Espaço e tempo. Nova economia e nova geografia. E o papel dos arquitetos, engenheiros, cientistas e planejadores urbanos na solução dos problemas das macrometrópoles. Este é o contexto e a dimensão da entrevista do urbanista Jorge Wilheim sobre
São Paulo e outras cidades
Nildo Carlos Oliveira
Oarquiteto e urbanista, formado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie, tem produzido notáveis obras de arquitetura e de urbanismo. Do conjunto de seus trabalhos de arquitetura destacamos o Parque Anhembi, a sede da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, três dos prédios do conjunto hospitalar Albert Einstein e o projeto do Serviço Social do Sesi, no bairro paulistano da Vila Leopoldina. E, como urbanista, fez os planos diretores de São Paulo, Curitiba, Joinville, Goiânia, além do projeto que, ainda muito cedo na profissão, elaborou para Angélica, uma cidade que nasceu no meio da floresta, entre Campo Grande e Dourados, no Mato Grosso do Sul.
Secretário estadual do Meio Ambiente em dois governos paulistas (Orestes Quércia e Luiz Antônio Fleury), ocupou também a presidência da Empresa Metropolitana de Planejamento (Emplasa). E, na administração da prefeita Marta Suplicy, coordenou a elaboração do plano diretor estratégico de 2002. Em 1994, a convite da Organização das Nações Unidas (ONU), mudou-se para Nairóbi, Quênia e, depois, assumiu a secretaria-geral-adjunta da Conferência Mundial Habitat 2, realizada em 1996, em Istambul.
Jorge Wilheim recebe-me em seu escritório nas Perdizes. Lembro, na introdução de nossa conversa sobre problemas das macrometrópoles (ele prefere chamá-las assim, em vez de megalópoles), de outra manhã, no começo dos perigosos anos de 1970, quando o entrevistei pela primeira vez. A nossa conversa naquela ocasião foi sobre o Parque Anhembi que ele projetara em parceria com o escritório de seu colega Miguel Juliano. A cobertura desse centro de convenções e exposições teve uma característica inovadora: a estrutura tubular em treliça espacial foi completamente montada no canteiro, nos 67 mil m² da área construída e, depois, içada, de uma só vez, por 25 guindastes.
Depois daquela fase ele viveu a rica trajetória dos demais projetos e escreveu vários livros. No mais recente deles – São Paulo – Uma interpretação – analisa a cidade de São Paulo, os nós que precisam ser desatados e oferece um conjunto de sugestões para isso.
Na entrevista que se segue ele defende, com muita força e persuasão, o que pensa das cidades e dos meios para torná-las humanas, democráticas e acolhedoras para os seus habitantes.
Vim lhe fazer uma pergunta. Depois talvez venham outras. Acaso estaremos vivendo uma época de reestruturação das cidades?
Sim. E para examinar essas mudanças é preciso que nos localizemos no espaço e no tempo.
No que diz respeito ao tempo, nós vivemos um período de transição histórica. E, nessa linha de transição, vejo que está ocorrendo, há duas ou três décadas, uma série de rupturas tanto na maneira de produzir, quanto nos costumes da sociedade. E o que está se configurando é que existe em formação uma nova geografia, assim como uma nova cultura dentro de uma nova economia.
Essa nova geografia mostra os gargalos que estão sufocando
as megalópoles?
Prefiro chamar de macrometrópoles. Hoje, a maior parte da população está vivendo nas cidades. Há, portanto, uma urbanização crescente. No caso do Brasil ela se apresenta maior ainda do que em outros países. O que mais cresce não são apenas as cidades pequenas ou médias, mas as cidades grandes. As metrópoles têm crescido, se expandido, horizontal e verticalmente, criando conurbações e uma configuração que não existia antes. São as regiões urbanizadas. São mais do que metrópoles; são macrometrópoles.
Vamos a um exemplo.
Em 1994, no plano diretor elaborado quando eu dirigia a Emplasa, eu já dava conta de que São Paulo é uma região urbanizada, uma macrometrópole que abrangia Campinas, São Paulo, Baixada Santista, Sorocaba e São José dos Campos. Nessas cidades há 1 milhão de pessoas que todos os dias se deslocam do município, morando num lugar e estudando e trabalhando em outro. Tal dinâmica justifica a constatação de que essa região deveria ser vista como uma unidade, tanto sob o aspecto de planejamento, quanto de gestão.
Existem políticas que devem abranger o conjunto desses municípios, como é o caso de São Paulo. Mas regiões urbanizadas existem no mundo e são muito importantes. Por exemplo: de Boston a Filadélfia existe uma região urbanizada que passa por Nova York, mas que não é um contínuo urbano. Mas não é preciso que haja um contínuo urbano para que determinada região não seja considerada urbanizada. A mesma coisa acontece no Japão. De Tóquio até Osaka há um contínuo – uma região urbanizada. E regiões urbanizadas continuamente vamos encontrar na Holanda, na Alemanha e em outros lugares.
Espaço e tempo. Vamos retomar o fio condutor a partir desse desenho e dessa geografia?
Sim. E também dentro dessa geografia é necessário examinar como essas cidades grandes se comunicam, dialogam entre si. Nós chegamos a constituir, no fim do século passado, uma globalização que é muito importante na mistura dos costumes. Invariavelmente digo que as cidades chamadas globais se caracterizam pelo fato de que se comunicam usando a mesma linguagem e uma característica que lhes é comum: seus habitantes são todos consumidores modernos. São espécies de arquipélagos formados por ilhas de consumidores modernos.
Claro que, quando falamos de ilhas, supomos que há um oceano em volta. E, em nosso caso, trata-se do oceano daqueles que não conseguem chegar à ilha do consumo por falta de renda, por causa de injustiça social. Enfim, da falta de oportunidade para participar do banquete do consumo global.
É o desenho da nova geografia humana a que você se refere.
Este desenho que estamos fazendo compõe o quadro da geografia nova a que me referi anteriormente. Mas, além da geografia nova, existe um aspecto na economia, que também é novo. Essas crises seguidas que começaram no fim do século 20 são anunciadas em diversos momentos por diversos autores, entre os quais eu mesmo. Agora mesmo, em 2008, foi desenhada uma nova crise – a do capitalismo. Isso não quer dizer que amanhã não se apresente alguém novamente com uma bandeira vermelha pretendendo derrubar o regime vigente. Parece que isso nem sempre dá certo e nem sempre é democrático. M
as a verdade é que essas mudanças estão ocorrendo e muitos autores já descrevem essa implosão tentando vislumbrar qual é o novo futuro do regime da produção e da economia. A principal característica de ruptura, além das modificações na maneira de produzir industrialmente, é o fato de que as finanças abandonaram a economia. A autonomia dos jogos financeiros, desde a década de 1980, prosseguindo em 1990 e que estourou em 2008, mostra esse abandono da economia e tem um significado: o de que o dinheiro produz dinheiro e tem muito pouco a ver com aquilo para que ele serve.
“O mundo financeiro se afastou daeconomia das cidades criando um castelo de cartas que ruiu em 2008”
Mas estamos, talvez, nos distanciando do objetivo dessa entrevista.
Não. Estamos falando do contexto em que as cidades se urbanizam. A verdade é que o isolamento do mundo financeiro a que me referi permitiu, em parte por causa da falta de uma regulação dos bancos, por parte da ação dos estados, a formação de um castelo de cartas que em algum momento iria cair. E caiu nos Estados Unidos em primeiro lugar em função de um dado específico: o mercado hipotecário, que sempre foi muito forte como forma de captação de recursos. Lá não se compra nunca uma casa a não ser com financiamento bancário e cuja contrapartida é a hipoteca. Até aí, esse aspecto de financiamento, pelos bancos, poderia funcionar. O que aconteceu é que esse enorme vulto financeiro foi mesclado pela construção de estruturas extremamente abstratas em que se configuraram os jogos, as apostas. A tal ponto que não se conseguiria mais distinguir como um fundo que paga ou remunera X por cento a quem entra nele e que é constituído por uma cesta na qual ingressam valores das hipotecas, a média do crescimento ou da alteração das moedas do Sudeste Asiático e qualquer coisa que é jogada ali. Assim, isso não dá para ser controlado. E isto aconteceu no sistema bancário através de fundos que constituíram no mundo inteiro uma estrutura de jogo financeiro na qual se poderia até fazer a previsão do tempo. O cliente poderia ganhar ou perder com isso.
Tudo, portanto, um artificialismo, uma fachada.
Esse artificialismo foi a gota d´água que evidenciou o abandono da economia por parte das finanças. É claro que, no regime capitalista, isto acabou provocando uma ruptura grave. E nós temos de achar, quando isso acontece, onde estão as sementes do novo. Não adianta tentar fazer ajustes para colocar esparadrapo nas feridas e tentar recuperar esse joguinho que perdurou durante décadas.
O que está acontecendo é que em alguns lugares se tenta verificar para onde vai esse capitalismo. Em alguns lugares se tenta voltar ao passado. Olhar para trás, em vez de olhar o futuro. De qualquer modo este é um momento historicamente importante. Abordei esse assunto em dois ou três livros que escrevi. Mas o fato é que, quando examinamos as questões das cidades, não podemos deixar de examinar esses contextos. Não sei se no futuro – quem sabe no século 22 – vão dizer que o século 21 foi o século de grandes alterações em que o regime econômico passou a chamar-se capitalismo social ou socialismo de mercado, ou qualquer uma dessas denominações.
Esse distanciamento das finanças… Aquilo que é essencial para as pessoas acabou não se realizando. Quais as saídas possíveis?
Se examinarmos os desafios urbanos dentro desse contexto, vamos perceber que existe outra transformação que está ocorrendo: é a volta da importância do Estado, contrariamente às teses neoliberais do fim do século passado quando o que parecia prevalecer era a tese da regulamentação do Estado para dar melhor liberdade ao mercado. A crise atual demonstra claramente ser necessário que o mercado seja regulamentado e que o Estado seja livre e democrático, mas não livre para fazer o que quiser contra os seus cidadãos. A transformação que estamos observando diz respeito a outra transformação. Refiro-me a um novo contrato social que está sendo construído.
“Occupy Wall Street sinaliza para aconstrução de um novo contrato social”
Um novo contrato social? Será que estamos mesmo, com a urbanização, com as mudanças operadas nas cidades, caminhando para isso?
A sociedade que chamamos civil, ou que poderíamos chamar também de sociedade política, está muito mais organizada do que há 50 anos. E muito mais ativa. Vemos isso em alguns movimentos, como aquele que está ocorrendo nos Estados Unidos, o Occupy Wall Street. Ele nada mais é do que a tomada de consciência transformada numa ação. Essa ação não é sempre imediata, não resolve nada imediatamente, mas revela que a sociedade quer participar das decisões junto com o Estado, junto com o mercado, junto com os produtores, os empresários e os trabalhadores. Esse conjunto de atores da sociedade e do desenvolvimento está pouco a pouco, e de maneira diferente, em um país ou em outro, construindo o novo contrato social a que me referi.
Com a nova geografia, a nova economia e com esses novos atores sociais, como resolver os gargalos das macrometrópoles – os problemas do saneamento, da habitação, da mobilidade urbana?
Até agora falamos de contextos. Muito bem. Vamos falar da cidade. Ou das macrometrópoles, como você está colocando. Acho que em primeiro lugar é preciso perceber que a questão ambiental é muito grave. É a questão central do planejamento urbano. Houve um tempo em que eu me manifestei contrário à criação da Secretaria do Meio Ambiente no Estado de São Paulo. Considerava que isso colocava a questão ambiental em paralelo com outras especialidades, tais como o transporte público, a saúde, a educação etc., que se isso se cristalizasse como um ministério ou como uma secretaria, acabaria desviando o Estado ou o País, da questão central, que era o planejamento. A questão ambiental é a parte física do planejamento. E é assim que ela precisa ser compreendida. Se assim não for, ela acaba sendo algo minoritário, à espera de uma parcela do orçamento que nunca vai ter. Acontece que a pressão dos ambientalistas, justa e forte, foi finalmente absorvida em 1992, pelos governos, que transformaram a conferência do Rio de Janeiro, naquele ano (Rio-92), em conferência de chefes de Estado. Os governos da Inglaterra, da Alemanha e até dos EUA perceberam que a bandeira ambiental era importante demais para ficar apenas com a sociedade e cooptaram-na.
“A questão ambiental. Os governos dos países desenvolvidos arrebataram essa bandeira dos ambientalistas”
Seria conc
ebível, hoje, fazer planejamento sem dar prioridade à questão ambiental?
Jamais. A poluição decorre dos defeitos dos meios da mobilidade, das carências de obras de saneamento, porque todos os nossos rios e córregos – no caso de São Paulo – são canais de esgoto. Sei que as pessoas não gostam de falar de dejetos, de lixo. Não é agradável falar disso. Mas falar e sobretudo resolver esse problema é importante. Infelizmente nós tratamos o saneamento como se ainda estivéssemos na época da Roma antiga: construindo cloacas máximas. A única novidade é que, desde aquele tempo, a química foi inventada. Ela foi se aperfeiçoando e são colocados produtos químicos ao final do tratamento. Mas o sistema do esgotamento sanitário ainda lembra o dos antigos romanos. Razão teve a Fundação Bill Gates que, no ano passado, colocou US$ 10 milhões à disposição de técnicos e de cientistas, para inventar um novo banheiro, não no sentido do desenho das instalações ou da estética das torneiras, mas como tratar o esgoto in loco. No momento em que for descoberto o meio de resolver a higienização do resíduo orgânico in loco, estaremos eliminando a necessidade de construir redes de esgotamento sanitário, que são uma das estruturas mais caras de qualquer cidade. Há metrópoles, como Lagos, na Nigéria, que ainda não têm nem sequer 1 m de sistema de esgoto. Isso significa que a descoberta de uma nova tecnologia para tratar resíduos orgânicos vai ser fundamental para a qualidade de vida.
Então, temos aí, nas cidades, um dos nossos grandes paradoxos: somos muito modernos em alguma coisa mas secularmente atrasados em outras. Como resolver essa contradição?
Com recursos e pesquisas. O problema do saneamento é uma das questões urbanas mais importantes. No caso da poluição do ar temos no Brasil até algumas vantagens em relação a outros países, pois inventamos o uso do álcool combustível, o que diminuiu a emissão do dióxido de carbono na atmosfera. Contudo, é grave o problema ocasionado pela poeira e pela geração de calor dos 7 milhões de veículos na cidade de São Paulo. Sem falar em outros males, como aqueles provocados pelos ruídos.
Até aonde vai a nossa incompetência de animal humano na solução da mobilidade, que gera tais problemas?
É espantoso como avançamos na mobilidade da transmissão das ideias. Graças ao computador e à internet tivemos um avanço muito grande nesse campo e, hoje, transmitem-se ideias e reflexões com uma rapidez quase instantânea praticamente para todos os lugares do mundo.
Esses avanços nos levam à lembrança de que a criação do Protocolo da Web é muito recente. Data de 1991. Apesar disso, a web mudou os meios da comunicação no mundo e das condições do trabalho. Mas aí vem outro paradoxo: se as ideias podem percorrer o mundo tão rapidamente, o mesmo já não acontece com as cargas, nem com as pessoas. E quando jogamos isso sobre a nova geografia das regiões urbanizadas e as grandes metrópoles, o problema se agrava.
“O automóvel, sedutor, sensual, é uma invençãodo diabo, segundo Pirandello”
Também aí o novo e o velho são faces da mesma moeda. Há soluções modernas. Por que, então, estarmos derrapando em soluções antigas?
No caso brasileiro estamos obedecendo aos ditames dessa invenção do diabo que é o automóvel. Quem chamou o automóvel de invenção do diabo foi Luigi Pirandello e eu já fiz artigo uma vez especulando sobre isso, indagando: como é que o diabo age? Porque ele usa o automóvel e, como é um sedutor, sabe que o automóvel nos seduz porque é bonito, sensual, e toca numa coisa importante para o habitante urbano: a suposta liberdade que o automóvel proporciona, na medida em que pode nos levar aonde queremos e no tempo de que dispomos. Tempo e espaço no ambiente urbano. Até certo ponto esse conforto é verdadeiro. Só que, quando todo mundo recorre a esse meio de transporte ao mesmo tempo, tudo para.
E a solução. Como encontrá-la?
Poderemos encontrá-la se deixarmos de resistir ao uso do transporte público. Esse é um problema de certa forma resolvido em países desenvolvidos. Veja os exemplos da Europa. Mas como é difícil renunciar àquela invenção do diabo. Temos de nos convencer de que o transporte público é um sistema do qual o automóvel pode fazer parte. Mas, por causa de nossa cultura e de nosso individualismo, relutamos em deixá-lo em casa. Contribui para essa resistência a constatação de que o ônibus não é um veículo moderno nem confortável. E estamos muito atrasados na construção de linhas do metrô. Além do que, não nos rendemos à preocupação de que é absolutamente necessário que o ônibus circule em faixa própria. A resistência aqui em São Paulo contra os corredores de ônibus foi e continua fantástica. Acionaram até o Ministério Público contra isso. Mas, além do ônibus em faixa própria, modernizado e com as portas abrindo e fechando em ambos os lados, precisamos de metrô e trem, fundamentais na integração do transporte de massa.
O metrô. Por que não se investe maciçamente nesse meio de transporte? Por que estamos tão escandalosamente atrasados na construção de linhas, em relação a outros países, alguns até próximos de nós?
A alegação é de que construir metrô é muito caro. Mas não se pode dizer que São Paulo seja uma cidade pobre. Nós começamos o metrô em São Paulo em 1968 com o prefeito Faria Lima, que era um administrador de muita visão. Ele fez o metrô, assim como fez o primeiro plano diretor da cidade. Naquele mesmo ano a Cidade do México começava também a construção de seu metrô. Só que hoje a Cidade do México tem mais de 200 km de metrô, enquanto nós temos apenas 74,3 km. Evidentemente falhamos e não é por causa de dinheiro. É por causa de falta de visão, miopia e falta de vontade política. É claro que construir metrô em São Paulo é caro. A topografia e a geologia não favorecem. É mais fácil fazer metrô em Paris do que aqui. Mas é necessário.
“Os planos urbanísticos precisam privilegiar moradia e trabalho na mesma área”
Mas, ainda mantendo o tema da mobilidade urbana, a concentração dos serviços, da habitação, dos equipamentos e dos locais de trabalho em
regiões diversas e dispersas é uma realidade de difícil solução nas macrometrópoles. O que o urbanista sugere?
Sugiro a adequação. A descentralização desses serviços e utilidades. Temos de morar perto dos locais onde trabalhamos. Reconheço que nem todos podem ter essa liberdade de escolha, mas os planos urbanísticos precisam prever e permitir isso. Permitir e incentivar. O adensamento provocado por essa solução não é mal nenhum, quando há um planejamento adequado do ponto de vista da mobilidade: o sistema viário e os meios de transporte público frequente, confortável, civilizado.
“Prevalece o pensamento de Jean Jacques Rousseau: “O interesse público não é a mesma
coisa que o interesse de todos"”
Voltar a ativar os velhos centros urbanos. Essa seria uma solução possível. Por que é descartada?
São áreas centrais degradadas, em geral bem servidas de transporte público, de energia e por sistema de abastecimento de água e esgoto. Envelheceram e tem de haver investimentos para recuperá-las. São regiões muito vivas durante o dia e que morrem à noite. É necessário que haja uma política de investimentos para modernizar seus edifícios e estimular a moradia e o comércio, além de outras atividades, incluindo aí aquelas ligadas ao lazer e à cultura.
O que a arquitetura e a engenharia podem fazer, através de suas entidades, para somar competências de modo a melhorar a cidade, através da colocação, em prática, do plano diretor?
Nada impede a participação das entidades setoriais no processo. Elas, por exemplo, participaram ativamente da elaboração do plano diretor de 2002. Fiz mais de 100 reuniões públicas para debater o plano. E, se considerar os encontros com subprefeituras, sociedades de bairro etc., chegaremos à constatação de que fizemos cerca de 300 reuniões públicas. E em todas elas eu dizia uma frase de Jean Jacques Rousseau: “O interesse público não é a mesma coisa que o interesse de todos”.
A sociedade é plural, mas os interesses podem ser conflitantes. É para isso que existe o Estado. Ele tem que arbitrar e dizer: “O interesse público passa por aqui e não por lá”. E para os interesses que são afetados negativamente tem que haver negociação. Mas é necessário que as diversas partes se posicionem e tenham de se manifestar.
“Elaborei o plano diretor de Curitiba. Coube ao Jaime Lerner detalhá-loe implantá-lo”
Quais as cidades brasileiras que estão conseguindo resolver alguns dos problemas enfocados nessa entrevista? Curitiba seria uma delas?
Curitiba está com muitos problemas. Eu elaborei o plano diretor de Curitiba lá por volta de 1964 e 1965. Naquele tempo o Jaime Lerner era um arquiteto recém-formado. Ele participou do grupo local de acompanhamento do plano diretor. E, como na elaboração do plano, eu propus a criação de um instituto, o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba, o Ippu, eu propus ao prefeito da época, que era Ivo Arzua, que indicasse o Jaime para a presidência. O Jaime, indicado, fez um trabalho excelente do Ippuc. Mais tarde, naquele período dos governos militares, foi nomeado prefeito de Curitiba pelo governador Ney Braga. Ele fez uma gestão brilhante na primeira administração. Conseguiu detalhar o plano diretor que eu elaborei e o implantou. Ali havia inovações muito significativas. Uma delas era associar o zoneamento com o transporte público, com o maior adensamento ao longo dos eixos das linhas estruturais. Curitiba demonstra que isso funcionou muito bem. Hoje em dia se transformou em uma região urbanizada e tem muita resistência, dentro do próprio Ippuc, para abandonar o plano que lhe deu tanto prestígio. É necessário que ela lance um novo olhar sobre a realidade urbana atual.
E outras cidades? Outros exemplos?
Exemplos? Provavelmente algumas cidades do interior. Gostaria de citar São José do Rio Preto, que têm uma qualidade de vida boa e não apresenta disparidades sociais extremas. Tem agricultura, boa rede pública de ensino, universidade, diversidade e uma atratividade do ponto de vista cultural. Ribeirão Preto se encaixa também nessa posição.
Vamos a um voo panorâmico sobre algumas cidades do mundo. Como você, urbanista, vê a Cidade do México?
É pouco verticalizada, muito extensa, e isso se reflete dramaticamente em sua mobilidade, embora disponha de um metrô satisfatório. Além disso, como outras cidades da América Latina, tem diferença de renda muito sensível. Há bairros muito pobres na Cidade do México.
Vejamos outras cidades?
Buenos Aires. Ali, o problema central é defasagem de sua infraestrutura. É a cidade mais civilizada da América do Sul e uma das primeiras da região que construiu o metrô. É plana e esta topografia ajuda na construção de obras de infraestrutura. Mas o problema central é a pobreza de sua periferia. O desemprego, por conta da situação econômica geral, é muito elevado. Ali sobressai Puerto Madero, projetado e construído com um desenho correto. Mostra como áreas de aterro podem ser recuperadas em favor da cidade.
Santiago do Chile. Há ali dois problemas básicos: um é a pobreza de uma parte da população – o que não é diferente de outras cidades latino-americanas. O outro é a poluição devido à proximidade com a Cordilheira dos Andes. Esta cria uma bela paisagem, mas, por outro lado, dificulta a circulação do ar. Santiago possuía um transporte urbano baseado em veículos pequenos, a diesel, que poluíam demais. Isto mudou muito com a operação do metrô. A rede do metrô local é menor do que a de São Paulo, mas a cidade plana facilitou a construção desse meio de transporte. E o zoneamento é muito correto, no sentido de acompanhar as linhas do metrô, interligando os bairros novos.
Paris. Esta é a cidade que poderia ser modelo para São Paulo. Não é uma cidade tão grande e os problemas, em sua periferia, vêm sendo atacados com coragem pela administração atual. Tem escala, é dotada de equipamentos sociais, e a população é homogênea. Não se percebe abismo na diferença entre ricos e pobres. O planejamento regula o uso dos espaços urbanos públicos. Quase toda a cidade é tombada como monumento histórico. Há respeito em relação aos espaços públicos.
Amsterdã. Não só esta capital, mas a Holanda toda é uma região urbanizada. As condições do sítio local obrigaram um planejamento que interliga os di
versos núcleos urbanos até mediante o uso de um eficiente sistema de mobilidade que inclui a bicicleta. As distâncias são pequenas e há homogeneidade na população. Não vejo ali grandes riquezas nem grandes pobrezas. Eles enfrentam outro problema que outras cidades na Europa estão enfrentando: as migrações. Em vários países europeus, as ex-colônias estão dando o troco.
“Soluções? Vamos abrir as gavetas.
Elas estão abarrotadas de projetos”
Mas, retornando à Pauliceia desvairada, em que medida a falta de continuidade administrativa – as novas eleições municipais estão próximas – agravam os nossos problemas?
A falta de continuidade administrativa reflete o nosso atraso político. O plano diretor foi feito em 2002 e as subprefeituras, criadas em 2004. O plano diretor continua sendo lei e não foi alterado. O mercado imobiliário obedece a essa lei. Quando as coisas são transformadas em lei fica difícil de alterá-las. Ela garante uma certa continuidade. Acontece que em nosso sistema jurídico existem artigos de lei que muitas vezes não são autossuficientes porque necessitam de regulamentação. A lei é aprovada pelo Legislativo e a regulamentação fica por conta do Executivo. Se o Executivo não quer que a lei funcione, ele simplesmente deixa de regulamentá-la. Existem, hoje, 20 artigos da lei do plano diretor que ainda carecem de regulamentação. O que precisa haver é pressão da sociedade para que o prefeito faça a sua tarefa de casa.
Para concluir: não será, portanto, por falta de ideias e projetos que os problemas da cidade não são solucionados. Que você sugere?
Que sejam abertas as gavetas. Elas estão abarrotadas de projetos. E de bons projetos.
Fonte: Padrão