Faltam obras mas sobra violência urbana no País

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A violência urbana, objeto de gordos tratados sociológicos com os quais se busca interpretar os fenômenos criminais que ocorrem com maior freqüência e intensidade nas grandes metrópoles, tornou-se algo presente, a cada momento, em cada rua ou residência, algo banalizado de que o cidadão toma conhecimento como se fora mais um fato corriqueiro em meio às atividades da sobrevivência no dia-a-dia. Há algum tempo, ela ainda despertava espanto ou manifestação de revolta. Mas poderia ser contida nos estreitos limites em que explodia: uma prática de vandalismo aqui; um homicídio e um latrocínio mais adiante; desordens públicas desencadeadas no calor da defesa de posições políticas. Nada que algum sociólogo de plantão não pudesse explicar com alguma dose de argumentos satisfatórios. O assalto, seguido rotineiramente de seqüestro e morte, não se encontrava, até então, vulgarizado. Sobretudo, o crime não estava organizado e não compensava. O cenário, até os anos 80, revelava violência urbana, sim. E a violência jamais esteve desconectada das tendências humanas, na cidade ou no campo. Válida, aqui, a célebre frase do escritor Graciliano Ramos: “O homem não presta; aliás, não presta desde a pré-história”. Mas os tempos mudaram. O desequilíbrio social é uma constatação. E várias causas são apontadas para esclarecer a banalização da violência atual. Muitos estudiosos relutam em indicar apenas algumas delas. Entendemos: é mais simples e confortável atribuí-la a uma somatória de fatores, do que colocar de vez o dedo na ferida. Alguns descartam a questão do desemprego; outros dizem que a pobreza e a miséria generalizada não explicam a onda de assaltos e mortes. E ainda outros responsabilizam o aumento da taxa de homicídios, em algumas áreas de cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, a “guerras” de acertos de contas entre traficantes adversários. Tenta-se fechar os olhos para o fato de que a expansão urbana não tem implicações na expansão das graves carências sociais. E que a construção de ilhas de prosperidade, instaladas em condomínios de luxo cada vez mais excludentes, não pode representar um insulamento artificial de alto risco. A realidade, à margem das evasivas do governo federal e dos governos estaduais e prefeituras, é que o crime organizou-se fora ou dentro dos presídios e que ele se ramifica pelas cidades. O perigo não se encontra mais na esquina próxima; está se fortalecendo ao lado. A violência urbana virou guerra urbana. Guerra urbana Há os delitos supostamente cometidos no varejo. Um jornalista é assaltado em um ponto da cidade e só não acaba jogado no porta-malas do carro e seqüestrado porque a esposa começa a gritar e atrai a atenção de observadores impotentes. O filho de um empresário é surpreendido num cruzamento da cidade, baleado e retirado do veículo, no qual dois delinqüentes fogem. Mais tarde telefona para o pai: “Pai, não se preocupe. Estou vivo”. Um empresário, liderança setorial jovem na área da construção civil, é perseguido por um bandido de moto até o interior do estacionamento de sua empresa e baleado. E outra vítima de assalto é atirada de um viaduto porque carregava pouco dinheiro no bolso. No Rio a esposa de um empresário é assassinada com um tiro à queima-roupa. Em outra ocorrência, o assaltante derrama um líquido e toca fogo nas pernas de uma senhora a fim de que ela não possa correr. No atacado, as ações da guerra urbana se multiplicam. No dia 14 de maio do ano passado a imprensa paulistana noticiava: “Uma série de ataques a alvos policiais entre a noite de sexta-feira e a manhã deste domingo já deixou 52 mortos – 35 policiais civis, militares, integrantes de guardas metropolitanas e agentes de segurança de penitenciária; três civis e 14 suspeitos – além de dezenas de feridos no Estado de São Paulo. Nesta madrugada, os criminosos fizeram novos atentados, totalizando 100 ações desde a noite de sexta-feira”. Ocorrências dessa natureza desdobram-se, em maior ou menor escala, em outras cidades. Tanto assim, que o incêndio de ônibus urbanos, com mortos e feridos, vem dando uma feição de país em guerra a algumas ruas de São Paulo, Rio e Vitória (ES). Delitos dessa natureza levaram o presidente Lula a classificá-los como “terrorismo”, retórica que serviu de senha para o treinamento da Força Nacional de Segurança Pública que aos poucos, devagar quase parando, chegou ao Rio de Janeiro, onde este ano serão realizados os Jogos Pan-Americanos. Essa manifestação de força não impediu, no entanto, que um grupo armado, disfarçado de agentes federais, empunhando fuzis e pistolas, assaltasse o posto de pedágio do km 104 da rodovia Rio-Juiz de Fora, dia 21 de janeiro último. Diante das ações dos quadrilheiros e da impotência da segurança pública, a resignação dobra o espinhaço de setores da sociedade. Não é para menos. A vítima de assalto, quando acorre a uma delegacia em São Paulo, encontra-a invariavelmente desaparelhada, do ponto de vista material e humano. O delegado não dá plantão noturno e investigadores se queixam de que são desviados de suas funções a fim de elaborar os inócuos boletins de ocorrência. Nesse clima, rara uma rua paulistana – ou uma casa – cujos moradores não tenham sido vítimas de algum delito, maior ou menor. E há até delegacias que não funcionam à noite porque não têm segurança para as suas atividades de rotina. À noite, os bandidos costumam treinar tiro ao alvo nas paredes ou nos vidros do imóvel público. É a desmoralização do poder do Estado, situação reconhecida pelas próprias autoridades. Dia 22 de janeiro deste ano, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, o coronel da reserva da PM paulista e ex-consultor do Banco Mundial, José Vicente da Silva Filho, desabafava: “É incrível, mas nem a PM tem um sistema de comunicação com a Polícia Civil, o que foi um agravante para os ataques desferidos por grupos criminosos em maio do ano passado”. E pedia ele: “É urgente a implantação de um centro integrado de emergências públicas, com um sistema moderno de telefonia, sistema de rádio com freqüência comum e banco avançado de dados para suporte às operações nas áreas críticas da capital e da região metropolitana…”. A segurança tem sido negligenciada, embora seja considerada um direito da cidadania. Esse direito esbarra numa estatística dolorosa: o Brasil registra cerca de 30 homicídios para cada 100 mil habitantes, ante a média mundial de 5. Em 2001, conforme estudo de um sociólogo, foram anotados 1 milhão de crimes contra o patrimônio na cidade de São Paulo, fora os que não tiveram registro nas polícia civil e militar. E estudo da Fundação Getúlio Vargas e do Banco

Interamericano de Desenvolvimento calcula que os custos da violência urbana atingem 10% do PIB – cerca de R$ 130 bilhões – considerando-se que tais recursos deixam de gerar empregos na cadeia produtiva, favorecendo apenas aqueles serviços especializados de segurança. O estranho é ver que as entidades dos trabalhadores e das empresas de Engenharia e da Construção não se movimentam, num engajamento coerente, contra as causas que alimentam a violência urbana, hoje ampliada por conta da formação das milícias armadas. Elas cuidam de seus interesses específicos, mas dão de ombros para o perigo representado pelos crimes que o braço do governo não tem condições de coibir. Há movimentos periféricos, mas estes podem ser interpretados apenas como evasivas, quando deveriam ser movimentos capazes de sensibilizar a sociedade e produzir resultados eficientes a médio e longo prazo. Economia e política desarticuladas A apatia e o conformismo são indicadores de que se vive em um País econômica e politicamente desarticulado. Do ponto de vista da economia, o Brasil atravessa anos e anos sem avançar milímetros em sua política de crescimento. Nas últimas décadas, o crescimento médio do PIB não fugiu ao parâmetro dos 2,3%. E, caso seja descontado, aí, o crescimento vegetativo da população, conclui-se que o andar da riqueza per capita chegou tão-somente ao patamar de 1% ao ano. Daí se comprova que não tem havido aumento de renda para combater a miséria, que por sua vez torna-se um elemento a mais dentre as causas da violência urbana. Nesse cenário, há os poucos que ganharam muito e aquela fatia imensa da população, que não ganhou nada ou ganhou muito pouco. Porque o capital financeiro, na medida em que favorece alguns, desfavorece parcelas consideráveis das pessoas atreladas às atividades produtivas. Aqui, o capital financeiro é inimigo visceral de quem produz. E estão, dentre as atividades produtivas, aquelas ligadas à cadeia produtiva da engenharia e da construção, capazes de triplicar os meios para empregar a mão-de-obra que viceja, sem perspectiva, nas camadas pobres e nas camadas da classe média. Do ponto de vista político, a desarticulação mostra uma situação insustentável. Câmara e Senado reclamam gordos salários, na expectativa de seguir o exemplo do Poder Judiciário, que delibera sobre o que pode ganhar. É como se o País fosse economicamente poderoso, não estivesse lá embaixo, na lanterninha dos emergentes. É por conta disso que a arrecadação, que vem batendo recordes seguidos, ano a ano, não tem significado aplicação de recursos naquelas áreas estratégicas que poderiam dar sustentação a uma política de crescimento econômico. Agora mesmo, quando o presidente Lula anuncia o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), a verdade, sem tergiversações, aparece nos números: ele está na expectativa de que a infra-estrutura receba R$ 503,9 bilhões em investimentos até 2010. Mas desse total, com toda a arrecadação obtida, a União só vai dispor de R$ 67,8 bilhões a título de recursos orçamentários. O restante serão investimentos de estatais e da iniciativa privada. O PAC, portanto, já vem com uma marca de nascença: a fantasia.
Fonte: Estadão


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