Mais do que uma maravilha tecnológica, o projeto de um trem de alta velocidade (TAV) deve visar à transformação socioeconômica da região atendida, em um horizonte de décadas, tendo como elemento crucial sua integração obrigatória com o transporte urbano de massa das cidades beneficiadas, seja ele metrô, trem ou VLT. Assim é o modelo da França

Joseph Young

Afrente afunilada do TGV (Train à Grande Vitesse, trem de alta velocidade, em francês) impressiona pelo movimento que ameaça desencadear, mesmo estando o trem parado. A cabine do operador, com assento central, mais parece o cockpit de um avião. Na nova versão duplex, de dois andares, do TGV, o operador trabalha com dois pequenos joysticks e não existe a direção em formato circular. As duas cortinas no para-brisa podem ser baixadas – para bloquear o sol –, mas também poderiam perfeitamente permanecer assim durante a viagem, porque todas as informações de velocidade, frenagem, proximidade de estações e ingresso na seção de alta velocidade são transmitidas eletronicamente via painéis digitais, sem a necessidade de visualização externa pelo operador.
A 320 km/h, o olho humano já não consegue captar visualmente nem a sinalização instalada ao longo da ferrovia. O operador precisa cumprir essas instruções recebidas via sistema eletrônico; caso contrário, o controle de tráfego para o trem de forma automática. Com a frenagem normal, são necessários cerca de 10 km para zerar o velocímetro; em emergência, essa distância se reduz a cerca de 2 km.
Esta é a filosofia de operação da TGV francesa. A SNCF, administradora da rede, credita a esta abordagem a segurança de 100% do TGV nos seus 30 anos de serviço, completados em 2011, numa rede que já supera 2 mil km, ligando a França a diversos países da Europa.
Outro fator importante do seu sucesso ao longo desse tempo é a implementação do trem de alta velocidade por etapas, usando as vias existentes, onde o TGV trafega à velocidade dos trens tradicionais até ingressar no trecho projetado para velocidades de até 320 km/h.

Na cabine do TGV

O TGV sai da estação como um trem tradicional e, durante certo tempo e distância, avança na velocidade-padrão. A primeira impressão que se tem é a falta de novidades. Mas, na medida em que os postes de sinalização começam a desaparecer com velocidade crescente e os dormentes vão desenhando uma linha contínua e borrada, a sensação de velocidade aumenta. Mas o que lembra ao passageiro que o trem já passou de 200 km/h e se aproxima do limite prático de 320 km/h é este fato: quando a ferrovia se emparelha com uma rodovia e o TGV deixa os automóveis para trás.
Nesse momento, o operador do TGV conta, ao jornalista da revista O Empreiteiro que viaja na cabine de comando, que acaba de ver um cervo dentro da linha segregada por cercas de 2 m de altura e, imediatamente, comunica à central de operação a localização do animal na via. Ele comenta irônico que caçadores profissionais serão acionados para abater o animal, que representa um risco sério de acidente, mas que os funcionários da SNCF lotados na central regional ficariam felizes com a carne, que seria dividida entre eles.
A tecnologia embarcada no trem impressiona. Um exemplo: apenas durante 40% do tempo de viagem a locomotiva fornece a tração; nos 60% restantes a inércia se encarrega de movimentar o trem. O TGV consome apenas o equivalente a 1 euro de energia por km rodado.
Outro chamariz usual do trem de alta velocidade é o desejo “político” de se ter o trem mais rápido do mundo no seu próprio país, como a Rússia, que planeja um TAV que “voa” a 400 km/h. Entretanto, o diretor de projetos internacionais da SNCF, Hervé Le Caignec, que a revista O Empreiteiro entrevistou na sede da empresa estatal, explica que ao passar de 250 km/h o custo de manutenção da via permanente sobe exponencialmente.
Num trecho de 500 km, esse ganho de tempo pode chegar a 10 minutos ou menos numa viagem de uma hora e meia, por exemplo, o que não chega a fazer muita diferença. Entretanto, o custo de manutenção obrigaria a operadora a praticar uma tarifa bem mais cara, o que afastaria usuários potenciais mesmo em viagens a trabalho. A Alemanha limita a velocidade dos seus trens a 250 km/h porque a distância entre as estações é, em média, menor do que na França. A China, que começou operando seus TAVs a mais de 300 km/h, já reduziu sua velocidade média em vista dos custos de manutenção das linhas e de dois acidentes graves registrados.

Cria-se uma nova cultura de mobilidade

Hervé Le Caignec aponta que a inserção de um TAV numa região depende, de forma crucial, da integração do modal com o transporte urbano das cidades que serve, porque o passageiro quer sair da sua casa para chegar ao trabalho, ou vice-versa, sem congestionamentos típicos de centros urbanos. Assim, o TAV seria inútil se, para chegar à estação ou sair dela, o passageiro precisasse recorrer a transporte público precário, já que essa demora no acesso e no trecho final da viagem faria o usuário perder todo o tempo que ganhou no trem rápido — caracterizando, assim, um total contrassenso.
Assim, o TAV não pode ser encarado como uma proposta política de impacto ou uma vitrine de alta tecnologia por razões de prestígio, porque pode levar mais de uma década ou duas para alcançar o equilíbrio entre o custo de operação e manutenção e a receita das passagens, e mais tempo ainda para começar a amortizar parte do seu custo de construção. Após 30 anos de operação, a TGV francesa conseguiu alcançar esse estágio apenas no trecho Paris-Lyon, o mais movimentado da rede de alta velocidade, onde a receita já paga parte do custo de construção da linha.
O TAV pode criar uma nova cultura de mobilidade na região que serve. Isso aconteceu em Reims, a capital da região produtora do champanhe e onde os reis franceses eram coroados, cuja população soma cerca de 185 mil habitantes. O trem rápido chegou há poucos anos e a municipalidade construiu em 2010 uma rede de bondes para complementar o transporte público, que já conta com ônibus e táxis, desde a estação central. A curta viagem de 46 minutos de Paris estimulou a abertura de universidades e indústrias na cidade e animou trabalhadores parisienses a morar em Reims, onde o custo de vida é mais barato do que na capital e o espaço urbano é mais amplo, verde, e menos poluído. Cresceu também o turismo na cidade, atraído pelas caves de champanhe e a possibilidade de ir e voltar no mesmo dia de Paris.
O
movimento anual do TGV atinge 3 milhões de passageiros. Cerca de 60 empresas de fora se instalaram em Reims com a chegada do trem rápido, criando mais de 3 mil empregos. De 1999 a 2006, as novas licenças para construção imobiliária na cidade revelam um crescimento médio de 16% ao ano, nesse período.

Conta salgada

A geração anterior do trem TGV custou € 20 milhões. O modelo novo duplex, de dois andares, já custa € 30 milhões. Mas a infraestrutura da via permanente pode custar de € 1 milhão a € 2 milhões por km, dependendo das condições locais.
A distância ideal para um TAV vai de 400 km a 800 km, que poderia ser coberto de avião em até uma hora ou pouco mais — circunstância em que o trem rápido consegue geralmente capturar mais de 50% da demanda, com a vantagem de poder operar em qualquer condição climática. No trecho Paris- Stuttgart, Alemanha, o TGV começou atendendo 3% da demanda e hoje já atingiu 65%. Entre Paris e Bruxelas, há pouquíssimos voos por dia porque a maioria prefere o TGV.
Como o trem é rápido e os tempos de viagem, curtos, não há frequências noturnas. Esse período está sendo testado para o transporte de correio e encomendas postais; e o teste de transporte de cargas já ocorre no trecho entre o aeroporto Charles de Gaulle, em Paris, e a estação St. Pancras, em Londres, atravessando o Channel Tunnel — o túnel no canal da Mancha. Os operadores do TGV têm geralmente vinte anos de experiência na função e passam por três anos de treinamento no trem rápido.
Uma política de tarifas flexíveis, parecida com as de linhas aéreas e hotéis, com taxas reduzidas quando são reservadas com meses de antecedência, é crucial para massificar o uso do TAV. Na França, quando o passageiro compra a passagem com 90 dias de antecedência, custa, por exemplo, 15 euros no trecho Paris-Reims. Esta mesma passagem nos horários e dias de pico, como sexta-feira, pode custar 150 euros, se comprada na véspera. As tarifas sociais possibilitaram que 80% da população francesa já tenha utilizado o TGV, que transporta 120 milhões de passageiros/ano.

Fonte: Padrão