Com a polêmica das biografias ainda em efervescência, me lembrei da vida de um sanitarista. Antes de abordar esse assunto, é importante dizer, situando essa questão das biografias, que toda censura – absolutamente todo tipo de censura – é uma iniquidade. Nenhuma censura se sustenta. E se torna ainda mais iníqua, quando se trata de utilizá-la para a preservação da privacidade de figuras medíocres.

Isto posto, reativo a memória. E me surge límpida, apesar das camadas sobrepostas do tempo, a figura singular, e possivelmente até aqui única, de um herói que nasceu em Campos, estado do Rio, no dia 14 de julho de 1864. Que tempos, aqueles. Poderia dizer, a exemplo do conselheiro Acácio, que tudo era colonial. Mas foi ainda sob o signo daqueles tempos que um herói nacional se agigantou. Embora ele haja falecido com apenas 65 anos, exatamente no dia 10 de março de 1929, fez mais pelo Brasil e pela sua sociedade do que muitas dessas personalidades políticas, que outra coisa não fazem senão se agarrar, com unhas e dentes, às mamas apetitosas do Estado.

O herói em questão, que coloco em contraponto aos responsáveis pelo festival de demagogia que assola o País, é o engenheiro sanitarista Francisco Rodrigues Saturnino de Brito. Não confundir com Francisco Rodrigues Saturnino de Brito Filho, que continuou a obra do pai, a bordo do Escritório Saturnino de Brito (ESB), considerado uma escola de engenharia sanitária, lamentavelmente fechado em 1978.

Saturnino de Brito começou sua vida profissional em meados de 1880, talvez um pouco depois disso, como engenheiro ferroviário. Por aí se vê quanto a cultura ferroviária já era algo significativo na vida brasileira. E podemos avaliar quanto se perdeu, do ponto de vista dessa cultura, quando, por um ato de políticos de mentalidade anã, se decidiu romper com ela, quando seria absolutamente possível inseri-la num contexto mais amplo, com outros modais, sem sacrifício de uma experiência que desde o Brasil Colônia vinha se consolidando.

Como engenheiro ferroviário, Saturnino de Brito rodou pelo País afora montando trilhos. Construiu a Estrada de Ferro Leopoldina, em Minas Gerais; a Estrada de Ferro de Tamandaré (PE), e outras ferrovias mais. Depois de assimilar o que significavam os valores do levantamento topográfico para obras de engenharia, parou para refletir. E concluiu: a ferrovia era mesmo da maior importância para um país-continente. Mas, por todos os locais por onde passava, viu os estragos que falta de saneamento básico deixava nas populações que encontrava no meio do caminho. Quem sabe já não vislumbrasse, por antecipação, a figura escaveirada e preguiçosamente aniquilada do Jeca Tatu? Porque a falta de saneamento molda essa figura de brasileiro colocado à margem do progresso e de qualquer possibilidade de evolução.

Foi a partir dessa visão, formulada com base na constatação de que no Brasil não havia saneamento, que ele deu um giro de 180 graus em sua vida profissional e derivou para o campo da engenharia sanitária. Republicano e positivista (apoiou Floriano Peixoto na luta em favor da República), resolveu dedicar-se por inteiro a obras de saneamento. E, nesse campo, utilizou a experiência do instrumental para levantamentos topográficos.

Ele não entendia o planejamento de cidades – ou para o desenvolvimento delas – sem, antes, estudar criteriosa e pormenorizadamente, as nascentes dos rios, o regime das bacias hidrográficas, as condições de insalubridade local e a racional organização dos espaços urbanos. Com essa visão de sanitarista, elaborou os planos de saneamento de Petrópolis (RJ) e Paraíba do Sul (RJ); de Santos (SP) e do abastecimento de Campinas (SP); do saneamento do Recife (PE) e de Curitiba (PR); da cidade do Rio de Janeiro, sobretudo da Lagoa Rodrigo de Freitas; fez o projeto da regularização do rio Tietê em São Paulo e integrou a comissão que construiu a cidade de Belo Horizonte.

Saturnino de Brito é o pioneiro maior da engenharia sanitária brasileira. Um herói que se voltou, de corpo e alma, para o País. E que se faz, hoje, merecedor de uma biografia atualizada, capaz de recuperar o seu tempo para o nosso tempo. Sem a censura dos que se julgam donos da verdade.

Fonte: Revista O Empreiteiro