Nildo Carlos Oliveira

Hoje, a bola da vez, são as obras de infraestrutura para a Copa de 2014 e para a Olimpíada de 2016. Elas seriam importantes para garantir o êxito desses eventos esportivos internacionais e poderiam constituir legado imprescindível para as cidades-sedes, uma vez que significariam melhorias viárias e rodoviárias; funcionamento de novas linhas de metrô; prolongamento de ramais ferroviários urbanos; construção de monotrilhos; ampliação de portos e aeroportos; reforma ou construção de novos equipamentos urbanos e a modernização de estádios esportivos. Estes seriam equipados com todo o aparato que a tecnologia pode disponibilizar em favor da informação rápida para qualquer canto do mundo.
Algumas destas modernas arenas esportivas, várias das quais já colocadas, por antecipação, na categoria de modelos de sustentabilidade, teriam capacidade para mais de 60 mil espectadores e estacionamentos para mais de 5 mil vagas. O conjunto dessas iniciativas se refletiria na ampliação da rede hoteleira das grandes capitais e na movimentação das economias locais.
Pois, meus amigos, apesar de tudo isso – ou talvez por conta de tudo isso – temo que tal cenário seja demasiadamente otimista e futurista para caber nos limites de nossa realidade.
Longe de mim a intenção de estraga-prazeres. Ocorre que a minha profissão me tornou um observador empedernido e talvez cético. Carlos Drummond de Andrade, que por longos anos manteve uma coluna no antigo Jornal do Brasil e se servia daquele espaço para resumir cenas intelectuais, sociais e políticas do País, se considerava um Observador no Escritório, nome que deu a um de seus livros.
Sem a pretensão de sequer aproximar-me da estatura do grande poeta, eu me considero também um observador. Mas, um observador das cenas da infraestrutura brasileira. O acompanhamento, ao longo dos anos, de obras nessa área, não me deixa ser otimista. Conquanto não coloque em dúvida a capacidade de nossa engenharia, tenho de admitir a nossa secular incapacidade de planejar a médio e a longo prazo.
O Brasil reconhecidamente sempre chega atrasado no planejamento e no projeto das obras de sua infraestrutura, mesmo daquelas que são prioritárias. As iniciativas do administrador público brasileiro, nas três instâncias de governo, invariavelmente são adotadas em cima da hora, depois que a tragédia acontece. Raramente as obras decorrem da sequência natural de um planejamento de médio e longo prazo, estruturado com a reflexão e o amadurecimento exigidos. Quase sempre as obras são iniciadas quando as coisas já não têm mais jeito e a cobrança da sociedade não pode mais ser contornada ou empurrada com a barriga.
Outra coisa: obras, quando iniciadas, precisam ter continuidade e, concluídas, precisam de manutenção. Lamentavelmente aqui no Brasil, com raras exceções, esses procedimentos são os primeiros a serem descartados, depois que os empreendimentos são entregues.
Mais do que planejamento, infraestrutura é história e uma das peças mais importantes do processo de desenvolvimento. Basta ver o currículo dos governos de Getúlio Vargas, Juscelino e, em período mais recente, dos governos militares. Eles foram salvos para a história pelas obras que conseguiram construir.
Getúlio deixou desenhada no mapa brasileiro a matriz da malha rodoviária com a qual ainda contamos até hoje. Seu governo concebeu o Plano Rodoviário Nacional, cuja sustentação se deveu à iniciativa do engenheiro Maurício Joppert, que criou o Fundo Rodoviário Nacional. Aquele plano previu 27 traçados rodoviários principais distribuídos em seis rodovias longitudinais, 15 transversais e seis ligações, totalizando, na época, perto de 36 mil km de rodovias, que receberam o símbolo BR.
Além de plano de longo prazo no segmento rodoviário, Getúlio criou a Eletrobrás, que assumiu as grandes hidrelétricas, e a Petrobras, que hoje avança em uma área impensável na fase em que foi criada: a exploração do petróleo sob a camada do pré-sal.
Juscelino industrializou o País e os governos militares procuraram ampliar a infraestrutura deixada pelos governos anteriores, sem a qual a nossa economia ficaria imobilizada no tempo. Os governos Fernando Henrique Cardoso e Lula da Silva dariam andamento a projetos que durante duas décadas e meia ficaram no fundo da gaveta da burocracia brasileira. Não fosse a potencialidade do País, que quer crescer e força esse crescimento em todas as áreas, o PAC seria letra morta.
Insisto sempre nessa tecla: o Brasil se acostumou a chegar com atraso nas iniciativas da recomposição ou construção de sua infraestrutura. Vejamos o seguinte: não fosse o apagão de 2001, o governo FHC não teria dado a partida para a construção da segunda fase da usina hidrelétrica de Tucuruí, no rio Tocantins.
Outro exemplo de atraso em obras e planejamento está aqui mesmo, em recente postura da prefeitura paulistana. Foi necessária que muita água paralisasse a capital, provocasse danos humanos irreparáveis e prejuízos materiais extremamente elevados, para que o prefeito Gilberto Kassab anunciasse, nesses dias, a possível conclusão de um plano diretor de drenagem, que, mesmo assim, só poderá representar uma solução para as enchentes na cidade, nos próximos 20 anos. Já cético em relação a obras de curto prazo, esse plano da prefeitura me leva a considerar que São Paulo definitivamente não merece aguardar mais duas décadas por uma obra que é essencial para que ela não fique submersa na época de chuvas torrenciais.
Quando me pediram para falar um pouco das obras para a Copa e para a Olimpíada no Brasil, me lembrei de Barcelona, onde se realizou a Olimpíada de 1992; de Londres, onde ocorrerá a Olimpíada do ano que vem, e também de Lisboa, onde acaso estive anos antes da Expo´98 – uma exposição internacional realizada de 22 de maio a 30 de setembro de 1998, sob o tema "Os oceanos: um patrimônio para o futuro". Gostaria de dizer que, tendo em vista aquela exposição, o governo português se programou para dotar o país, sobretudo a capital, de um conjunto de equipamentos urbanos e de melhorias nos acessos viários e rodoviários.
Naquele tempo, Portugal construiu a Ponte Vasco da Gama, necessária por causa do aumento do tráfego na ponte 25 de Abril, ex-Salazar, que fora construída em 1966. Trata-se de um conjunto viário de mais de 18 km de extensão, feito com o emprego de técnicas muito avançadas. Portugal também modernizou o metrô, construindo uma série de novas estações; construiu e ampliou rodovias e realizou muitas outras obras à semelhança do Rodoanel "Mário Covas", naturalmente dentro da escala da demanda de tráfego daquela capital e da respectiva região metropolitana.
No caso do Rodoanel aqui em São Paulo, tenho a dizer que ele começou a ser construído com cerca de quatro déca

das de atraso. O projeto é de 1970 e as obras ainda não estão concluídas.
Cito o exemplo de Lisboa apenas para mostrar que o governo português não brincou em serviço. O que ele construiu, constitui, desde aquele tempo, um precioso legado para a geração atual e para as gerações vindouras. E tudo resultou de um planejamento competente, que considerou as múltiplas interfaces do desenvolvimento do país e daquela capital, devastada no século 17 por um dos maiores terremotos já ocorrido no mundo. Cabe aqui ressaltar: a maior parte dessas obras em Portugal foi construída por empreiteiras brasileiras ou por empreiteiras portuguesas consorciadas com empresas brasileiras.
Gostaria de anotar outro fato: o Brasil – e insisto em considerar, aqui, as três instâncias de governo – não apenas chega atrasado para fazer as obras de que necessita, como adota, em relação a elas, a crônica postura de descontinuá-las, quando não, de desconstruí-las.
Mas, retomando o tema da Copa e da Olimpíada, enfatizo que as obras previstas não devem ter como justificativa apenas o calendário desses eventos esportivos. Estes devem constituir uma motivação, mas não a razão única para que obras de infraestrutura sejam realizadas.
Além do mais, temos a exata consciência de que os recursos empregados naquelas obras vão sair do bolso do contribuinte, de quem paga imposto. Se não fosse por outra razão, esta já seria suficiente para assegurar a necessidade do retorno dos investimentos em forma de legados permanentes para a sociedade.
Um estudo feito pelo Sindicato Nacional da Construção Pesada (Sinicon), considera que os preparativos para a Copa necessitam de investimentos da ordem de R$ 90 bilhões. Esse dinheiro será empregado em mobilidade urbana, obras de metrôs, na construção do sistema de veículo leve sobre trilhos, os VLTs, na readequação viária e em obras de abastecimento de água e esgotamento sanitário. Deverá haver melhorias na rede hoteleira nacional, com o aumento da disponibilidade de leitos. Os números corresponderiam à disponibilidade de 300 novos hotéis, em especial em São Paulo, Rio, Belo Horizonte, Brasília e Fortaleza.
Nesse cenário, temos por aí os exemplos de outros países, cujos governos tudo prometeram e tudo fizeram para a Copa do Mundo, na convicção de que a divulgação de potencialidades, beleza, paisagem, auto-estima popular, incremento do turismo e movimentação econômica, seria uma contrapartida à altura dos esforços para a montagem da infraestrutura capaz de garantir o êxito do evento. No fundo, nada disso aconteceu, ou aconteceu em proporções muito menores do que aquelas que foram imaginadas ou previstas. Em muitos casos, o legado que ficou foi uma batata quente nas mãos dos governos que recepcionaram o evento. A China e a África do Sul que o digam.
Apesar disso tudo, o Brasil não pode permitir, a essa altura, com o ano 2014 batendo a sua porta, que tantas expectativas criadas pela perspectiva da Copa, no campo econômico, social e sobretudo esportivo, se frustrem e virem pó, por conta de eventuais falhas de planejamento e de gestão na condução dos empreendimentos programados.
O Brasil costuma chegar sempre atrasado para construir a infraestrutura de que necessita. Quem sabe, desta vez, sob a ansiedade e a pressão da sociedade, ele chegue a tempo. Nunca é tarde para esperar, embora não tenhamos mais tempo para jogar fora. Que sejamos bons anfitriões e tenhamos uma Copa que possa superar a nossa capacidade de improvisar para continuar sobrevivendo.
*Texto de palestra realizada no auditório da Totvs – São Paulo-SP

Fonte: Estadão