras, sendo três de 75 MW e as demais de 85 MW. A primeira unidade entrou em operação no final de 1961 e a usina II foi totalmente concluída em 1968.
As obras de Paulo Afonso III foram iniciadas em 1966, abrigando quatro unidades geradoras em sua casa de máquinas subterrânea, cada uma com 216 MW. As duas primeiras unidades geradoras entraram em funcionamento em 1971 e as demais dois anos depois. Mas a construção dessa usina também demandou soluções diferenciadas, porque a implantação da nova hidrelétrica implicava na demolição de uma barragem provisória com 108 m de comprimento. A proximidade com a casa de máquinas de Paulo Afonso I e II, as linhas de alta tensão, o reservatório e a cidade à jusante transformou-se em um problema para a engenharia solucionar. A barragem provisória era uma sólida estrutura de concreto com 5.700m³ e qualquer onda de choque nas denotações chegaria facilmente à tomada d’água da primeira usina. Além disso, os entulhos deveriam ser bem fracionados, para cair em uma vala previamente escavada, e o volume de água liberado após a primeira explosão não poderia fraturar a barragem.
A questão foi estudada por engenheiros da Chesf e da Atlas Copco, que mostrou os planos, desenhos e projetos à sua matriz sueca. Os cálculos de explosivos e o carregamento foram submetidos à Nitro Nobel, também sueca, e ambos foram aprovados sem objeções. A perfuração foi feita em costura, vertical e paralela, em cada extremidade da barragem, primeiramente com uma linha de furos de 2” que depois foram alargadas para 4”. Depois da perfuração em costura foi possível executar outra etapa do projeto: a inundação do vazio entre a usina III e a barragem, originando uma espécie de “almofada de água”, capaz de absorver e dissipar qualquer onda de choque. Em seguida, foi iniciada a execução de cinco furos, realizada por um ROC 601, espaçadas entre si por 1,50 m, com inclinações calculadas para que o explosivo fracionasse totalmente o material. Os primeiros fogos foram feitos em setembro de 1971 e o sismógrafo colocado na primeira usina não indicou nenhum abalo. A satisfação com serviço executado sem falhas foi tanta que peões, técnicos e engenheiros comemoraram pulando no reservatório e nadando através da primeira brecha.
O engenheiro Luiz Fernando Motta Nascimento, ex-diretor da Chesf, conta que a empresa foi a uma escola para engenharia brasileira no setor de energia. Nascimento chegou à região de Paulo Afonso em 1946, porque seu pai, mestre eletricista, trabalhou na construção da usina piloto, com capacidade de 2 MW, construída para gerar energia para o canteiro de obras de Paulo Afonso. Na construção de Paulo Afonso I Nascimento ainda era estudante e acompanhou a obra como estagiário. Mas a partir de Paulo Afonso II, teve a satisfação de poder dividir o canteiro com seu pai.
Nascimento conta que, devido à grande variação na vazão do rio São Francisco, nem sempre havia água suficiente para acionar as três hidrelétricas. Essa situação foi em parte solucionada com a construção da usina hidrelétrica de Três Marias, da Cemig. Mas, abertas as comportas, a água demora de 20 a 25 dias para chegar até Paulo Afonso, atrapalhando a operação do sistema. Foi construída então uma barragem, distante cerca de 4 km da primeira usina, batizada inicialmente de Paulo Afonso IV e com capacidade para armazenar I bilhão de m³ de água, com capacidade instalada de 440 MW. Segundo Nascimento, as empresas do Sul não gostaram, porque dessa forma estava criado o maior complexo do Brasil na época. Paulo Afonso IV então foi rebatizada de Moxotó, um rio pequeno da região. Mas este nome também não foi definitivo. Em 1983, como parte das comemorações dos 35 anos de criação da Chesf, a usina recebeu o nome de Apolônio Sales.
Quase na mesma época foi iniciada a obra de uma usina que viria a ser, esta sim, Paulo Afonso IV. A usina surgiu por conta de um questionamento sobre vazão decamilenar, que segundo a Chesf seria de 26 mil m³/s, mas para o Banco Mundial era de 33 mil m³/s. Nascimento conta que depois de muitas discussões a respeito, a Chesf decidiu construir um canal pelo lado direito do rio com capacidade de escoar 7 mil m³/s, encerrando a questão e originando assim Paulo Afonso IV.
Graças a uma modificação no processo construtivo previsto originalmente no projeto, substituindo o revestimento de concreto da abóbada por atirantamento profundo e utilizando também tirantes para chumbar as vigas de ponte rolante às paredes da caverna, que foram executadas ao nível do solo, acompanhando as escavações, foi possível acelerar as obras da usina. A solução dada para as vigas da ponte rolante, também utilizada em Paulo Afonso III, foi considerada tão eficiente que o Banco Mundial solicitou uma cópia do projeto executivo, visando a empregá-lo em outras usinas financiadas pelo banco.

 

 

Abóboda diferente
O projeto original foi modificado para que a escavação da abóboda fosse feita ao mesmo tempo em que a consolidação definitiva, com tirante de 9 m. Com isso, quando terminava a escavação, a abóbada já estava pronta, enquanto pela seqüência construtiva anterior seria preciso concluir toda a caverna para depois executar a abóbada em concreto armado. Entre a frente de denotação e a injeção dos tirantes era mantida sempre uma distância de 20 m e foi necessário desenvolver um controle rigoroso dos fogos para evitar que as vibrações não viessem a interferir na fixação do tirante. Para isso, o IPT de São Paulo desenvolveu um plano de escavação considerando as características de cada rocha, limitando as seções me determinados pontos. A escavação foi feita respeitando as seqüência, ou seja: denotação, furação, colocação de tirantes, injeção e concreto. Concluído o concreto projetado, foi feita a furação para drenagem.
Aproveitar a própria rocha como elemento estrutural para sustentação da massa, pode ficar instável acima do vazio escavado, ainda era um técnica relativamente nova na época, ou seja, segunda metade da década de 70. Apesar disso, com exceção de um ponto, a escavação da caverna não encontrou problemas sérios. O local que exigiu cuidados especiais foi um trecho onde a caverna era cortada por uma falha que atingiu várias frentes da escavação. Mais no final da obra, uma alteração da rocha em dois túneis de fuga provocou algumas dificuldades. Foi constatado que ocorria uma sobrecarga no trecho restante, mas como isso não foi previsto no início da obra, a escavação começou pelo lado oposto e não pela área mais sensível. O problema foi superado com a diminuição do ritmo de escavação e a aplicação de um sistema de atirantamento reforçado, além da execução de pilares de concreto para envolver os pilares de rocha em dois pontos.

O projeto incluiu ainda a exec
ução de diques, que na verdade é uma barragem zoneada, com núcleo de argila e zonas de filtros finos e grossos e de enroscamento à montante e à jusante. A diversidade de material foi o que tornou sua execução mais complexa. Para o núcleo de argila, a Cetenco trazia o material de uma jazida situada a 25 km de distância e muito rasa, com apenas 60 cm de profundidade, fazendo com que o produto fosse misturado com muito material orgânico. O volume total de argila nos diques chegou a cerca de 800 mil m³. Além da argila, os diques utilizaram material vindo da escavação do canal de ligação de Moxotó com a bacia de acumulação de Paulo Afonso IV, que passava por peneira vibratória.

A primeira turbina de Paulo Afonso IV, com 410 MW de potência, foi inaugurada no final de 1979 e as demais, totalizando 2.460 MW de capacidade instalada, entraram em operação em etapas, até que a usina estivesse totalmente concluída, em 1983. Na época era a maior usina da Chesf e só perdeu essa posição em 1997, quando as últimas unidades geradoras da hidrelétrica de Xingó foram acionadas, totalizando 3 mil MW de potência instalada.
O projeto de engenharia da usina é da Themag, mas a Sofrelco fez os projetos dos diques. Já as obras foram iniciadas em 1973 pela equipe das Chesf e dois anos depois transferidas à Cetenco. A montagem mecânica, com exceção do vertedouro, foi realizada pela Tenengue e os condutos forçados ficaram sob responsabilidade da Mecânica Pesada e da Semi. A Ródio executou os serviços de sondagem e atirantamento da caverna. (L.M.)
 

Fonte: Padrão