Os dois arquitetos não pensaram em construir beleza; seria fácil: eles ergueram o espanto inexplicado.

Clarice Lispector, Para não esquecer, Rocco

Nildo Carlos de Oliveira

No princípio não era verbo; era o cerrado. O planalto central poderia ser, enfim, depois das previsões da Colônia e da defesa da transferência ainda no Império, o pólo que atrairia, na República, a administração do País, centrada permanentemente no litoral, para uma área fincada na zona das cabeceiras do Araguaia, do Tocantins, do São Francisco e do Paraná. Para esse local, que toca os extremos do Brasil, convergiram nos anos 50 as atenções da política, da arquitetura, do urbanismo e da engenharia brasileira. Depois, essa convergência continuaria.
Foi em abril de 1955, em Jataí, pequena localidade de Goiás, que o então candidato à presidência Juscelino Kubitschek, prometeu, desafiado por um caboclo local, cumprir a Constituição e mudar a capital da República, do Rio de Janeiro, para o planalto. Eleito – e selecionado o sítio de implantação da nova capital – ele anunciaria, no dia 2 de outubro de 1956, em uma casa de madeira antiga Fazenda do Gama, que ali construiria a futura cadeira da antiga Fazenda da Gama, que ali construiria a futura capital brasileira. Um ano mais tarde sancionava a lei 3.273 do Congresso Nacional, fixando para 21 de abril de 1960 a data da transferência.
A Companhia Urbanizadora da Nova Capital (Novacap), presidida por Israel Pinheiro, deflagraria, já naquele ano, a operação para fazer uma cidade emergir do cerrado. Recursos privados poderiam ser alocados com esse fim, como já ocorrera com dois grandes exemplos anteriores: Belo Horizonte e Goiânia.
A Novacap assumiu a responsabilidade de acompanhar a construção da nova cidade, os serviços de água, luz, esgotos, arruamentos: construir o Palácio da Alvorada, os prédios do Congresso, do Judiciário e dos ministérios; erguer o chamado Hotel de Turismo; providenciar a estrada de ligação Brasília-Anápolis, além do trecho da estrada Belo Horizonte-Brasília até Luziânia; cuidar da construção da usina e barragem do Paranoá; fazer o aeroporto e promover a venda dos lotes, na área do futuro Distrito Federal.
Para dar suporte aos trabalhos, a empresa criou o Núcleo Bandeirante, cidade provisória fora do plano piloto, dotada de casas comerciais de madeira e de uma série de serviços ali instalados para suprir as necessidades do enorme contingente de trabalhadores atraídos para a região.
Foi nesse cenário de expectativas desencadeadas pela previsão de um novo Eldorado que centenas de empresas, incluindo as maiores empreiteiras do País na época, mobilizaram-se com homens e máquinas para o cerrado. Entre elas estavam Rabello, Metropolitana, Pederneiras, Coenge, Mendes Junior, Camargo Corrêa, Ecisa, Pacheco Fernandes, Serveng; a Empresa Brasileira de Engenharia (EBE) que realizaria trabalhos na área de iluminação; e a empresa de Saturnino de Brito Filho, que realizaria obras de saneamento. E, assim, uma infinidade de outras, maiores ou menores, todas mobilizadas para que a data de inauguração, 21 de abril de 1960, jamais fosse colocada em xeque.

 

 

O sinal da Cruz

Os empreiteiros e todas as equipes de trabalho operavam para dar forma a uma ideia concebida pela mente iluminada do arquiteto Lúcio Costa. Ele salientaria, mais tarde: “A ideia nasceu do gesto primário de quem assinala um lugar ou dele toma posse. São dois eixos cruzando-se em ângulo reto, ou seja, o próprio Sinal da Cruz”.
O plano piloto previu as diretrizes urbanísticas que mais se adaptavam à topografia, privilegiando o eixo transversal em torno do qual seriam ordenados os centros cívico e administrativo, o setor cultural, o setor administrativo municipal, quartéis, centros esportivos e de lazer, zonas para armazenagem e abastecimento, e pequenas indústrias locais e estação ferroviária.
Ao lado do ponto de interseção desses dois eixos, mas participando funcionalmente do eixo monumental, seriam distribuídos os setores bancário, comercial, de escritórios, de empresas, das profissões liberais e do varejo comercial. O cruzamento do eixo monumental, de cota inferior com eixo rodoviário-residencial, impôs a criação de uma grande plataforma liberta do tráfego, concentrando as diversões da cidade – teatros, cinemas, restaurantes, etc.
O tráfego para os demais setores seria feito em mão única na aera inferior, coberta pela plataforma, utilizada em grande parte para estacionamento de veículos. Aí seria construída a estação rodoviária interurbana, acessível aos passageiros pelo nível superior da plataforma.
O plano piloto destinou aos Três Poderes da República um terrapleno triangular, com arrimo de pedra à vista, sobrelevado à campina próxima, a que se tenha acesso pela própria rampa da autoestrada que conduz ao aeroporto e ao bairro residencial. Em cada ângulo dessa praça ficaria um palácio, sendo os do governo e do Supremo Tribunal Federal na base, e do Congresso, no vértice com frente igualmente para uma esplanada, ao longo da qual seriam construídos os edifícios dos ministérios e das autarquias. Vizinhos ao palácio do Congresso, à entrada dessa larga avenida, estariam o Ministério da Justiça e dos Negócios Exteriores, vindo, em seguida, os militares, constituindo praça autônoma.
O setor cultural ocuparia enorme parte, recebendo biblioteca, planetário, museus, institutos e academia. Ao lado haveria ampla área para cidade universitária, com observatório astronômico e o Hospital de Clínicas. Na mesma esplanada, mas em praça independente, seria construída a catedral.
E assim, item a item, o plano piloto ganhava forma seguindo as diretrizes do maior urbanista brasileiro.

 

Os projetos Niemeyer

Simultaneamente às obras iniciais de urbanização, eram elaborados, no Rio de Janeiro, no Ministério de Educação e Saúde (ver livro 100 Anos da Engenharia Brasileira, Editora Univers), os projetos das edificações propostas. Só depois o responsável por esses projetos, o arquiteto Oscar Niemeyer se mudaria para a área da Novacap, onde organizou sua equipe.
O Palácio do Alvorada e o Hotel de Turismo, mais tarde Brasília Palace Hotel, começaram a ser feitos praticamente na mesma época em que o plano piloto era aprovado. Consideradas pioneiras, tais obras desenvolvidas por Niemeyer contaram com a participação do engenheiro calculista Joaquim Cardozo (estrutura de concreto armado) e de Paulo Fragoso (estrutura metálica). Outros projetos contariam, em seguida, com a participação de outros notáveis engenheiros do País: Sérgio Marques de Souza, Bruno Contarini, Mário Vilaverde, Sérgio Vieira da Silva, Roberto Rossi Zuccolo, Arthur Luís Pita e o professor
Augusto Carlos Vasconcelos.
Entre as obras construídas de 1957 a 1960 estão os prédios do Supremo Tribunal Federal, o Palácio do Planalto, iniciado em 10 de julho de 1958, o Congresso Nacional, os edifícios dos ministérios, o hospital distrital e a catedral. Quando Juscelino inaugurou a cidade, ainda estavam em andamento dezenas de obras, incluindo aquelas para complementação das redes de serviços de infraestrutura.

 

No geral, o destaque fica com o Palácio da Alvorada, caracterizado pela forma dos suportes que dão ao conjunto um toque de leveza. Como sempre fazia, Niemeyer não atentou, aparentemente, para as dificuldades que a sua ousadia criativa poderia ensejar. Aos eventuais críticos limitava-se a dizer: “Confio na capacidade da engenharia brasileira”. E não era para menos, pois sua equipe reunia a fina flor da intelectualidade técnica do País nessa área. Exemplo disso, a presença de poeta Joaquim Cardozo, que calculou o Alvorada de modo a atender a todas as nuanças do projeto de Niemeyer.
Essas outras obras, como o Teatro de Brasília, calculado por Bruno Contarini, a universidade, a catedral, o prédio do Ministério da Justiça, o ginásio de esportes e o estádio de Castro Mello, contribuíram para lançar Brasília no cenário internacional da arquitetura e da engenharia.
Augusto Carlos de Vasconcelos lembra que arrojo estrutural das obras do Congresso Nacional atraiu a atenção de especialista do mundo todo, provocando até manifestação entusiasta do grande projetista italiano Píer Luigi Nervi. Conta ele, também, que Joaquim Cardozo vibrou de satisfação ao encontrar a curva apropriada que permitiu o apoio estrutural satisfatório da cúpula invertida, de 60 m de diâmetro. Um dia, Niemeyer recebeu de Cardozo um telefonema em que este dizia, eufórico: “Descobri a tangente que dará a impressão de que a cúpula pousa suavemente na laje”.
Obra da maior relevância, viaduto da pista central, do eixo rodoviário sul, deveria ser entregue em 45 dias, apesar das condições adversas, pois chovia bastante em Brasília. A empreiteira encarregada das obras, a Construtora Rabello, não tinha como solicitar eventual adiamento, pois a obra era fundamental para a inauguração da cidade. A construtora consultou o engenheiro calculista, Bruno Contarini, que na época trabalhava com Spergio Marques de Souza. Ele concebeu um projeto prevendo uso de cimento de alta resistência inicial, cura com água quente e outros artifícios que acabaram permitindo o cumprimento do prazo.

 

 

Depoimentos

Marco Paulo Rabello, dono da Rabello, foi um dos primeiros empreiteiros a chegar ao planalto para ajudar na construção de Brasília. Como Juscelino, nasceu em Diamantina, e uma de suas tias chegou a dar banho no bebê JK. Quando Juscelino foi eleito prefeito de Belo Horizonte, convidou-o para concluir as obras da Pampulha. Compreendiam sistemas de esgoto e urbanização geral – serviços desenvolvidos invariavelmente com a presença do prefeito -, que até mandou fazer uma casa à beira do lago, a fim de acompanhar dia a dia as fases das obras. De modo que, eleito presidente e determinado a mudar o endereço da capital, ele não hesitou em convidar o antigo companheiro de viagem para a empreitada, colocando-o à disposição de Israel Pinheiro.
Maro Rabello conta que a experiência foi enriquecedora sob diversos aspectos: a cidade era moldada no cerrado, obrigando os engenheiros e os empreendedores da época a utilizar a criatividade para vencer os obstáculos de toda ordem, incluindo logística, escolha de aquisição de material, organização de equipes, preparação de mão de obra e aplicação de sistemas para construção massiva, sem o que o cronograma fixado por Juscelino jamais seria atendido.
Com essa preocupação, a construtora instalou bancada para produção de componentes de pré-moldados, onde, segundo Marco Rabello, ela chegou a montar um prédio padronizado de apartamentos a cada 15 dias. Tais obras, mas sobretudo as de maior peso, como a rodoviária, significaram conquistas para a tecnologia do pré-moldado, cuja produção, na época, ainda era feita em escala mínima.
A exceção fica por conta das obras do Conjunto Residencial da Cidade Universitária (Crusp), em São Paulo, a cargo da Ribeiro Franco, desenvolvidas pioneiramente pelo engenheiro Luís Roberto Fortes Furtado, que ali utilizou essa tecnologia na construção de edifícios de seis e sete pavimentos, segundo projetos de arquitetura concebidos pelos arquitetos Eduardo Kneese de Mello e Sidney de Oliveira. Os respectivos cálculos estruturais estiveram a cargo de Henrique Herweg, então com escritório próprio. A propósito, Luís Roberto Fortes Furtado é detentor do primeiro atestado de pré-moldados do Brasil.
Outra obra que seria realizada logo depois de Brasília, também com peças pré-moldadas, foi a Refinaria Alberto Pasqualine, no Rio Grande do Sul, projeto de arquitetura participaram arquitetos Miguel Pereira, Carlos Maximiliano Fayet, Cláudio Araújo e Moacyr Mojgen Marques.
Brasília contribuiria, sob outro aspecto, para o desenvolvimento da engenharia incrementando a tecnologia voltada para a análise da qualidade e do controle de materiais.
Naquela época o arquiteto Mauro Ribeiro Viegas também aportou no cerrado. Anos antes ele se formara pela Faculdade Nacional de Arquitetura, no Rio, e passar a integrar, tempos depois, o respectivo corpo docente, após defender a tese Agregados para concreto. Andara percorrendo canteiros de obras considerando que alguma coisa teria de ser feita em favor do controle dos materiais. As edificações teriam de contar com a retaguarda de serviços eficientes para prevenir problemas técnicos posteriores. Já em 1952 ele havia instalado o escritório técnico Mauro Ribeiro Viegas – Controle de Concreto e Ensaios de Materiais. Em 1958, o escritório tornou-se Sociedade Civil de Controle de Concreto e Ensaios de Materiais.
Com o advento de Brasília, ele dinamizou suas atividades. Observou-se, nos diversos canteiros de obras, que o material local carecia de exames cuidadosos. Por isso, montou um escritório para analisar as pedras destinadas à produção de agregados para concreto. Era um trabalho pioneiro, que demandava, em especial, conscientização de mestres-de-obras. Ele costumava dizer: “Assim como a qualidade dos ingredientes faz a boa comida, uma obra bem feita é a soma dos materiais, de qualidade, que a compõem”. Esse pensamento, calcado na experiência prática, instruiria o futuro desenvolvimento dessas atividades e consolidaria a Conremat.

 

Brasília, hoje

Passadas quatro décadas, a cidade preserva, com seu desenvolvimento, o traçado dos dois eixos de Lúcio Costa. Extrapolou, entretanto, todos os seus limites. Em vez de abrigar os 500 mil habit
antes previstos no plano original, tem atualmente cerca de 2 milhões. O mercado imobiliário explodiu, o mesmo ocorrendo em outras atividades, algumas das quais, como a agroindústria, o comércio e os serviços, se expandem pelas periferias e cidades e áreas próximas. Além disso, a política saiu da órbita de centros como Rio, São Paulo, Belo Horizonte, Salvador e Recife e ganhou forte presença local.
Ao mesmo tempo ele continua a ser um espelho da arquitetura e da engenharia brasileira. Muitos consideram que foi ali que tudo começou. Se não começou, ao menos ganhou força para deslanchar e alcançar notoriedade em obras realizadas até no exterior.
Desarticulando uma frase de Clarice Lispector, o fato constatado hoje (2002) é que Brasília deixou, há muito tempo, de ser uma cidade habitada por “forasteiros nostálgicos”.

 

 

 

As incertas do presidente

Pelerson Soares Penido (Serveng) — que a exemplo de Marco Paulo Rabello, também é um dos pioneiros da história da construção de Brasília. Penido lembra que o presidente Juscelino Kubitschek era um obcecado pelo que estava fazendo. Não dava trégua a empreiteiros, arquitetos, nem operários, embora mantivesse um tratamento igual em relação a todos eles. Queria ver as obras avançarem no dia a dia, a cada impulso das frentes de trabalho. Quando os construtores, diante das dificuldades de toda ordem, relevaram alguma contrariedade, lá vinha o bom humor e o sorriso de JK. E todos se rendiam àquela demonstração de entusiasmo e de crença em que tudo acabaria dando certo.
Mas JK tinha hábitos que alguns consideravam estranhos e que outros entendiam como traços de uma tenacidade incomum. Um exemplo disso é narrado por Penido. Diz ele que certa vez JK tardava em fazer sua costumeira visita de inspeção em fins de semana. Ele tivera compromissos no Rio ou no exterior e, já noite fechada, com o cerrado ao longe sob o fosforecer dos vaga-lumes e, nos canteiros, com a agitação ininterrupta das máquinas, ninguém mais imaginaria que ele viesse a aparecer nos canteiros de obras.
Contudo, ouviu-se barulho de avião. Seria de JK chegando àquele horário? Acaso, com tantos afazeres na área política e econômica, ele ousara se deslocar até ali apenas para não falhar em uma visita de inspeção? Ora, para saber como as obras estavam, bastaria que ele telefonasse para Israel Pinheiro.
Os engenheiros e operários continuaram o trabalho noite adentro, convencidos de que JK chegaria no domingo, se chegasse. O tempo passava e de repente foram ouvidos os ruídos de uma perua DKW se aproximando do canteiro da Serveng. Penido orientava os trabalhadores no avanço do turno da noite e já programava as etapas dos serviços do dia seguinte quando foi surpreendido por um leve tapa nas costas. Era JK, que vencera todas as dificuldades de uma sexta-feira assoberbada, no Rio, para estimular, com o sorriso, que era sua marca registrada, a construção da nova capital.

 

Fonte: Padrão