Entre 30 de outubro de 2007, dia da confirmação do Brasil como sede da Copa do Mundo de 2014, e 31 de maio de 2009, data do anúncio das 12 cidades-sede, praticamente nada saiu do campo das intenções no projeto para receber o torneio. Foi um ano e meio quase perdido, um contrassenso diante da infinidade de melhorias que o País precisará implementar. Restam cinco anos, tempo ainda suficiente para executar as obras necessárias. Desde que com planejamento, sem deixar tudo para a última hora, expediente que dá margem a dispensa de licitação e estouro no orçamento. O alerta é do engenheiro civil José Roberto Bernasconi, presidente do Sindicato Nacional das Empresas de Arquitetura e Engenharia Consultiva (Sinaenco).

O sindicato é hoje um dos órgãos que melhor conhecem as condições de infraestrutura das subsedes da Copa do Mundo. Em dois anos, o Sinaenco esteve nas cidades concorrentes, levantou dados e promoveu debates com especialistas locais. O resultado desse trabalho foi o documento Vitrine ou Vidraça, um raio-X das capitais brasileiras, apresentado aos governantes que comandam as ações em torno do projeto Copa 2014.

Para Bernasconi, o Pan-Americano do Rio de Janeiro, em 2007, cujo orçamento inflacionou 1.000% (de R$ 400 milhões para R$ 4 bilhões), deve ser visto como exemplo a não ser seguido. Os gastos foram altos, equipamentos esportivos construídos com dinheiro público estão subutilizados ou foram entregues à iniciativa privada a preço de banana e ganhos prometidos para a cidade ficaram apenas na promessa. “A gente tem de aproveitar essa experiência do Pan-Americano, que não foi favorável”, avisa o presidente do Sinaenco, em entrevista por telefone.
Bernasconi cobra ação rápida do poder público, para que elabore sua ordem de obras prioritárias, contrate os projetos de arquitetura e engenharia e parta em busca da verba necessária. E o início das obras, destaca, tem de ser ainda no primeiro semestre de 2010, quando faltarão três anos para a Copa das Confederações, evento teste para o Mundial. “Planejar é preciso, se fizermos as obras da Copa sem pensar, de maneira amalucada, ficaremos com uma manada de ‘elefantes brancos’. Os próximos 12 meses serão a hora da verdade”, alerta.

O POVO – O Sinaenco esteve presente em todas as capitais que concorriam a subsede da Copa do Mundo de 2014. Quais são os desafios em comum para as 12 cidades escolhidas?

José Roberto Bernasconi – Todas as cidades têm problemas a serem sanados. Inicialmente, para o futebol é necessidade básica a existência de um estádio, e hoje não temos nenhum estádio com a infraestrutura exigida pela Fifa (Federação Internacional de Futebol) para a realização de uma Copa do Mundo. Todas as cidades têm aeroportos que estão no limite do esgotamento. Além disso, os terminais portuários de passageiros, quando existem, são muito ruins. Esse é um entrave sério, principalmente porque estamos recebendo cada vez mais turistas em navios. Também haverá deslocamentos por rodovias, por isso precisaremos melhorar nossos terminais rodoviários e ferroviários. A falta de mobilidade urbana é um problema não resolvido na maioria das capitais. Vai ser preciso melhorar o transporte de massa, através de metrô e de Veículo Leve sobre Trilhos (VLT) ou sobre Pneus (VLP), assim como existe a necessidade de mais ônibus, táxis e vans. Em geral, todas as cidades apresentam problemas, em maior ou menor grau.

OP – Nas últimas Copas do Mundo, os países-sede tiveram de fazer investimentos basicamente em estádios e melhorias em mobilidade urbana, que na realidade nem eram bem um problema. No Brasil, as cidades-sede precisarão de uma extensa lista de melhorias. Vai dar tempo para ser feita toda essa “transformação” necessária nas 12 capitais em cinco anos?

Bernasconi – Tempo ainda temos. Na verdade, desperdiçamos todo o ano de 2008 e metade de 2009. Nesse período, se fez muito pouco, para sermos bondosos na avaliação. Rigorosamente, quase nada foi feito. Mas ainda temos quatro anos até a Copa das Confederações, em 2013, e cinco anos até a Copa do Mundo de 2014. É possível fazer, desde que a partir de agora não se desperdice mais tempo. Cada uma das cidades tem um rol de necessidades. Cada uma precisa colocar no papel a relação do que precisa ser feito, classificar quais são as prioridades e ver o que demanda mais tempo, para atacar o que é mais importante e o que leva mais tempo.

OP – No evento que o Sinaenco realizou em Fortaleza, vocês defenderam que, antes de uma boa obra, é necessário um bom projeto. Como estão os projetos das 12 cidades escolhidas?

Bernasconi – As propostas de estádios das cidades, por exemplo, estão sendo discutidas para serem adequadas às exigências da Fifa, para que em seguida seja feita a captação de recursos e investimentos. Em cada estádio é preciso fazer um estudo de engenharia e arquitetura, o projeto executivo. O projeto executivo define o produto, seja uma estação de metrô, estação de passageiros ou aeroporto, e aponta quanto tempo vão levar as obras e quanto vai ser o custo. Com esse projeto na mão, é só ir atrás da captação de recursos. Vai ser feito com dinheiro público ou com recurso privado?
Quem vai pôr esse dinheiro? O investidor é estrangeiro ou nacional? Com o projeto executivo na mão e os recursos garantidos, em 30 meses dá perfeitamente para construir um estádio de futebol. Portanto, nós temos esse tempo, mas temos de, nesses próximos 12 meses, pensar antes quais os equipamentos que serão construídos, buscar os recursos e, em seguida, iniciar as obras. Não adianta sair correndo e começar as obras sem planejamento, porque lá na frente vai ser necessário parar, por falta de dinheiro.

OP – O que o senhor achou do projeto cearense, anunciado pelo Governo do Estado e a Prefeitura de Fortaleza, que já delimitou os valores a serem gastos, no caso R$ 9,4 bilhões?

Bernasconi – Acho interessante, existe uma listagem adequada de coisas a serem feitas. Os cearenses podem então ficar felizes, pois já têm um rol de necessidades, um direcionamento. Ceará e Fortaleza estão bem servidos, mas é necessário começar a detalhar esses projetos de engenharia, para, se possível, até o fim deste ano, começo de 2010, ter esse quadro de intervenções e começar as construções com segurança. A pior coisa que existe na administração pública é um empreendimento ter de parar porque houve uma surpresa na obra. O Ceará foi escolhido, merecidamente, porque tem tradição no futebol, bons times, uma rivalidade grande que leva público aos estádios. Além disso, a cidade é turística, o Ceará tem atrações mil e é consagrado como um dos polos importantes do turismo no Brasil. Acho que Fortaleza e o Ceará têm uma oportunidade fantástica de melhorar em função da Copa do Mundo.

OP – Em Fortaleza, a primeira linha de metrô está em obras há 10 anos. Agora, o Governo promete, em cinco anos, concluir esta linha, fazer uma segunda que já estava previamente planejada e ainda construir uma terceira, que passará pelo aeroporto e o Castelão. Essa é promessa é factível?

Bernasconi – É factível, desde que se faça um bom projeto. Como se faz o dimensionamento de uma linha de metrô? Você vê se ela terá carregamento, se vai ter gente suficiente para utilizá-la. Depois do cálculo do número de passageiros, de como a linha será utilizada, vem o projeto de engenharia e você vê quanto custará essa obra. Com isso na mão, é só ir atrás de financiamento. As obras param, ficam dez anos em andamento, porque as licitações são feitas sem os projetos de construção completos. Começa a obra apenas com o recurso inicial. Aí, fica como obra de igreja, aquela que demora séculos para ficar pronta. Para fazer uma aplicação segura, é preciso ter os recursos na mão. Pode até não ter todo o dinheiro, mas é preciso confiança de que a cada ano haverá recursos orçamentários. A pior obra pública é aquela que começa e para, desperdiçando dinheiro público e tempo público.

OP – Foram escolhidas como subsedes cidades em que não existe grande frequência de torcedores nos estádios, como Cuiabá, Manaus e Brasília. Além disso, no Recife, os três grandes clubes já têm seus estádios. Depois da Copa, os estádios dessas cidades poderão se tornar “elefantes brancos”?

Bernasconi – Esse é um dos grandes riscos. Por isso é importante que sejam feitos planos muito consistentes. Não ter tradição esportiva é um problema, mas isso pode ser contornado se a arena esportiva tiver condições de receber eventos de outros esportes e espetáculos culturais e musicais. A Madonna fez recentemente três shows no Morumbi, quando estava previsto inicialmente apenas um, atraindo fãs de todo o Brasil. Além disso, existem lugares com tradição esportiva, mas com renda média do torcedor baixa. Então o estádio fica cheio, com 60 mil pessoas, mas a arrecadação é baixa, porque a maioria só está disposta a pagar por um ingresso de R$ 10. Isso não dará viabilidade para os estádios, pois o custo será alto.

OP – O que acontece em Salvador.

Bernasconi – Exatamente. É preciso dosar. Em Salvador, onde há um público apaixonado, mas de baixo poder aquisitivo, é preciso fazer um mix, uma equação para que determinados espetáculos tenham um ingresso mais caro, como em jogos mais importantes ou partidas da seleção. Os estádios precisam conciliar ainda outros tipos de uso. Na Olimpíada de 2012, em Londres, o estádio Olímpico, além de eventos esportivos, será usado para fim educacional. Cidades da região vão usar aquele espaço para levar grupos de estudantes. É uma alternativa para dar sustentação financeira. Será que teremos eventos suficientes para, num prazo de 30 anos, ter o retorno do investimento em um estádio da Copa do Mundo? Se não tiver resposta positiva para essa pergunta, o investidor privado não vem. O investidor privado não vai por dinheiro em uma coisa que não tenha retorno.

OP – Existe algum risco de que esses estádios sejam entregues para a iniciativa privada após a Copa, como aconteceu com o estádio João Havelange, que foi construído por R$ 360 milhões e depois cedido para o Botafogo por um aluguel de R$ 36 mil por mês?

Bernasconi – Risco existe. A gente tem de aproveitar essa experiência do Pan-Americano, que não foi favorável. Como organização de espetáculo esportivo, o Brasil conseguiu sediar os Jogos, fez uma boa figura, ganhou várias medalhas, tudo foi feito com segurança. No ponto de vista da melhoria das condições do Rio de Janeiro, não foi feito o que deveria, como Barcelona nas Olimpíadas de 1992, e como Londres está sendo trabalhada para 2012. O que aconteceu com o Engenhão (estádio João Havelange) é um mau exemplo. Se acontecer o mesmo com os estádios da Copa do Mundo, teremos desperdiçado mais uma vez a oportunidade para fazermos a coisa certa. Por isso que nós do Sinaenco fomos de capital em capital, procuramos despertar a atenção da sociedade para mostrar que a Copa do Mundo é nossa maior oportunidade no século 21 até agora, a chance de resolvermos demandas históricas. Nossa publicação que documenta estas análises tem por título Vitrine ou Vidraça. Temos grande oportunidade, dada a visibilidade que a Copa do Mundo proporciona, de aparecer para o mundo muito bem. Seria uma grande vitrine. Mas se não fizermos a coisa certa, vamos mostrar nossas mazelas e aí, ao invés de vitrine, entregaremos aos estrangeiros uma vidraça para que atirem pedras. Somos apaixonados por futebol, temos de aproveitar esse sentimento de união nacional para melhorar o Brasil, renovar o País e aparecer bem para o mundo. Cabe a nós, brasileiros, com seriedade e competência, aproveitar a oportunidade.

OP – O senhor acredita na promessa do Governo Federal de não gastar dinheiro da União na reforma e construção dos estádios, já que alguns governos estaduais têm relatado dificuldade para atrair a iniciativa privada?

Bernasconi – Tenho de acreditar nos ministros e no Governo Federal. Agora, eu tenho dúvida de que será possível manter essa posição até o fim. Pode acontecer que alguns governos precisem de um reforço financeiro ou mesmo banquem a obra inteiramente. O projeto de estádio de Brasília está sendo feito pelo Governo do Distrito Federal, que assumiu a empreitada. O prefeito de Cuiabá já demonstrou o mesmo esforço. Por isso tem de ser feito o planejamento, para definir se dá para encarar só com recurso público. Nos próximos dez, 12 meses, teremos a hora da verdade para muitas cidades. Vai ser a hora de dizer: “Precisamos fazer ‘tantas obras’ e temos recursos para fazer tudo, ou precisamos fazer ‘tantas obras’, mas só temos a metade da verba”. Planejar é preciso, se fizermos as obras da Copa sem pensar, de maneira amalucada, ficaremos com uma manada de elefantes brancos.

OP – O que a população pode fazer para que se evite um estouro no orçamento da Copa, assim como aconteceu com o Pan-Americano, em que estavam previstos gastos de R$ 400 milhões que, no fim, chegaram a R$ 4 bilhões?

Bernasconi – Os olhos e ouvidos da população estão na mídia. Temos de acompanhar a aplicação de recursos públicos, ver o que as autoridades estão fazendo. Nos países mais desenvolvidos, a sociedade é muito mais engajada. Então, a gente fica na dúvida se eles são mais evoluídos porque são mais bem engajados, ou se são mais engajados porque são mais evoluídos. Talvez seja um pouco de cada coisa. A mídia tem um papel muito importante: quanto mais ela publicar e chamar a atenção para os fatos, mais ela vai colaborar com o País. A sociedade, quando se mobiliza, não há deputado, não há senador, não há governador que não se mexa.

OP – Nas últimas Copas do Mundo, o presidente do Comitê Organizador era um representante escolhido pelo governo, inclusive alguns foram ex-jogadores. Em 2006, foi Franz Beckenbauer; em 1998, foi Michel Platini. O que o senhor achou de o presidente do Comitê de 2014 ser o presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), Ricardo Teixeira?

Bernasconi – Não faço nenhum juízo de valor negativo em relação ao Ricardo Teixeira. Ele é uma figura polêmica, muitos o adoram, muitos o criticam, mas teve o grande mérito de trabalhar para trazer a Copa do Mundo para o Brasil. Ao contrário de alguns críticos, não vejo nenhum mal nisso. Cobro que as coisas sejam feitas com muito critério e rigor. Tenho esperança de que o presidente da CBF, especialmente em relação aos estádios, consiga fazer com que as coisas aconteçam de forma adequada. Sobre a preparação da infraestrutura nas cidades, foi criado um comitê interministerial em Brasília, coordenado pelo ministro de Esportes (Orlando Silva). Neste momento, deposito confiança em todos os agentes. O Ricardo Teixeira foi competente, trazer a Copa do Mundo para o Brasil foi uma grande conquista.

Fonte: Estadão