Aproximação com estudiosos e projetos internacionais, debate sobre gestão e legislação específica. O Brasil tenta avançar no modo como aproveita e reutiliza um bem essencial que começa a rarear
Guilherme Azevedo
Conversa ensejada na fila do caixa de hortifrúti de um bairro de classe média de São Paulo, na hora do almoço de mais um dia seco, sem chuva:
HOMEM 1
E essa crise, hem? Tudo seco. E a coisa pode piorar. Em casa a conta de água caiu de 300 reais para 38 reais.
HOMEM 2
Sério? Como?
HOMEM 1
Instalei um sistema no chuveiro que recolhe a água do banho, e essa água é usada na privada. A água da máquina de lavar vai para tonéis e é utilizada para lavar o quintal, para passar pano na casa…
HOMEM 2
A gente desperdiça água demais.
HOMEM 1
Em casa a gente desperdiçava, sim.
MULHER DO CAIXA
Eu é que não conseguia fazer isso em casa.
HOMEM 2
Mas já pensou na economia? No caso dele, multiplicando a economia mensal de 300 reais, dá mais de 3 mil reais no ano. É a viagem de férias da família.
MULHER DO CAIXA
Mas eu não viajo.
HOMEM 1
É o peru mais gordo no Natal.
HOMEM 2
Uns 12 perus, no mínimo, no Natal.
MULHER DO CAIXA
É, a gente só vai aprender na marra, mesmo. Não vai ter jeito. Brasileiro só funciona assim.
(Faz-se silêncio, um eloquente sinal)
O assunto água, falta d’água e finalmente o uso racionalizado e o reúso dela vem dominando praticamente todas as rodas de conversa numa região sempre (mal) acostumada com uma suposta abundância, a região metropolitana de São Paulo, onde se concentram cerca de 20 milhões de habitantes, a mais populosa do Brasil.
Se a estiagem já histórica tem um lado positivo em toda esta crise, é exatamente este: colocar à vista, como as carcaças de automóveis que vêm surgindo no fundo dos mananciais cada vez mais secos da Grande São Paulo, toda a dimensão e a complexidade do problema. E nossa responsabilidade com ele.
Descobriu-se, sim, que o poder público não dimensionou corretamente o problema, nem investiu o suficiente em novas fontes de produção de água, nem soube gerir e intervir para disciplinar a questão do uso. Ficou patente o desperdício generalizado de água tratada, a começar das perdas do sistema administrado pelas empresas públicas ou privadas de água, como a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), índice que pode chegar, em alguns municípios, a mais de 50% do total produzido. A ocupação (e o desmatamento) de áreas contíguas a mananciais, poluindo-os e inviabilizando-os para o consumo humano, a exemplo do que ocorre com a represa Billings; a coleta e tratamento restrito e insuficiente de esgoto (no Estado de São Paulo, segundo o Sistema Nacional de Informações sobre o Saneamento, SNIS, apenas 52,2% do esgoto coletado é tratado) e tantas outras questões que não nos eximem da responsabilidade compartilhada do quadro de escassez. Como se fosse de repente, não mais que de repente, nos vimos com a torneira seca, em meio ao racionamento nunca admitido pelas autoridades, embora sentido na prática, todos os dias, por milhões de pessoas.
Grandes crises podem ter o poder de grandes mudanças. O momento convoca, com dramaticidade, a uma revisão de processos, de esforços, a aquisição de outras técnicas, equipamentos e comportamentos, com vistas ao enfrentamento sério de uma questão inadiável. A esperança, sim, ficou no fundo da caixa líquida de Pandora, pois há soluções disponíveis, como demonstram técnicas e projetos em regiões cuja disponibilidade de água é até mais grave que a nossa. Pois a gente começa a falar agora deles, com atenção especial ao reúso de efluentes com fins de potabilidade.
Fórum
No I Fórum Técnico Internacional “Reúso Direto e Indireto de Efluentes para Potabilização”, realizado na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), em São Paulo, em meados deste mês (outubro), engenheiros, ambientalistas, gestores privados e públicos e acadêmicos do Brasil e do exterior compartilharam ideias, projetos, sonhos e angústias.
Para começo de nossa conversa, é bom posicionar o tema, como fizeram os especialistas: reúso direto de efluentes para potabilização é quando o efluente, convertido em água tratada, e observados os parâmetros mais elevados de qualidade, entra diretamente no sistema de abastecimento da população para consumo imediato; o reúso indireto é quando o efluente tratado e transformado em água de qualidade é primeiro destinado a um reservatório ou manancial, muitas vezes como recarga, para depois ser aproveitado no sistema geral de abastecimento.
Pedro Mancuso, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP, espécie de curador do fórum, mostrou um limite de base à normalização da gestão dos recursos hídricos: “O nosso grande problema é gente demais na cabeceira dos rios”. A Grande São Paulo concentra atividades e pessoas, mas sua disponibilidade hídrica é proporcionalmente muito menor: de 200 m3/habitante/ano, em média, quando a Organização das Nações Unidas (ONU) recomenda 2.500 m3/habitante/ano. É que os rios de suas bacias estão aqui na nascente, ainda em formação, e, por isso, com vazão baixa.
Portanto, o cenário normal da região metropolitana de São Paulo é formalmente restritivo e, numa situação emergencial, se torna agudo, como agora. Aliás, como bem notou Petia Mijaylova Nacheva, do Instituto Mexicano de Tecnologia da Água, em sua palestra “Reúso Potável Direto e Indireto”, o uso da água vem crescendo globalmente a uma taxa mais de duas vezes maior que a do aumento da população. No Brasil, por exemplo, de acordo com o SNIS, a média de consumo de água em 2012 foi de 167,5 litros/habitante/dia, um crescimento de 4,9% em relação ao ano interior. A elevação do consumo é, portanto, um problema planetário.
Sem planejamento
Alceu Guerios Bittencourt, especialista em planejamento de recursos hídricos e presidente da seção São Paulo da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (Abes), resumiu a opinião majoritariamente compartilhada: de que a falta de planejamento é um dos graves problemas no País para o setor de infraestrutura. “Investimentos de obras complexas são contratados sem projeto básico. Isso é absurdo, mas é o que está acontecendo agora, e com amparo legal. Planejamento não é nosso foco”, lamentou. Bittencourt referia-se ao Regime Diferenciado de Contratações (RDC), instituído pela Lei 12.462, em outubro de 2011. Inicialmente se aplicava a apressar as obras para a Copa do Mundo de futebol e a Olimpíada de 2016, mas vem se universalizando. O RDC define o vencedor pelo menor preço. Na prática, substitui, nos casos a que se aplica, incluindo as obras da fase dois do Plano de Aceleração do Crescimento, a Lei 8.666, de 1993, a lei das licitações, nascida depois de ampla discussão. Entidades da engenharia, de modo geral, são contra o RDC e defendem um aprimoramento da Lei 8.666, não o seu abandono.
Sem lei
O arcabouço formal para que projetos de reúso de água tenham assegurada a legalidade de suas atividades ainda é algo a ser construído no Brasil. Para isso alertou Pedro Mancuso, da USP: “Precisamos de apoio legal para investimentos em reúso. Não adianta investir e lá na frente ser impedido”. Embora já existam portarias que mencionem o assunto reúso no Brasil, ainda falta uma discussão conjunta do tema, de suas aplicações e abrangência, de modo a fazer nascer uma lei que normatize (e incentive) a atividade. Foi o que observou Daniel Fink, procurador de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo com atuação na área ambiental, no debate que fechou o segundo e último dia do fórum, sobre “Aspectos Técnico-Operacionais e Legais para Implantação do Reúso para Potabilização”. Fink defendeu um debate coletivo, reunindo as múltiplas esferas envolvidas na questão da água, para a elaboração de uma lei mais abrangente possível, do mesmo modo como foi estabelecida a lei que instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos. O procurador pontuou que essa discussão mais universal inclusive seria uma forma de garantir que a lei se aplicasse efetivamente após seu lançamento, uma vez que corresponderia e atenderia ao maior número possível de atores. Não nasceria já fadada a letra morta, como tantas outras, baseadas na desmedida e irrealidade de sua normatização. A formação de espaços para o diálogo sobre a água é decisivo.
Aliança
Uma dessas iniciativas coletivas de debate foi recém-lançada, embora ainda não tenha a participação direta (e tão importante) do poder público. A Aliança pela Água de São Paulo reúne cerca de 30 organizações não governamentais, entre elas, a Rede Nossa São Paulo, o Instituto de Defesa do Consumidor (IDEC), o WWF e a SOS Mata Atlântica. Dessa união nasceu um documento com a participação de 280 especialistas, de 60 municípios, com propostas de 196 ações de curto prazo e 191 de longo prazo contra a crise da água. Segundo os organizadores, a aliança “propõe um jeito diferente de lidar com a crise da água: compartilhado, corresponsável, baseado no engajamento e no diálogo entre diferentes segmentos da sociedade e de governo”.
Seu objetivo é alcançar duas metas: no curto prazo, até abril de 2015, chegar a uma “situação segura para enfrentar mais um período de estiagem”; e, no longo prazo, “implantar um novo modelo de gestão da água, que garanta um futuro seguro e sustentável para os moradores de São Paulo (estabilidade social, econômica e ambiental)”. Entre as ações urgentes para a crise atual, a aliança pede exatamente que o governo paulista forme um comitê de gestão da crise, com ampla participação da sociedade e das prefeituras afetadas pela escassez. Para o médio e longo prazo, entra em pauta o incentivo ao reúso como política de Estado para a água. “Cobramos dos governos estadual e municipais que apresentem e implementem uma política de reúso da água, dos esgotos e de aproveitamento de águas da chuva”, defendem.
Como na Roma antiga
O sistema atual de abastecimento de água de São Paulo e sua região metropolitana assoma como problema, independentemente de escassez ou não, segundo Ivanildo Hespanhol, um dos principais estudiosos do reúso no Brasil e no mundo e diretor do Centro Internacional de Referência em Reúso de Água.
No debate que encerrou o fórum sobre reúso, falando ao lado de Pedro Mancuso, Daniel Fink e de Otávio Okano, presidente da Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (Cetesb), Hespanhol mostrou que o modelo é o mesmo, há muitos séculos, desde a Roma antiga e seu sistema de longos aquedutos para adução: “Hoje nós estamos usando o mesmo paradigma de dois mil anos. Estamos trazendo água de sistemas cada vez mais longe, e de sistemas que já estão com problema sério de estresse hídrico, como é o caso da bacia do Piracicaba [a bacia hidrográfica do rio Piracicaba alimenta parte do sistema Cantareira, de onde sai 45% da água consumida na Grande São Paulo, para cerca de 9 milhões de habitantes]”.
Principal obra do governo estadual paulista para o aumento da disponibilidade hídrica, o futuro sistema produtor São Lourenço recebeu a mesma crítica de Hespanhol, uma vez que vai buscar água no reservatório do cachoeira do França, em Ibiúna (a 69 km de São Paulo), para de lá trazê-la por uma adutora com 100 km de extensão, com recalque de 313 m e custo (só de obra) de R$ 2,2 bilhões. O sistema poderá captar até 6 m3/s de água (a outorga é de 4,7 m3/s, em média) e deve estar concluído em 2017.
Sistema insustentável
O estudioso lembrou em seguida que a Grande São Paulo é abastecida hoje com 80 m3/s de água, sendo 70 m3/s de água superficial e 10 m3/s de água subterrânea (advinda de cerca de 12 mil poços artesianos), e gera 64 m3/s de esgoto. Porém, a capacidade de tratamento de esgoto hoje instalada, posicionou, é de 16 m3/s e, portanto, os 48 m3/s de esgoto excedentes vão diretamente para os rios. “O que significa isso? Que nosso sistema é absolutamente insustentável”, concluiu. Hespanhol apontou então que um sistema de abastecimento de água tem sustentabilidade quando responde corretamente aos parâmetros de robustez, que é a capacidade de atender a uma demanda presente, e de resiliência, que é a de reagir a um evento crítico, como o de agora. “O sistema de abastecimento de água atual não tem robustez nem resiliência.”
“Qual seria então a proposta?”, lançou. Segundo ele, aproveitar todo o esgoto tratado da região metropolitana (16 m3/s), já em fase de tratamento secundário, ao qual se somaria a terceira fase, com os sistemas mais avançados de tratamento, para possibilitar o reúso.
Segundo o especialista, uma mudança efetiva de paradigma, no que toca a gestão de recursos hídricos, está baseada em conservação e reúso. “Conservação é a gestão da demanda, a coleta de águas pluviais, controle de perdas. E o reúso, hoje, tem de ser estabelecido de uma maneira macro”, ensinou.
Hespanhol citou especificamente o projeto Aquapolo, sociedade de propósito específico firmada entre a Odebrecht e a Sabesp, como bom exemplo da política de reúso que defende. Com investimento inicial de R$ 364 milhões e instalações próprias dentro da Estação de Tratamento de Esgotos ABC, na divisa de São Paulo com São Caetano do Sul, o Aquapolo aproveita o efluente tratado e o submete a um outro processo rigoroso de ultrafiltração, para transformá-lo em água de elevado índice de pureza. A água produzida (a capacidade é hoje de 650 l/s e pode chegar a 1.000 l/s) vai alimentar indústrias do polo petroquímico do Capuava, em Mauá, sobretudo a Braskem.
Do ponto de vista governamental, o posicionamento oficial sobre o reúso foi apresentado na figura de Otávio Okano, presidente da Cetesb, órgão do governo estadual paulista encarregado do controle, fiscalização, monitoramento e licenciamento de atividades geradoras de poluição, a fim de preservar e recuperar a qualidade da água, do ar e do solo. E depois dos agradecimentos de praxe, foi o primeiro tema de sua fala: “A Cetesb é favorável a todo tipo de reúso de água”, frisou. Na sequência, Okano falou que o órgão também trabalha para criar uma resolução definida, que traga um regramento para a reutilização de água. “Isso é muito importante para nós.” O presidente da Cetesb também defendeu punição ao cidadão pelo mau uso de água potável, como o de lavar calçada. “ Porque o brasileiro entende da necessidade quando você aperta o bolso dele.”
Gestão unificada
Okano também criticou a excessiva perda de água tratada registrada no Estado (de cerca de 30%, no caso da Sabesp) e pediu o estabelecimento de limites máximos para as companhias de saneamento estadual e municipal. Citou especificamente o caso de Ribeirão Preto (a 315 km de São Paulo), sob a gestão do Departamento de Água e Esgotos de Ribeirão Preto, onde a perda seria de cerca de 50% do total. “Isso é uma irresponsabilidade do órgão gestor.” O dirigente disse ainda localizar um problema grave no modo como a gestão é compartilhada hoje em São Paulo: entre a Cetesb, que cuida da qualidade, e o Departamento de Águas e Energia Elétrica, DAEE, que responde pela quantidade. “Ora, as duas coisas [qualidade e quantidade] estão extremamente associadas. Como vou dar uma licença para uma indústria que tem de lançar um efluente, se eu não souber a quantidade de água que existe no rio? Se esse rio será capaz de assimilar esse efluente ou não? Isso deveria estar num único órgão”. E, na opinião de Okano, esse órgão deveria ser a Cetesb. Nas considerações finais, o dirigente falou de “acreditar nas coisas certas e fazer as coisas certas”. O incentivo ao reúso, como política de Estado, é com certeza uma delas.
SP promete 3 mil l/s de água de reúso
O reúso de água para consumo humano pode estar sendo incorporado oficialmente como fonte auxiliar no abastecimento da Grande São Paulo. É o que indica o anúncio do governo estadual paulista de construir duas estações de produção de água de reúso, para recarga de mananciais, parte do plano de aumentar a disponibilidade hídrica na região.
As duas novas plantas devem gerar 3 mil l/s de água potável, valendo-se do sistema de ultrafiltração por membranas, e vão se localizar no bairro de Interlagos, na Zona Sul da capital paulista, e no município de Barueri, na região metropolitana. O prazo marcado para concluir as obras, sob a responsabilidade da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), é dezembro de 2015.
Com capacidade para produzir 2 mil l/s, a planta na Zona Sul paulistana será executada na Marginal Pinheiros e tratará esgoto coletado na região de Interlagos. A água de reúso resultante será lançada no córrego Julião, que, segundo a Sabesp, foi despoluído. O Julião deságua na represa Guarapiranga.
A estação de reúso de Barueri deverá produzir 1 mil l/s. Utilizará como fonte o esgoto já tratado do município, o submeterá a novo tratamento e depois destinará a água potável à represa Isolina, alimentada pelo rio Cotia. Dali será outra vez tratad
a, desta vez na Estação de Tratamento de Água Baixo Cotia.
O anúncio dos investimentos para a ampliação da oferta de água repercutiu positivamente na área da engenharia: “Se trata de notícia muito importante e pela qual todos estávamos aguardando”, afirmou o engenheiro Julio Cerqueira Cesar Neto, do Instituto de Engenharia. (Guilherme Azevedo)
Fonte: Revista O Empreiteiro
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