Augusto Diniz – Niterói (RJ)
O momento turbulento que vive o setor energético é fruto da falta histórica no País de um modelo energético coerente e claro. A opinião é da economista Michelle Hallack, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), especialista em sistema regulatório de energia e política energética, com doutorado na Universidade Paris-Sorbonne. Em entrevista à revista O Empreiteiro, Michelle expõe as incongruências do sistema energético brasileiro e a necessidade de se ter estudos sólidos dos empreendimentos para evitar projetos inconsistentes e paralisação de obras no setor.
Por que hoje se questiona tanto o modelo energético brasileiro?
Pensemos no histórico. Existia um modelo baseado em empresas estatais que faliu na década de 1990. Depois teve um processo de liberalização, que culminou no apagão de 2001. Houve então uma nova reconstrução do modelo, que agora vem gerando críticas por conta de transformações pouco claras que ele sofreu. É importante afirmar que não é possível caracterizar essas mudanças como novo modelo do sistema.
Isso não é um problema de hoje. O fato é que não há um modelo energético no País coerente e claro: quais são os objetivos e benefícios que queremos atingir, quais são os instrumentos a ser utilizados e quais são os custos que vamos assumir.
Em energia, muitos fatores são interligados dentro do setor, entre as diferentes indústrias, e também do setor energético com os outros segmentos da economia. Para criar uma política industrial, por exemplo, é preciso pensar como inserir a energia na proposta.
Outro exemplo é a questão das tarifas. Faz-se um conjunto de medidas cujas conexões são pouco claras com o contexto do setor. Quando não se tem um modelo lógico e coerente sempre aparecem momentos de tensão que são postergados através de medidas conjunturais. Estas medidas, no entanto, não podem ser caracterizadas como um modelo.
Então, o Brasil não possui um modelo energético adequado?
Na realidade, precisamos ainda definir esse modelo. O grande problema da energia é se analisar os custos e benefícios. Estava lendo o relatório da EPE (Empresa de Pesquisa Energética) sobre demanda até 2050. Neste documento, verificamos possibilidades e incertezas. As incertezas estão no tipo de meio de transporte que vai ser usado pela população, do combustível que estaremos consumindo, da eficiência energética. Acredito que a questão relevante não é a resposta direta a estas questões, mas como decidir o mecanismo que permitirá responder a estas questões.
A utilização de mecanismos centralizados de planejamento depende de uma capacidade acurada de avaliar custos e benefícios das diversas opções que se apresentam. Os poucos estudos hoje que temos sobre custo-benefício que tratam do assunto são eminentemente incompletos.
Eles não levam em consideração, por exemplo, os custos e benefício incluídos na descentralização da produção da eletricidade, nas políticas industriais em tecnologias de geração, no nível requerido de segurança de abastecimento – políticas para diminuir riscos de desabastecimento também envolvem custos -, nas políticas de impacto social e local, nas políticas de eficiência energética, dentre outras.
É nesse sentido que eu digo que precisamos definir esse modelo de tomada de decisão que incorpore e coordene os diversos agentes sociais. Este modelo é necessário inclusive para que as decisões sejam social e politicamente legítimas, e que possam assim ser realizadas com menos solavancos. Isto é, depois que a decisão for tomada, o processo de realização ex post deve ser mais suave – menos atrasos, menor incerteza e menos custos.
Qual seria o modelo ideal?
Não tenho a resposta exata, mas é importante primeiro avaliar os custos. Uma das grandes discussões recentes foi o despacho da energia com uso da água ou do gás. Será que não era melhor ter armazenado a água para geração de energia e despachado o gás antes por meio das termelétricas? Mas temos capacidade instalada para fazer isso? Então como vamos usar a capacidade?
No Brasil, o despacho de energia é pelo custo feito por suposição a partir do que pode ser gerado pela água. Isso tem muito risco em caso de a água não conseguir ser armazenada – na ausência de chuvas, por exemplo. Mas veja, em qualquer modelo energético não há risco zero.
Tem de combinar o uso da capacidade de geração existente. Precisa analisar os custos, a curva de despacho de energia, os riscos que está disposto a correr e se vale a pena.
Falta planejamento, não no sentido de presença de um modelo centralizador que toma decisões – isto já temos. Falta planejamento no sentido mais amplo de para onde vamos, por que escolhemos ir neste sentido e qual a melhor forma de proceder. No Brasil, as diferentes fontes energéticas — complementaridade e competitividade — são estudadas e analisadas de forma técnica, o que é extremamente necessária, mas não suficiente. Falta uma análise mais econômica das escolhas feitas no setor e das opções de escolhas que estão e estarão sobre a mesa.
A termelétrica tem flexibilidade, corre-se menos riscos com fatores naturais. E como combinar isso com as outras matrizes energéticas? Vale lembrar que a termelétrica aqui tem custo mais alto porque ela foi pensada para entrar pouco no sistema. Mas para esta análise tem que se definir o papel das termelétricas. E entender o papel das termelétricas é entender o papel dela em relação às outras fontes de geração elétrica, em relação ao uso dos recursos naturais – internos ou importados – e em relação à matriz industrial do País.
O Brasil precisa pensar na autogeração de energia
O que pensa das hidrelétricas a fio d’água?
A fio d’água tem muito mais intermitências. Não se armazena potencial de geração. Neste sentido é preciso fazer uma separação entre a hidrelétrica de fio d´água e a de armazenagem e seus papéis dentro do sistema. O sonho de muito países é ser igual ao Brasil, onde se tem armazenagem de água. Isso diminui a volatilidade de curto prazo.
Por outro lado, a armazenagem cria a necessidade de um mecanismo eficiente de decisão sobre quando vai se usar a água para a geração de energia. Um mecanismo de decisão equivocado ou cujos critérios de decisão não sejam transparentes e aceitos socialmente traz tensões. É neste sentido que chama atenção a ausência de um modelo transparente e socialmente aceito. Isso causa esse tipo de situação econômica e social que vivemos hoje.
Seria extremamente importante fazer uma avaliação socioeconômica das hidrelétricas para se julgar o verdadeiro custo-benefício delas. Isso evitaria paralisações frequentes em obras desse tipo. Estudos e projetos preliminares são essenciais, envolvendo a sociedade, investidores, instituições de ensino e o governo, para se discutir as vantagens e riscos.
Quais são os custos para uma obra desse tipo ficar parada um dia? Por outro lado, quais são os seus impactos ambientais? E se não fizermos hidrelétricas, qual é a solução para se produzir energia para atender a demanda? Para se analisar o custo-benefício dessas usinas é necessário avaliar o que está sendo deixado de lado, pois algo terá de ser feito em seu lugar.
Qual a importância da descentralização da energia?
O Brasil tem uma geração de energia de forma centralizada. Há uma tendência no mundo de aumento da descentralização, seja a autogeração de energia para uma edificação ou comunidade. Creio que precisamos avaliar e decidir qual o papel que queremos para a geração descentralizada e distribuída – por exemplo, através da energia solar, eólica, cogeração.
Isso mudaria a lógica da distribuição de energia. Ela diminuiria por um lado os riscos ao sistema, mas poderia também significar um grande aumento de custos. Tem de analisar essa questão com cuidado, no entanto, ignorá-la não é uma solução.
Qual o papel do petróleo no contexto da energia?
O petróleo é uma commodity internacional, mas pode-se direcionar para questões nacionais. Trata-se de um produto que o fator geopolítico precisa ser analisado, mas não entrarei no mérito desta questão, no entanto.
Atualmente o seu papel é bem definido dentro do cenário de produção energética, contudo as incertezas sobre a importância deste produto são enormes. Imagine, só como exercício, se nos próximos anos conseguimos produzir uma bateria elétrica que seja realmente economicamente viável. A eletricidade deixaria de ser um bem econômico não estocável e sem uso das linhas elétricas. Talvez pudéssemos realmente passar a uma matriz renovável e mais segura. Neste cenário, o petróleo e outros combustíveis fósseis perderiam grande parte da sua importância. Para muitos, este cenário está muito mais próximo do que parece.
O posicionamento do papel da indústria do petróleo no Brasil não é sempre claro e transparente. Por exemplo, se pensarmos nas políticas recentes que “seguraram” o preço da gasolina e do carro. Isso não só impacta na competição entre os combustíveis, como também na competição entre os modos de transporte. Por exemplo, na relação do veículo particular com o transporte público. O primeiro tornou-se relativamente mais vantajoso em comparação ao segundo.
Isso também altera a relação com o etanol, ou o potencial desenvolvimento do carro elétrico. Além disso, decisões que parecem fortemente conjunturais criam decisões que perduraram no longo prazo. O carro comprado neste contexto ficará por anos sendo usado por um particular. Mas o que queremos a longo prazo?
Qual sugestão daria para uma política de energia ao País?
O processo de tomada de decisões sobre as fontes de energia no Brasil é muito importante, porque existe diversidade nas possibilidades do contorno da matriz para a geração elétrica e necessidade de investimento para fazer frente à expectativa de crescimento da demanda. Deveria ter diálogo e não conflito entre as diferentes matrizes.
Neste contexto, precisa ter transparência e clareza do porquê está se escolhendo uma em detrimento de outra. A opção brasileira por geração hidrelétrica é histórica, mas é preciso repensar o papel dela no mix com outras renováveis e com outras fontes.
Pensa-se muito no País em política específica para cada fonte energética, mas não de forma conjunta. A política de energia tem ao menos três pilares: necessidade de seguridade de suprimento; o impacto social e ambiental; a relação com a política industrial tanto no que tange inovação e tecnologia como no que tange preços e competitividade.
Criar um modelo é, de alguma forma, criar mecanismos para equacionar os vários elementos desta conta. Para tanto é necessário definir quais são as formas de obtenção de informação dos agentes envolvidos, em seguida é necessário criar um índice (mecanismo) para poder comparar e pesar a importância
de cada um dos elementos. Decisões transparentes e consensuais permitiriam que os contratos fossem mais fluidos, tivéssemos menos paralisações de obras e projetos no setor.
Fonte: Revista O Empreiteiro
Compartilhar
Compartilhar essa página com seus contatos!