Jaime Rotstein*
Ofenômeno meteorológico que ocasiona chuvas intensas e enchentes é parte da história do homem. Assim, se pode compreender o episódio da Arca de Nóe, que deve ter sido fundamentada numa grande chuva que inundou regiões conhecidas na época. A citação bíblica é a seguinte:
“Terra de Canaan, 2957 a.C., numa grande inundação, provavelmente centrada cerca do UR no Eufrates, Noé e sua família se salvaram. Um dilúvio resultante de 40 dias e 40 noites de contínua precipitação ocorreu na região. Terras ficaram inundadas por 150 dias. Todas as criaturas vivas afogaram, com exceção de Noé, sua família e animais, dois a dois, foram salvos numa arca e finalmente descansaram no Monte Ararat”.
*Vale do Anhangabaú, centro de São Paulo,onde cenas como esta são recorrentes
As enchentes são causadas por chuvas intensas e/ou por degelo em regiões de clima frio, sujeitas a ter por longo tempo, ou permanentemente, a cobertura de neve em suas partes mais elevadas.
É preciso assinalar que a água originada pela chuva ou vai para a atmosfera (evaporação), ou vai terra adentro (infiltração), ou corre para os rios e as partes baixas, causando enchentes por vezes catastróficas. As chuvas intensas ocorrerão com monótona frequência, trazendo consequências que se refletem na vida das pessoas, das regiões e, por vezes, das nações.
A América Latina foi a terceira região do mundo com o maior número de inundações entre 1973 e 2002, tendo registrado cerca de 240 eventos. No Brasil, os prejuízos anuais são superiores a US$ 1 bilhão (MCT/CGE, 2002). Entre janeiro e março de 2004, as inundações atingiram 1.220 municípios brasileiros destruindo totalmente 17.510 casas, danificando outras 95 mil casas, afetando perto de 377 mil pessoas (FGTS, 2004) e gerando perdas estimadas em US$ 3,5 bilhões (NIBH, 2004).
A migração para áreas urbanas gera graves problemas de saneamento básico, de lixo, de estruturação urbana, de poluição através da contaminação das bacias de captação de água, associados a problemas estruturais clássicos em países em desenvolvimento. Desta maneira, o leito maior da inundação acaba ocupado pela expansão descontrolada da população dos centros urbanos.
Grandes inundações dos séculos XX e XXI
O desafio do controle de enchentes é de grande amplitude, pois elas não ocorrem em regiões previamente delimitadas e são de amplitude imprevisível. Reduzir os seus efeitos exige:
Conhecer os rios e as bacias de contribuição;
Estabelecer um planejamento integrado, monitorado e alimentado permanentemente, visando ter o máximo de informações sobre possíveis áreas críticas;
Formação de equipes capazes de atender aos estudos teóricos sobre a forma de calculá-las, bem como o estabelecimento de áreas críticas capazes de serem atenuadas, a partir de medidas públicas ou privadas;
Defesa Civil – programas e preventivos: educação, mapa de alerta, locais críticos etc.
Bangladesh – No Bangladesh, enchentes não são fenômenos extraordinários. O país se estende sobre um enorme delta fluvial, cortado pelos rios Ganges, Jaruna (ou Brahmaputra) e Meghna e seus múltiplos braços laterais. As enchentes, portanto, fazem parte das monções e do ciclo natural de vida. Enquanto as águas mantêm os níveis costumeiros, a população lida perfeitamente com elas. Mais séria, contudo, é a erosão fluvial, que ocasiona o deslocamento do leito de um rio de até 1 km por ano.
China – As inundações ocorrem, particularmente, devido ao rio Amarelo, inclusive quando blocos de gelo o bloqueiam e ao rio Yangtzé, que é responsável por cerca de 75% das inundações neste grande subcontinente, em cuja bacia vivem 400 milhões de chineses. Em 1931, 230 mil pessoas morreram por afogamento e inanição, quando os diques cederam. O rio Huang He tem um histórico impressionante, que inclui 900 mil mortos em 1887 e 3,7 milhões em agosto de 1931.
Estados Unidos – Entre as enchentes marcantes nos Estados Unidos cabe citar a que está ocorrendo no rio Mississipi, obrigando a abrir as comportas de um canal na Louisiana para tentar evitar a inundação da cidade de Nova Orleans. A abertura das comportas do canal de Morganza deve provocar a inundação de 1,2 milhão de ha de terra agrícola, mas poupará a cidade de nova gigantesca calamidade seis anos após o furacão Katrina. Se todas as comportas do canal de Morganza forem abertas a vazão pode chegar a 17.000 m3/s, um volume de água três vezes superior ao das Cataratas do Niágara.
Em Chicago há um sistema conhecido pela sigla TARP (Tunnel and Reservoir Plan), consequência de graves inundações em 1849, 1855, 1938, 1952, 1954, 1986, 1987, 1996, 1997, 2007 e 2008. O TARP compreende 176 km de túneis em rocha profunda, com 3 m a 10 m de diâmetro, além de três reservatórios (O’Hare, Mc Cook e Thorton), tendo uma capacidade de acumulação nos reservatórios de cerca de 100 bilhões de litros de água.
Japão – É um país ciclicamente sujeito a grandes inundações, levando-o a projetar um arrojado sistema de silos subterrâneos de água. Trata-se de um projeto iniciado em 2004. Os silos têm 32 m de diâmetro, estão a 65 m de profundidade e são conectados por 64 km de túneis a 50 m de profundidade. A água coletada sofre tratamento para uso da população.
Brasil – O país é um subcontinente. Por isso mesmo tem os mais variados climas e microclimas. A constante são as chuvas que não raro são catastróficas. Centros urbanos e áreas rurais têm sofrido inundações de porte, causando mortes, prejuízos econômicos e gerando uma população significativa de desabrigados.
O planejamento do controle de cheias, por região e por bacia hidrográfica, obriga a um estudo da execução das obras recomendadas em cada caso.
São Paulo produz quase 17 mil t de lixo todos os dias. Desse número, cerca de 10 mil t são geradas nas residências. Fica claro que o paulistano precisa aprender a lidar melhor com a questão do lixo para não acabar com a própria saúde e o meio ambiente. Segundo levantamento da prefeitura, mais de 80% dessa sujeira ainda é despejada em lixões a céu aberto.
No Rio de Janeiro, a enchente não é assunto para ser tratado caso por caso, particularmente quando ocorre. De
sde 1711 a cidade do Rio de Janeiro tem sido assolada por esta praga.
Um dos temas a ser abordado é o da construção de piscinões. São soluções peculiares que – conforme o volume retido – podem ser uma contribuição importante para a retenção de enchentes. A existência de áreas adequadas para a construção dos piscinões tem de ser identificadas e os volumes retidos avaliados. As críticas que se fazem a esta solução são alinhadas a seguir, em trabalho do conceituado geólogo Álvaro Rodrigues dos Santos:
São obras de elevado custo, considerada a obra propriamente dita, as desapropriações necessárias à sua implantação e operação, e o alto custo de sua manutenção;
Boa parte do material de assoreamento produzido nas sub-bacias hidrográficas em episódios de chuvas intensas passará a se depositar nos reservatórios, inclusive um grande volume de sedimentos finos; acresça-se que um piscinão assoreado por sedimentos e lixo tem seu volume útil comprometido, assim como, portanto, sua capacidade de colaborar no controle de enchentes em episódios pluviométricos subsequentes;
As operações de desassoreamento desses reservatórios passam à total responsabilidade dos municípios, normalmente despreparados, financeira e fisicamente, para esta complexa e exigente operação;
Tanto as águas a serem retidas, como o material de assoreamento e o lixo que se depositarão nos reservatórios, propiciarão a ação direta e mais prolongada do mau cheiro, de insetos, ratos e de sua perigosa carga químico-biológica poluente;
Para a disposição final do material proveniente do desassoreamento (limpeza) dos piscinões será natural a necessidade econômica de se encontrar local adequado próximo;
A implantação dos piscinões e dos bota-foras que receberão o material proveniente das operações de desassoreamento ocupará e imobilizará preciosas áreas urbanas que poderiam ser aproveitadas para o atendimento de necessidades e aspirações da população local em educação, lazer, moradias, esporte etc.
A experiência do uso de piscinões obriga a lembrar que o Rio de Janeiro tem dois piscinões naturais, a Lagoa Rodrigo de Freitas e a de Marapendi, ambas carentes de preservação ambiental.
*Em 2004, num período de menos de três meses,1.220 municípios foram inundados no Brasil
Conclusão
A minha visão como cidadão e engenheiro é a de que a criação urgente de um novo Departamento Nacional de Obras de Saneamento (DNOS) é indispensável. Só assim a atuação do Estado – e se trata de um problema público – permitirá:
1) Planejamento integrado com o estabelecimento de prioridades, redundando em ações concretas de limpeza, dragagem, endicamento e construção de obras para atenuar os efeitos das enchentes, tais como barragens, túneis, retificações dos cursos de água, piscinões etc. Controle do desmatamento e ocupação de encostas e das construções que afetam o curso dos rios;
2) Criação de áreas “non aedificandi” e, principalmente, fazê-las serem respeitadas. A sua abrangência vai desde as áreas inundáveis e de proteção de matas ciliares até aquelas sujeitas a deslizamentos;
3) Estabelecimento de planos de defesa civil, capazes de permitir avisar às populações das áreas atingíveis da calamidade que se aproxima, bem como socorrê-las durante aocorrência;
4) Criação de novo fundo destinado a socorrer as vítimas das enchentes, oferecendo-lhescondições de retomarem as suas vidas.
*Jaime Rotstein é engenheiro e presidente da Sondotécnica Engenharia de Solos S.A.
Fonte: Padrão