Lembro aquele dia. Contudo, muitos daqueles acontecimentos se diluem na memória. Alguns rostos desapareceram. Diria que a paisagem humana, assim como a paisagem do local anterior ao desvio do rio e ao enchimento do lago, se recompôs. De tudo aquilo ficou na memória a beleza da arte recriada, sem as nuanças dos rostos dos operários, dos técnicos e dos engenheiros. Mas a anatomia de um dia, de uma hora, permaneceu: a lembrança do momento em que a terra tremeu.
Visitei Itaipu em seus primórdios. E, durante todo o tempo da construção da hidrelétrica, nunca deixei de acompanhar as obras, visitando o canteiro ou obtendo relatos de engenheiros residentes e da própria Itaipu Binacional.
Foi em 1974 que homens e máquinas começaram a ser desembarcados à beira do Paraná. Surgiam ali, perto da cidade de Foz do Iguaçu, as primeiras casas do acampamento. O canteiro industrial ainda era um simulacro, um modelo reduzido daquele que seria depois, quando as duas vilas residenciais, uma do lado brasileiro e, a outra, do lado paraguaio, ganharam a feição de cidades autônomas.
Anos antes eu já estivera na Vila Piloto, na fase da construção da hidrelétrica de Urubupungá, proximidades de Três Lagoas. Com a anuência do presidente da Cesp, Lucas Nogueira Garcez, ali fiquei um tempão vendo o desenvolvimento das obras civis e as primeiras montagens eletromecânicas. Sabia, portanto, da tensão, da pressa, das exigências que são cobradas dos técnicos e dos operários em obras desse tipo. Só que em Itaipu as exigências eram maiores e havia um diferencial: elas uniam operários brasileiros e paraguaios.
Acompanhei, de longe, alguns trabalhos de escavação. A impressão que eu tinha era a de que me encontrava em uma área conflagrada, onde soldados camuflados fragmentavam uma montanha. Só muito mais tarde soube que, como resultado daquelas detonações e das operações de máquinas, haviam sido escavados perto de 23 milhões de m³ de terra e rocha.
A memória, contudo, preserva uma data e um momento.
A noite do dia 19 de outubro de 1978 foi muito curta, em um hotel de Foz do Iguaçu, onde uma comitiva se hospedara para assistir, no dia seguinte, a um espetáculo único, naquelas dimensões. Para alguns, o que iríamos assistir talvez não passasse mesmo de mais um acontecimento da engenharia. Mas, para mim, que já observara ocorrência similar em Urubupungá e em Ilha Solteira, o “espetáculo” se revestia de uma aura, de um significado maior. Seria algo que nunca mais assistiria de novo.
Aquele 20 de outubro talvez tenha sido, em minha memória, o dia mais iluminado de todos os outros que haja vivido. O sol pulverizava-se nas águas.E, desse contato – sol e água – a paisagem era uma explosão de luminosidade.
Aguardava, à distância, o que iria acontecer. Um engenheiro próximo contava os minutos e os segundos. Disse que tudo estava mapeado e todas as peças encaixadas. E, que ninguém se encontrava, àquela hora, fora do lugar e da função designados. Por conta de todos esses cuidados, de todas as minúcias seguidas num planejamento que me parecia exagerado, o momento era de absoluta solenidade.
Então, num silêncio que sequer as águas pareciam romper, houve a determinação para que se consumasse o desvio do rio com a detonação de 58 t de dinamite. Naquele momento a terra tremeu e o curso natural do rio foi desviado. O imenso caudal do Paraná seguiu por um canal de 2 km de extensão, 150 m de largura e 90 m de profundidade. Consumara-se, assim, o que os engenheiros consideraram a operação mais complexa e, ao mesmo tempo, mais espetacular da construção de Itaipu.
Conferi o relógio: 11h15 da manhã. Um engenheiro próximo roubou-me o pensamento, exclamando:
– Acabamos de assistir ao nascimento de um novo Brasil. Pensei: “Calma. Nem tanto ao mar, nem tanto a terra”.
No fundo, estava persuadido de que ali acontecia um desses raros episódios da consolidação de uma epopéia da história humana. Até a data em que Três Gargantas, na China, entrou em operação, Itaipu continuou como a maior hidrelétrica já construída no mundo.
Fonte: Nildo Carlos Oliveira
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