“Parecia realmente um cenário de guerra”. Assim, os engenheiros da Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan), controlada pelo Grupo Aegea, responsável pelos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário em 317 municípios gaúchos, resumiram as consequências da catástrofe climática que atingiu todo o estado. Fábio Arruda, diretor de Operações da Corsan, e Cristiano Locatelli, Gerente de Operações da Corsan, ambos da Região Metropolitana de Porto Alegre, relataram em entrevista à revista O Empreiteiro, o impacto das enchentes, além, é claro, das irreparáveis perdas de vidas, os desafios de retomar os serviços de água e esgoto – imediatamente – para aqueles que sobreviveram à tragédia.
As enchentes aconteceram no final do mês de abril deste ano e devastou mais de 90% dos municípios do estado – 471 de um total de 497 -, fazendo desaparecer ruas, casas, estruturas e tirando a vida de mais de 170 pessoas. Além de ter deixado mais de 600 moradores sem suas moradias.
Helicópteros para transportar geradores e equipamentos, construção de pontes e estradas, uso de balsas e escavadeiras posicionadas sobre flutuantes e a contratação até de mergulhadores, entre outros serviços que foram necessários para reconstruir tudo que foi danificado. Além da mobilização para a recuperação das Estações de Tratamento de Água (ETA’s) e demais estruturas, foi crucial tomar medidas de prevenção utilizando novas tecnologias com IA para se prevenir contra possíveis novas ocorrências climáticas.
Não obstante, para este esforço de reconstrução na infraestrutura da Corsan, cerca de 5 mil colaboradores diretos e indiretos estiveram envolvidos, entre mão de obra, fornecimento de maquinário como bombas, caçambas, além de remoção de entulho, aluguel de escavadeiras anfíbias e retroescavadeiras, etc.
O caos e as ações imediatas
Os engenheiros da Corsan contaram em detalhes os principais trabalhos executados, dando exemplos de como foi a reconstrução das 67 unidades, utilizando como referência a ETA Rio Branco, em Canoas-RS, uma das maiores do estado. “Toda a estrutura dessa ETA, por exemplo, com capacidade de tratamento de 1.200 litros de água por segundo, toda sua parte elétrica, quadros, motores e estruturas ficaram embaixo d’água. Então, nosso primeiro passo depois de dois dias que a chuva cessou, foi criar um plano para entrar nessas unidades. Começamos a construir uma passarela, como uma espécie de ponte suspensa móvel, para que os 120 funcionários – isso somente nesta unidade – conseguissem acessar e recuperar a estação”, relatou Fábio Arruda.
Segundo os engenheiros, com os colaboradores já dentro das estruturas, a providência seguinte era estancar a água acumulada. “Instalamos geradores em cima da Rodovia do Parque e puxamos cabos até as estações de tratamento, foram ao todo cerca de uns 300 metros de cabo, e ligamos nos bombeamentos, isso tudo feito de barco. Só assim, conseguimos fazer a drenagem da ‘casa de bombas’, uma central de comando, e contratamos equipes especializadas para fazer a impermeabilização, além de mergulhadores para entrar nas unidades e conseguir eliminar a água”, contou Cristiano Locatelli.
Fábio lembrou que para impedir que mais água entrasse nas unidades, em cada uma foi construída uma barreira de concreto. “Descemos formas deslizantes com preenchimento de concreto para barrar a água de fora, evitando que continuasse a alagar as estruturas. Cada unidade dessa tem de 6 a 8 prédios que precisavam estar em funcionamento para que a ETA voltasse a operar. Construímos então na entrada de cada uma dessas estruturas uma barreira de concreto para que a água de dentro pudesse ser drenado e não retornasse”, complementou Fabio, diretor de Operações.
Cristiano destacou que, mesmo construindo essas barreiras, continuava entrando água pela passagem dos cabos, então contratamos mergulhadores para fechar por baixo das unidades. “Eles mergulhavam e iam em cada janela dos cabos elétricos e estancavam com uma espécie de espuma que, em contato com a água, virava um material semelhante ao concreto. Essas casas de bombas possuem cerca de 8 m de profundidade, dependendo do nível do terreno, e todas estavam com quase 2 m e meio de água acima delas, tudo inundado. Outro detalhe, cada estrutura dessa tinha cerca de 10 janelas de cabos elétricos, então os mergulhadores tinham que tampar uma por uma, detalhou o gerente, dizendo que somente para a ETA Canoas foram contratados 12 mergulhadores.
Segundo Fábio, esse processo de drenar a água e estancar para que não voltasse foi ainda mais trabalhoso porque como todas as estruturas elétricas estavam danificadas, para cada ‘casa de bombas’ tiveram que providenciar um gerador de energia, que para chegar em cada unidade, só era possível transportar de helicóptero. “A partir daí começamos a fazer uso do helicóptero mais vezes para transportar bombas também, como o caso de uma bomba específica que precisávamos e estava na unidade de Guaíba, cidade que estava ilhada. Então, o helicóptero transportou a bomba de Guaíba até Canoas, e esses equipamentos pesam em média de uma a duas toneladas. Passamos a fazer essa logística para levar esses maquinários diferenciados, como o caso das escavadeiras anfíbias – que flutuam sobre a água – que foram fundamentais”, frisou.
De acordo com o diretor, a contratação desses equipamentos não era comum e foi feito especificamente para o período pós enchentes para transportar motores, bombas, inversores de frequência entre outros, com mais de uma tonelada. “Essas escavadeiras são usadas para dragagem de rios, mas, no caso da ETA Rio Branco, por exemplo, somente para transportar os motores elétricos utilizamos três anfíbias”.
Além da questão de transporte de equipamentos pesados, Cristiano lembrou da reposição dos produtos químicos perdidos. “Precisávamos de cloro, sulfato e outros insumos, porque todo nosso estoque se foi. E precisávamos transportar esses produtos químicos para cidades ilhadas. No caso da ETA Rio Branco, o sulfato, um dos principais, fizemos uma tubulação da estação até a rodovia, cerca de 400 m de acesso, para mandar via recalque, ou seja, bombeamento até as instalações da ETA. Para transportar o cloro, que são cilindros de 900 kg, utilizamos balsas para transportar um trecho e a escavadeira anfíbia para outro, porque estava tudo alagado”, detalhou o gerente de Operações, contando que a tubulação aérea operou durante 15 dias para o transporte dos produtos químicos.
Além da tubulação provisória e o uso de equipamentos diferenciados, Fábio contou que tiveram também que construir pistas auxiliares, ou seja, novas estradas, para conseguir ter acesso a algumas unidades. “No caso da ETA Rio Branco, em Canoas, fizemos também um acesso pela Rodovia BR – 448 para entrar na unidade. Para isso, tivemos que retirar um volume de terra e criar essa pista” , contou Fábio, que destacou: “Tudo que existia ficou embaixo d’água, sabíamos que uma hora iria baixar, mas não tínhamos perspectivas de quando, então tivemos que criar soluções”.
Segundo a Corsan, para esse programa de recuperação tiveram que contratar cerca de 120 empresas terceirizadas em serviços de diversos setores, tais como: geração de energia, caminhões-pipa, caldeiraria e solda, perfuração de poços, fornecimento de equipamentos elétricos, mergulho, fornecimento de combustível, guindastes e apoio operacional.
“Os desafios foram gigantesco, mas o principal também era não deixar a equipe desanimar. Eram 120 pessoas por turno para retomar a operação das estações. Estávamos trabalhando com água na altura da barriga, todos com macacão e equipamentos de proteção, mas quando olhávamos para todos os lados só se via água. Eram pessoas que nunca tinham passado por um momento desse, então havia o desafio psicológico de motivá-los a retomar os serviços, porque não podíamos deixar uma cidade como Canoas sem água. Mesmo com caminhões pipa, reservatórios e todos os recursos, precisávamos retomar as estações. Era uma crise humanitária e a água é fundamental para a vida das pessoas”, enfatizou Fábio.
De acordo com ele, funcionários do grupo Aegea de diversos estados do país, como Manaus, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Tocantins e empresas terceirizadas foram para o Rio Grande do Sul restabelecer o sistema. “Somente na ETA de Canoas foram necessários 10 dias ininterruptos, ou seja, trabalhando 24 horas. Por isso, o que fica de aprendizado é agora tomar as medidas pensando se caso isso ocorra novamente. Estamos planejando obras e sistemas para se ter contingência de água e preservação da estrutura preditiva”, disse o diretor Fabio Arruda, complementando que todas as unidades agora terão geradores alteados e passarão por retrofit.
Prevenção: Novas tecnologias e construções
Com as enchentes, a Corsan teve que restabelecer o abastecimento para os 906 mil imóveis alagados ou indiretamente atingidos pela catástrofe climática. Segundo a companhia, isso aconteceu em cerca de duas semanas nas 67 estruturas impactadas total ou parcialmente para retomar a plena operação.
Além dessas atividades executadas até manualmente pelos colaboradores relatadas pelos engenheiros, em entrevista à revista O Empreiteiro, o diretor de Operações do Grupo Aegea, José João de Jesus da Fonseca, destacou o uso de dados de um programa chamado InfraInteligente, que produz um inventário de ativos da empresa, com registro digital das características das estações de tratamento de água e esgoto atingidas, permitindo aos técnicos avaliar as medidas de reestruturação remotamente.
A tecnologia permite simulações e previsões com base em padrões operacionais, criando “gêmeos digitais”, ambientes virtuais idênticos à realidade da infraestrutura da operação. Isso significa que as equipes podiam, em algumas situações, realizar visitas virtuais às instalações, avaliando estações de tratamento de água e esgoto, reservatórios, poços, equipamentos e seu funcionamento.
Segundo o diretor, esse suporte conseguiu reverter algumas falhas nos sistemas alagados. Duas semanas antes do alagamento da Estação de Tratamento de Água (ETA) Rio Branco, de Canoas, 62 plantas digitais dos ativos da maior estação em operação foram integradas ao Infrainteligente e tiveram imagens internas detalhadas e catalogadas.
“Esse mapeamento foi realizado por meio de drones, câmeras esféricas 360º e GPS, que permitem identificar com riqueza de detalhes o quê, onde e em qual condição se encontram os bens e ativos físicos de cada unidade”, explicou José João.
Ao todo, foram digitalizadas 101 instalações nas nove cidades atendidas pela Corsan na região Metropolitana. Segundo êle, o programa será implantado até junho de 2025 em todos os 317 municípios gaúchos atendidos. “O InfraInteligente está na fase de mobilização e em processo de cotação para contratação de tecnologias como drones, GPS de alta precisão e câmeras 360 de alta resolução, além de treinamento para cerca de 50 profissionais envolvidos no programa”, informou.
Além do mapeamento de riscos por IA, o diretor de Operações relatou que possui uma programação em 32 cidades gaúchas para substituir estações de captação e de tratamento às margens de rios por poços profundos, tecnologia mais estável e segura, além de medidas como a ampliação da construção de reservatórios. “Em decorrência da calamidade, inclusive, estamos avaliando alternativas para que nossas instalações estejam protegidas contra clima extremo. Uma das linhas de ação é construir estruturas de proteção nesses locais, além de substituir as ETAs por poços”, completou.
Para os próximos anos, Corsan enfatizou que o principal eixo de investimentos no Estado é a universalização da cobertura da rede e sistema de tratamento do esgotamento sanitário, que deve passar de 21,5% para 90% na área atendida pela empresa até 2033. “Um total de 264 municípios vão passar de zero para 90% de acesso na próxima década, o que demandará a instalação de cerca de 20 mil km de tubulações para condução do esgoto das residências até as estações, onde serão tratados. Ou seja, cerca de 90% dos R$ 15 bilhões programados até 2033 será destinado a obras de esgoto, e a segunda principal demanda será para redução de perdas na rede d’água, programa que está em implantação”, finalizou o diretor José João Fonseca.