A Odebrecht, que por meio da Bento Pedroso Construções (BPC), ajuda a modernizar a infraestrutura de Portugal, onde hoje responde por contratos da ordem de 2 bilhões de euros, começa a construir o Trem de Alta Velocidade que ligará Lisboa a Madri
*Nildo Carlos Oliveira, de Lisboa
Estamos visitando algumas obras da Odebrecht/Bento Pedroso por terras de Portugal. Essas duas empresas operam unificadas desde 1988, período em que executaram contratos da ordem de 2,9 bilhões de euros. A BPC, fundada em 1953 por José Bento Pedroso, e a empresa brasileira, fundada na Bahia em 1944 por Norberto Odebrecht, identificaram-se ao longo dos anos, não somente pelo idioma comum, mas por conta de uma engenharia refinada, aplicada na construção de algumas das mais importantes obras do país: a Ponte Vasco da Gama, que se projeta sobre o rio Tejo; a ampliação do metrô desta capital (obra da qual participou também a brasileira Andrade Gutierrez, presente na estação da Rotunda, na praça Marquês de Pombal); os túneis de Carenque e dezenas de outras.
Atualmente as duas empresas se preparam para abrir o novo caminho ferroviário destinado ao Trem de Alta Velocidade rumo a Madri. Simultaneamente às iniciativas com esse fim, dão andamento também a algumas obras resultantes de contratos recentes: o trecho Buraca-Pontinha, da Circular Regional Interior de Lisboa (Cril), onde a marca fundamental do trabalho é a preservação dos seculares Aquedutos das Águas Livres e das Francesas, ícones da engenharia hidráulica portuguesa, construídos entre o final do século 17 e começo do século 18 para abastecimento d´água desta capital, e a usina hidrelétrica Baixo Sabor.
Sabor é um rio com nascente na Galícia, Serra da Colebra. Ele joga suas águas no rio Douro, na região de Trás-os-Montes. O sítio escolhido para a construção da usina fica nas proximidades da Vila da Torre de Moncorvo, área de serra, extremamente escarpada e de acessos sinuosos, onde as noites chegam cedo demais, nos invernos gelados.
O projeto previu duas barragens, uma delas de concreto, em forma de abóbada de dupla curvatura. De início, o empreendimento suscitou polêmica entre ambientalistas. Mas a empresa Energias de Portugal (EDP) justificou a necessidade da obra, argumentando que ela vai permitir flexibilidade operacional entre todas as barragens ao longo do rio Douro e assegurar o fornecimento contínuo da energia elétrica que elas estão gerando. Equipes multidisciplinares acompanham a construção, a fim de que os cuidados com o meio ambiente e com os valores do patrimônio local sejam garantidos.
Além de visitar aquelas duas obras novas, a revista O Empreiteiro visitou também obras anteriores, constatando que as experiências práticas resultantes do avanço da engenharia da empresa constituem ricas fontes de estudos nas universidades do Porto, Coimbra e da Universidade Técnica de Lisboa. É um exemplo que pode ser imitado e utilizado, como rotina sistemática, nas escolas de engenharia do Brasil.
Sobre a possibilidade de apropriação de material prático de engenharia nos estudos universitários, o reitor Fernando Seabra Santos, da Universidade de Coimbra, é contundente: "Tenho por mim, que no atual momento de desenvolvimento do país, da capacidade de ligação e de entendimento entre a universidade e as empresas, depende o êxito de uma estratégia ganhadora, assente na inovação e na qualidade, na capacidade de criação de novos produtos, capazes de impor o nome e a marca de Portugal num mundo cada vez mais globalizado e concorrencial."
Experiências acumuladas
Entre as obras que hoje são estudadas nas escolas de engenharia portuguesas está a Ponte Vasco da Gama. Ela resolveu o problema de tráfego pesado da ponte antiga – a 25 de Abril, ex-Salazar, inaugurada em 1966 – implementando a rede viária que circunda esta capital. Ao vê-la, na composição de um conjunto de vias de acesso que se estendem por cerca de 18 km – 12 km dos quais formados de pontes e viadutos e cujo vão central se estende por 420 m – pensei no que ela também representa do ponto de vista técnico.
A travessia, uma via expressa com cerca de 30 m de largura e três faixas de circulação em cada sentido, foi, em seu processo construtivo, um paciente exercício de engenharia. Desde as fundações em estacas escavadas; as ensecadeiras em estacas-pranchas; o tabuleiro atirantado em aduelas moldadas in loco, até os mínimos pormenores com os estudos de impacto ambiental na terra e no leito fluvial. A concepção e a execução da obra consideraram as condições, no dia a dia, do ecosistema. Foi até desenvolvido um meio de iluminação especial para facilitar o vôo de aves noturnas.
Outra obra estudada é a Gare Intermodal de Lisboa, conhecida como Gare do Oriente. Trata-se do maior complexo intermodal de transportes desse país. A estação foi dimensionada para abrigar os vários sistemas de transporte público local, constituindo um legado da modernização de Lisboa, depois da Expo-98. A cobertura de aço e vidro resulta de uma estrutura metálica que forma um conjunto similar a 60 árvores de 25 m de altura simetricamente plantadas.
O complexo intermodal, que tem sido visitado por curiosos e em especial por arquitetos do mundo todo, foi projetado pelo arquiteto espanhol Santiago Calatrava, o mesmo que acaba de projetar o Museu do Amanhã, obra que vai integrar o conjunto modernizador do cais do Rio de Janeiro, batizado de Porto Maravilha, dentro das iniciativas para preparar a cidade para a Copa de 2014 e para a Olimpíada de 2016.
Estendi esse passeio técnico até o metrô. Todo o chão por onde se pisa ao longo do traçado e no entorno faz parte da história desta capital, destruída pelo terremoto que ali aconteceu em meados do século 17 e cuja reconstrução teve à frente a personalidade do Marquês de Pombal.
A propósito dessas obras, o professor Emanuel Maranha das Neves, catedrático do Departamento de Engenharia Civil do Instituto Superior Técnico (IST), de Lisboa, desenvolveu estudos e considerou: "Todos os que hoje contemplam a parte visível do nosso metropolitano, sobretudo as estações do Cais do Sodré e da Baixa-Chiado, estão longe de ter uma ideia do enorme desafio conceitual e técnico que constituiu a realização dessas obras".
Tem razão o professor. Construir o metrô nessa região significou enfrentar condições geológicas e geotécnicas absolutamente desfavoráveis. Se, na superfície, predominam os edifícios comerciais e de inestimáveis valores histórico e arquitetônico, lá no subsolo os problemas não poderiam ser menores. Além do baixo nível do lençol freático, havia outras interfaces no caminho das escavações. Por isso, antes de colocar as máquinas de perfuração em funcionamento, tinham de ser realizadas centenas de sondagens e ensaios no local e em laborat
ório.
Foram usadas: a técnica cut and cover em alguns trechos; o método NATM em outro; e o shield, construído na França, nos túneis entre a estação do Cais do Sodré e o Rossio; no túnel entre o poço da Marinha e o poço do Duque do Cadaval e no túnel entre o poço da Marinha e a estação de Santa Apolônia.
Os túneis de Carenque, que fazem parte da Circular Regional Exterior de Lisboa (Crel), uma espécie de rodoanel, e as auto-estradas resultantes do Plano Rodoviário Nacional que Portugal colocou em prática depois da década de 1990, são outros empreendimentos também referidos como experiências nas escolas.
Proteção para os aquedutos
A Circular Regional Interior de Lisboa (Cril), cujo último trecho deverá ser concluído ainda no primeiro trimestre deste ano, interliga as diversas auto-estradas de acesso a Lisboa, desafogando o tráfego das vias principais. É uma obra de 4 km de extensão, resultado de investimentos de 112 milhões de euros e cuja implantação tem exigido soluções engenhosas, uma vez que o traçado passa por 130 m daquela que é considerada a maior realização da engenharia hidráulica portuguesa: os Aquedutos das Águas Livres e das Francesas.
Como somente uma pequena parte dos 58 km dos aquedutos era visível – e se tratava de patrimônio que em hipótese alguma poderia ser danificado – a Odebrecht apresentou na licitação uma proposta técnica que foi considerada ideal. Nos trechos da Cril que cruzam com aquelas construções seculares, a travessia foi rebaixada e medida semelhante adotou-se em outros pontos, resultando na construção de túneis na metade dos 3,7 km finais do trecho.
Para afastar a possibilidade de qualquer abalo nas estruturas longevas, microestacas de contenção foram posicionadas horizontalmente, com estruturas de concreto pré-fabricado nas paredes laterais, e somente depois disso foi implementada a escavação para a execução dos túneis. No total, 257 microestacas de sustentação foram ali executadas. A Cril, por onde devem circular mais de 100 mil veículos/dia, começou a ser construída em 2007.
As complexidades no rio Sabor
A usina hidrelétrica Baixo Sabor terá capacidade para gerar anualmente 250 GW/h. Projetada para garantir o controle das cheias no rio Douro e orçada em 354 milhões de euros, faz parte do plano do governo português de utilizar tecnologias limpas para a geração de energia. A inovação nessa usina, que deve começar a operar no 2º semestre de 2014, é a combinação do aproveitamento hidrelétrico com energia eólica. Um sistema suprirá o outro, quando isto se fizer necessário. A área do reservatório é da ordem de 3 mil ha.
O engenheiro João Marques, diretor de engenharia, informa que a barragem de jusante foi projetada em abóbada de dupla curvatura, seguindo uma tendência portuguesa em construções semelhantes, que levam em conta as características geológicas locais: rios encaixados em fundo de vale. Tais estruturas, esbeltas e finas, se revelam apropriadas para sítios com feição de cânion. A outra barragem, de montante, foi projetada de modo convencional, e utilizará cimento no processo de compactação.
A barragem de dupla curvatura, cujo formato lembra a barragem de Funil construída no rio Paraíba, em Itatiaia, RJ, será construída com a utilização de fôrmas trepantes e terá cerca de 140 m de altura. No processo de concretagem, serão usados cabos aéreos.
A obra tem vários níveis de complexidade, uma vez que diversas das estruturas serão subterrâneas. No conjunto, são construídas 2.500 m de galerias destinadas a abrigar os circuitos hidráulicos e as estruturas da tomada de água e da casa de força.
Uma das dificuldades que surpreendeu os técnicos ocorreu na fase do desvio do rio Sabor. De repente se detectou uma falha geológica. As equipes foram alertadas e teve de haver maior concentração de esforço nas obras de contenções especiais, com a execução de enfilagem, para assegurar a continuidade das escavações subterrâneas.
O engenheiro José Manuel, diretor técnico que responde pelas obras no canteiro, disse que cuidados especiais tiveram de ser adotados, sobretudo no começo das obras, para a garantia das operações logísticas. "Estamos numa região onde não há sistema de transporte para o contingente que trabalha aqui – no pico empregaremos 1.200 pessoas. Não há comboio (trem), auto-carro (ônibus) etc. Todo o transporte tem de ser feito em viaturas próprias das empresas construtoras. Tivemos de buscar energia em pontos distantes. E distantes estão as fontes de abastecimento de gêneros e materiais. A serra é sinuosa e os caminhos, rochosos, sujeitos a instabilidades. Tudo requer obra de contenção para que nada acabe rolando escarpa abaixo."
Quando visitei essa obra, operavam ali duas centrais de britagem: uma com capacidade para 650 t/h e, outra, com uma produção média de 220 m³/hora.
Além de se defrontar, no dia a dia, com a questão de logística, outra dificuldade que constatei diz respeito ao meio ambiente e ao patrimônio. As construtoras tiveram de construir cavernas com sensores de temperatura e umidade para 100 morcegos desalojados de seu hábitat e criar um sistema de choque elétrico para obrigar os peixes a seguirem novas rotas de desova, por conta do desvio do rio.
Além disso, elas precisam cuidar da transferência do santuário de Santo Antão das Barcas, construído ali em 1754, e do santuário de São Lourenço, que data de época possivelmente mais recuada. Eles serão removidos das áreas que serão inundadas, para áreas seguras e de fácil acesso aos fiéis. A transferência não será nada fácil: cada santuário será desmontado peça a peça, pedra a pedra, e levado para sítio previsto no projeto de preservação.
Agora, o trem rápido rumo a Madri
Miguel Peres, presidente da Odebrecht em Portugal, recebe a revista O Empreiteiro no escritório da empresa em Lisboa e diz que começa a ser cumprido o contrato de concessão da PPP1 da ligação ferroviária de Alta Velocidade Lisboa-Madri. O contrato, firmado entre o governo português e a Ligações de Alta Velocidade S. A. (Elos) corresponde ao trecho entre o Poceirão, margem sul do rio Tejo, e Caia, já na fronteira com a Espanha, em uma extensão de 167 km.
A Elos é formada pelas empresas portuguesas Brisa, Soares da Costa, Lena, Edifer e Zagope; pelos bancos portugueses Caixa Geral de Depósitos e Banco Millennium BCP e pela espanhola Iridium, do grupo ACS.
O contrato, com 40 anos de duração, inclui o projeto de engenharia, a construção, o financiamento e a manutenção daquele trecho, além da manutenção do trecho Évora-Caia, correspondente à
; linha convencional destinada ao transporte de mercadorias e que terá 92 km de extensão. O investimento geral é da ordem de 1,650 milhões de euros. A conclusão dessas obras está prevista para fins de 2013. A linha entre Lisboa e Madri terá velocidade de 350 km/h e vai permitir que o percurso seja feito em 2h45 entre as duas capitais.
Miguel Peres informa que o desenvolvimento desse empreendimento se dará dentro do cronograma e que os estudos do traçado não preveem surpresas. A geologia local é favorável, diferentemente do que pode vir a ocorrer com o Trem de Alta Velocidade brasileiro. Pelos dados até aqui divulgados, o TAV previsto para a ligação Rio-São Paulo-Campinas atravessa áreas adversas, do ponto de vista geológico, como a Serra das Araras, onde terão de ser executadas amplas escavações de túneis. E será muito grande o número de outras obras de arte especiais, nos diversos trechos.
As construção da infraestrutura para a operação do trem-bala em Portugal começará em Poceirão, na margem sul do Tejo, coincidentemente onde a Odebrecht fará também uma plataforma logística de grande porte, estimada em 300 milhões de euros. É um porto seco, destinado a funcionar como porta de entrada do Atlântico, inclusive para o etanol e outros produtos brasileiros.
O que se constata, analisando e vendo o volume de obras da Odebrecht/Bento Pedroso neste país, é que ele e o Brasil não se encontram unidos apenas pelo idioma, mas pelo histórico da engenharia também.
Fonte: Estadão