Na virada do ano 2000, a revista OEmpreiteiro publicou o livro “100 Anos da Engenharia Brasileira”, concebido pelos jornalistas Joseph Young e Nildo Carlos de Oliveira. Entre as 64 obras de engenharia que representam os pilares iniciais da infraestrutura do País, sustentando a qualidade de vida da população e as economias regionais – em suma, o desenvolvimento da nação—estava a construção da nova Capital, Brasília, inaugurada em 21 de abril de 1960.
Reproduzimos aqui o texto que registra a história, a política, o urbanismo, a arquitetura e as personagens desse evento histórico, que mudaria a face do País e sua inserção no cenário global.
As cinco personagens – JK, Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, Joaquim Cardoso e Israel Pinheiro
O desenho de Brasília, nas palavras de seu criador, o urbanista Lúcio Costa, “nasceu do gesto primário de quem assinala um lugar ou dele toma posse: dois eixos cruzando-se em ângulo reto, ou seja, o próprio sinal da cruz”. Em cima desse desenho veio a saga da construção. E Brasília, inaugurada no dia 21 de abril de 1960, chega ao fim do milênio como um exemplo do que seus empreendedores foram capazes de fazer: Juscelino Kubitschek, com a vontade política que determinou a mudança da capital da República do Rio de Janeiro para o Planalto Central; Lúcio Costa, com a sua visão urbanística totalizante; Oscar Niemeyer, concebendo as edificações que tonariam a sede da administração da República um espelho para a arquitetura do mundo; Joaquim Cardozo, poeta e engenheiro calculista, desenvolvendo os cálculos estruturais que tornariam possível a ousadia de Niemeyer; Israel Pinheiro, presidente da Companhia Urbanizadora da Nova Capital, a Novacap, dando unidade às ações práticas para a adequada integração entre planejamento urbano e construção, e o grande contingente de engenheiros e construtoras, mobilizando equipamentos e trabalhadores de todas as regiões do País para conferir forma e cor às projeções de um sonho de mudança que vinha de longe, desde a época do Brasil Colônia.
O plano-piloto de Lúcio Costa, que estabelecia as diretrizes urbanísticas de Brasília, resultou de concurso realizado pela Novacap em atendimento a reivindicações do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB). O concurso era uma grande oportunidade para que arquitetos e urbanistas se debruçassem sobre o mapa de uma ampla região ainda não desbravada do Planalto Central, a fim de que ali fosse criada uma cidade que levasse em conta, em seu processo de desenvolvimento, a correta integração do homem ao meio ambiente, considerando todas as suas interfaces.
Prevista inicialmente para uma população da ordem de 500 mil habitantes, Brasília ficaria, por via aérea, a 940 km do Rio de Janeiro, 890 km de São Paulo, 1.030 km de Salvador, 1.620 km de Porto Alegre, 725 km de Cuiabá e 125 km de Goiânia.
O concurso de projetos de arquitetura contou com a participação de 26 concorrentes. No geral, os trabalhos apresentados esboçaram o crescimento de Brasília a partir de um ou de vários núcleos. Nesse processo, só depois de algum período de ajustamentos é que ela viria a adquirir uma conformação mais definida.
O projeto de Lúcio Consta, entretanto, já marcava a feição definitiva de Brasília desde os seus primórdios. Extremamente conciso, ele resumiu o plano-piloto em cinco folhas datilografadas, salientando que o ponto fundamental do trabalho consistiria na adequação do núcleo urbano à topografia da área escolhida. Aplicou os princípios da técnica rodoviária à concepção urbanística, eliminou cruzamentos e introduziu pistas centrais de velocidade e pistas laterais para o tráfego local, ao longo dos quais concebeu a construção dos blocos de residências. Em torno do eixo transversal ordenou os centros de lazer zonas destinadas à armazenagem, ao abastecimento e às pequenas indústrias locais e à estação ferroviária. Ao lado do ponto de intersecção monumental, distribuiu os setores bancário e comercial e criou uma grande plataforma livre do tráfego para ali concentrar algumas das atividades culturais e de lazer da cidade: teatros, cinemas e restaurantes. Ele deixou espaços para livre trânsito dos pedestres ao longo da rede viária e concebeu a construção dos edifícios destinados aos três poderes da República num triângulo: a sede do executivo e o Supremo Tribunal Federal na base e o edifício do Congresso no vértice, com frente para a esplanada, ao longo da qual seriam construídas as edificações dos ministérios e das autarquias. O setor das embaixadas e legações se estenderia ao longo de ambos os lados do eixo viário principal, paralelamente ao grande eixo rodoviário.
A partir dessa configuração, Brasília teria de harmonizar exigências aparentemente paradoxais: monumental, mas confortável e acolhedora, ampla, mas com um sentido de proximidade na visão geral, e moderna, casando uma arquitetura extremamente avançada com a paisagem do cerrado.
É no núcleo desse plano que se encaixa a genialidade de Niemeyer. Em seu livro, As curvas do tempo, ele narra: “Em 1950 JK é eleito governador de Minas Gerais. Pampulha já está construída e, como ele previa, é um bairro novo e elegante de Belo Horizonte. Para tudo JK me convocava, já era seu arquiteto. Outras obras por ele programadas começaram a surgir pelo estado. Passaram-se os tempos, JK é eleito deputado e, pouco depois, presidente da República e logo me procura. Vem a minha casa de Canoas e, voltando juntos para a cidade, me confia, com entusiasmo: “Vou construir a nova capital do País e você vai me ajudar.”
Os projetos de Brasília começaram a ser elaborados no Ministério de Educação e Saúde (MES), no Rio de Janeiro. Só depois Niemeyer se transferiu para a área da Novacap, onde montou uma equipe. A partir daí as obras avançavam nos prazos contratados, com Israel Pinheiro as comandando “sem vacilações ou burocracia”.
O Palácio do Alvorada, com 13 mil m2 e o hotel de Turismo, mais tarde Brasília Palace Hotel, com 13.562 m2, começaram a ser feitos praticamente na mesma época em que o plano-piloto de Lúcio Costa era aprovado, 1957-1958. Essas obras pioneiras, projetadas por Niemeyer, contaram com a participação do engenheiro calculista Joaquim Cardozo (estrutura de concreto armado) e Paulo Fragoso (estrutura metálica).
Outros projetos que depois disso começaram a se espraiar no traçado de Lúcio Costa contaram com a participação de outros notáveis engenheiros, entre os quais podem ser citados Sérgio Marques de Souza, Bruno Contarini, Mário Vilaverde, Paulo Fragoso, Sérgio Vieira da Silva, Roberto Rossi Zuccolo, Arthur Luís Pitta e o professor Augusto Carlos de Vasconcellos.
Entre as empresas que tomaram parte na construção de Brasília estão a Serveng Civilsan, que desenvolveu amplo trabalho na implantação da cidade, construindo prédios, viadutos e os sistemas de abastecimento de água e esgotamento sanitário e serviços em praticamente todas as demais áreas da engenharia; as construtoras Rabello, Coenge, Pederneiras, Mendes Júnior, Camargo Correa, Ecisa (terraplenagem, pavimentação e edificação); e a Empresa Brasileira de Engenharia (EBE), que cuidou de toda a instalação elétrica. Esta se instalou no Planalto Central em 1957 e, três anos depois, conforme o cronograma previsto, já havia feito toda a instalação elétrica dos palácios, hospitais, blocos residenciais, ruas, praças, avenidas, aeroporto e embaixadas.
Entre as obras construídas de 1957 a 1960, ano da inauguração da cidade, incluem-se as seguintes: prédio do Supremo Tribunal Federal, com 10.190 m2, Palácio do Planalto, obra iniciada em 10 de julho de 1958, com 36 mil m2; Congresso Nacional, com 32.776 m2, edifícios ministeriais, com 210 mil m2; hospital Distrital de Brasília, com 32 mil m2 e catedral de Brasília, com 3 mil m2. Quando Brasília foi inaugurada, ainda estavam em andamento dezenas de outras obras, incluindo edificações para abrigar autarquias, além daquelas de infraestrutura previstas no plano de urbanização.
No conjunto das edificações sobressai-se o Palácio da Alvorada, caracterizado pela forma dos suportes que conferem um toque de leveza ao conjunto. Aparentemente Niemeyer não levou em conta as questões construtivas que poderiam advir do seu projeto ousado. Entendia que a tecnologia brasileira seria capaz de resolver problemas dessa natureza e ponto final. Além do mais, ele contava com a sensibilidade e capacidade técnica de Joaquim Cardozo para dar solução às questões de cálculo. E Joaquim Cardozo conseguiu calcular de forma tal a estrutura do Alvorada que os suportes obtiveram o efeito preconizado pelo arquiteto.
O Palácio do Planalto e o prédio do Supremo seguiram a mesma concepção arquitetônica do Palácio da Alvorada: os pilares com formas inusitadas, proporcionam ao conjunto características leves e, ao mesmo tempo, monumentais. Foram concebidos com uma aresta retilínea na prumada externa e curvas inferiores e superiores na parte interna. Nas duas obras os pilares têm formato semelhante: no Palácio do Planalto localizam-se na fachada voltada para a praça dos Três Poderes; no Supremo, nas fachadas laterais, em direção perpendicular. As edificações do Congresso Nacional também se inscrevem, na história da arquitetura e da engenharia brasileiras , como obras singulares. O arrojo estrutural chamou a atenção de especialistas do mundo todo.
Essa e outras obras – como o Teatro de Brasília (cálculo de Bruno Contarini, obra iniciada em julho de 1960); a Universidade de Brasília, que deveria estar concluída até 1963; a catedral de Brasília, cuja estrutura foi concluída em 1960 mas que só ficou completamente pronta em 1967; o ministério da Justiça, concluído em 1969; o ginásio de esporte, que ficou pronto em 1971, e o estádio de Brasília, ambos projetados pelo arquiteto paulista Ícaro de Castro Mello – contribuíram também para lançar Brasília no cenário internacional da arquitetura e da engenharia.
Belém-Brasília
A ligação rodoviária Belém-Brasília adquiriu, no contexto da nova capital, significado estratégico, político e econômico, Ela integrava, há longos anos, planos da política rodoviária brasileira. A BR-14, a Transbrasiliana, do mesmo modo que a BR-22, que tinha em vista integrar a Amazônia. O nascimento de Brasília ditou a prioridade de Belém-Brasília.
Quando o presidente Juscelino Kubitschek, regressando de uma de suas visitas à região amazônica, foi mais uma vez inspecionar as obras da nova capital, verificou que aquela ligação vinha progressivamente de Anápolis em direção às selvas amazônicas, de onde partiam, através do Pará e do Maranhão, os primeiros trechos que se prolongavam em direção a Brasília. A construção da estrada já não possuía, portanto, a configuração de um sonho. Era um fato concreto.
A extensão total da ligação rodoviária, que seguia o novo traçado da BR-14- ou Transbrasiliana- era de 2.276 km. Desse total, haviam sido construídos, até janeiro de 1958, perto de 940 km. Um dos trechos mais difíceis situava-se entre Porto Velho e São Miguel do Guamá, numa extensão de 550 km. Dentre as obras de engenharia necessárias àquela ligação duas se destacavam: uma ponte sobre o Tocantins, na divisa de Goiás-Maranhão, entre os municípios de Tocantinópolis e Porto Franco, com extensão da ordem de 1.200 m, e outra sobre o rio Guamá, com cerca de 400 m de extensão. Essas obras-de-arte complementariam a ligação Belém-Brasília, construída sob a coordenação do engenheiro Régis Bittencourt.
Belém – Brasília constituiu um episódio à parte na história rodoviária brasileira. O engenheiro Bernardo Sayão, diretor geral da Rodobrás, empresa responsável pelo andamento das obras, estava prestando todo o apoio logístico aos trabalhos, que avançavam mata adentro, vencendo rios e toda sorte de adversidades. Eles prosperavam em duas frentes, uma a partir de Brasília e, outra, de Belém. As máquinas eram transportadas do Pará pela estrada de ferro que ligava Belém ao rio Guamá. Eram descarregadas na margem deste rio e embarcadas num rebocador, que seguia paralelamente ao traçado da estrada até os trechos em terra de onde seguiam em comboio até os canteiros.
Foi nessa rodovia que Bernardo Sayão morreu prematuramente. Quando as últimas árvores do trecho da rodovia foram derrubadas, ele quis fazer um registro fotográfico da operação e acabou atingido por uma delas. Sua morte abalou toda a equipe que trabalhava na rodovia e provocou comoção em Brasília.
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