Internacionalização, o caminho da engenharia no próximo meio século

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O futuro da engenharia, ao menos para os próximos 50 anos,
é a internacionalização. Os mercados nacionais vão desaparecer e,
quem não estiver conectado com o mercado global,
não terá como permanecer em mercado algum

Nildo Carlos Oliveira

Não se trata de uma profecia. É apenas um prognóstico calcado na realidade de hoje. Uma projeção para o futuro considerando a velocidade das transformações que vêm ocorrendo no mundo. Quem faz essa afirmação é o professor José Roberto Cardoso, diretor da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Epusp).
Graduado em engenharia de eletricidade pela Poli em 1974, ele concluiu o mestrado, o doutorado e a livre docência em engenharia elétrica na mesma escola em 1979, 1986 e 1993. Realizou pós-doutorado no Laboratoire d´Electrotechnique de Greneble (França), no período de 1987-1988. É professor titular da Escola Politécnica e coordenador do Laboratório de Eletromagnetismo Aplicado. Foi vice-diretor da Epusp e responsável pela coordenação de mais de 30 projetos de transferência de tecnologia ao setor produtivo, para empresas tais como Eletropaulo, Cesp, Companhia do Metropolitano de São Paulo, ABB e Petrobras.
A entrevista que ele prestou para esta edição da Revista O Empreiteiro, que está comemorando 50 anos de atividades, desenha um panorama futuro, com base no que a Engenharia brasileira conseguiu construir a partir dos anos 1950. Em entrevista anterior, que havíamos feito com o engenheiro Vahan Agopyan, então diretor da Politécnica (OE 111/ setembro de 2003), e cuja matéria trazia o título Politécnica idealiza engenheiro do futuro, já captávamos as preocupações daquela instituição de ensino com a formação profissional para os anos vindouros. Naquela ocasião, o professor Agopyan assegurava: "A tecnologia de hoje não permite que o engenheiro negligencie os estudos. As informações novas surgem a cada momento e em cada canto do mundo. Por isso, é inconcebível um engenheiro fechado em seu casulo, sem uma relação continuada com o meio. O seu meio é o mundo."
A entrevista, hoje, com o professor José Roberto Cardoso, parece uma continuidade daquela anterior. Evidencia que a Poli avança apoiada em seus valores – aqueles que escreveram a história da engenharia ao longo dos anos: Paula Souza, Francisco de Fonseca Telles, Victor Mello, Milton Vargas, José Augusto Martins, Décio de Zagottis, Francisco Romeu Landi e tantos outros.
O diretor da Poli diz que a escola, sintonizada com o mundo atual, tem examinado as condições do mercado de trabalho para o engenheiro e identificado os pontos vulneráveis que precisam ser fortalecidos. Considera ser necessário que todas as escolas de engenharia se internacionalizem e levanta uma crítica a algumas áreas fundamentais para o crescimento brasileiro. Diz, por exemplo, que o Brasil constrói plataformas, navios e trens, mas sem elaborar os respectivos projetos. No futuro isso não pode acontecer, caso o País queira ser senhor do seu nariz. A seguir, a íntegra da entrevista.

Vamos falar do futuro. Como estará a engenharia brasileira nos próximos 50 anos?
Tenho a convicção de que ela estará completamente internacionalizada. Não haverá outra saída. Em um cenário desenhado para daqui a cinco décadas, não podemos imaginar empresas brasileiras de engenharia com perfil local. Elas estarão globalizadas e, o engenheiro, totalmente integrado numa rede complexa de profissionais, atuando nos mais diversas localidades.
O mercado brasileiro…
Não vai haver mais mercado brasileiro. Vai existir mercado internacional. A engenharia nacional precisa se preparar para encarar essa realidade. É por essa razão que as escolas de engenharia consideradas globais – e a Politécnica se encontra entre elas – têm-se preocupado muito com o processo de internacionalização. Estamos preparando os nossos alunos para que eles possam sair daqui, já no curso de graduação, com uma experiência internacional.
Mas, não estamos absorvendo tecnologia externa de forma suficiente. Empresas vêm para cá ou encaminham os seus produtos e acabam não promovendo a transferência de tecnologia em níveis adequados ao nosso desenvolvimento
Concordo, mas esse é um problema que a engenharia nacional tem de enfrentar e está enfrentando. A internacionalização vem sendo amplamente praticada no exterior. Os engenheiros europeus, americanos, chineses, são internacionais. Não atuam mais numa determinada localidade. Atuam na amplitude do mundo. Não há sentido no raciocínio segundo o qual se deve pensar hoje numa engenharia local, com traços locais. Nas próximas cinco décadas não haverá mais condições para se pensar dessa forma.

"Estamos reformulando
a estrutura curricular
para nos aproximarmos ainda mais desses centros avançados de ensino da engenharia"

Se há alguém aqui conquistando obras de engenharia em nosso mercado, teremos de nos habilitar para conquistar concorrências externas. É para isso que precisamos nos conectar nessa rede internacional e absorver tecnologias cada vez mais importantes e sofisticadas. Mas, para isso, temos de contar com mão de obra qualificada, que saiba o que está sendo feito e como o seu trabalho deverá ser realizado no mercado externo.
Nesse caso, como escolas de engenharia brasileiras poderão se habilitar para preparar os novos profissionais?
Precisam virar escolas internacionais. Aí você poderá me perguntar: Como fazer isso? Temos de praticar programas de cooperação com escolas de engenharia internacionais de primeira linha. Nós contamos, no caso da Escola Politécnica, com acordos firmados com escolas desse nível lá fora. Já encaminhamos cerca de 250 de nossos alunos para cursos na França, Alemanha, Itália, Inglaterra, Ásia. Temos alunos fazendo programa duplo e saindo até com dois diplomas. Eles fazem pequeno estágio de seis meses a um ano com validação de créditos na École Polytechnique , da França, no Instituto Superior Técnico de Lisboa e outras escolas de igual categoria em Turim, Milão e Palermo, na Itália.
Atualmente estamos reformulando a estrutura curricular para nos aproximarmos ainda mais desses centros avançados de ensino da engenharia. A reforma curricular tem em vista todas as novas tecnologias que vêm sendo pesquisadas e aplicadas, com ênfase maior nas ciências básicas. É para que o aluno saia dos bancos universitários com uma formação de ciências básicas profunda. Não conclua o curso obtendo conhecimento apenas de matemática, física, química e toda a cadeia de laboratórios associada. O conjunto deve proporcionar-lhe uma concepção um pouco mais, digamos assim, generalista da engenharia. Porque está patente que a inovação se dá basicamente com o engenheiro generalista, que se volta para atividades múltiplas. O especialista

em matéria específica é muito amarrado e não consegue, no geral, dar contribuições inovadoras, sobretudo enquanto jovem.
O avanço ocorre a partir de valores consagrados na fase dos pioneiros da Politécnica…
O presente não exclui os valores do passado. É uma soma. Aquela engenharia do começo da década de 1950 era, de certa forma, um tanto generalista. Tínhamos o engenheiro mecânico-eletricista, o engenheiro civil arquiteto, engenheiros com uma visão ampla da engenharia. No entanto, levando em conta as circunstâncias da época, o conhecimento era limitado.
Apesar disso, tivemos engenheiros que conseguiam dominar, naqueles limites, uma quantidade enorme de conhecimentos, na teoria e na prática, por conta das grandes obras projetadas e construídas no País, nos diversos segmentos da infraestrutura – estradas, ferrovias, hidrelétricas. Mas aquela fase foi passando e chegamos à década de 1970, quando começou a haver uma imensa pressão em favor da especialização. Nessa etapa, a etapa que ficou conhecida como a do "milagre econômico", a exigência era no sentido de que as escolas formassem o engenheiro a fim de que, já no dia seguinte ao da formatura, ele pudesse ingressar no mercado de trabalho. Foi exatamente com essa finalidade que houve aquele esforço em favor da especialização. Passamos, então, a contar com uma grande quantidade de habilitações nos cursos de engenharia.
Mas, depois, veio o apagão
Ele começou a acontecer, como resultado da política econômica e das contingências internacionais, na década de 1980 e começo da década de 1990. O governo deixou de fazer investimentos na área da infraestrutura e, em consequência, a primeira profissão a receber o impacto desse sacrifício foi a engenharia. Fato curioso: naquela etapa da vida brasileira a engenharia passou a ser uma profissão de desempregados. Um terrível prejuízo para o Brasil. Os engenheiros viraram suco, viraram economista, viraram tudo, menos profissionais da engenharia. Era rara uma família que não tivesse um engenheiro desempregado. A tragédia dessa situação se refletiu na juventude, na geração que queria e precisava aprender, especializar-se, crescer. Os jovens se desesperançaram e se afastaram da profissão. Qual o jovem, naquela época dos anos 80 e 90, que gostaria de fazer um curso para ficar desempregado?

Nesse cenário, qual foi a postura da Poli?
Ela se posicionou coerentemente com a sua tradição. Persistiu mantendo a qualidade de seus cursos. A posição tradicional da escola sempre atraiu os talentos. Apesar dos problemas com a falta de obras na engenharia, novos talentos procuraram-nos, possivelmente na expectativa de que as coisas mudassem, pois o Brasil não poderia trilhar outro caminho, senão o do crescimento. Enfim, a busca pela engenharia, na Poli, naqueles anos, continuou a ocorrer, apesar das limitações do mercado de trabalho, aqui mencionadas.

"Na época da falta de investimentos em infraestrutura,
a engenharia passou a ser
uma profissão de desempregados"

Mas, quando as coisas mudaram, as escolas de engenharia não foram apanhadas, digamos assim, no contrapé? A evasão não continuava a ser uma tragédia?
Analisemos a questão da seguinte forma: ali pelo final dos anos 90, começo do ano 2000, houve, sim, um boom mundial em função da explosão chinesa e do crescimento da economia em outros países asiáticos. De repente, houve a constatação: iríamos precisar de engenheiros e não tínhamos, como ainda não temos, um número suficiente de profissionais nessa área para fazer face à demanda. Esse foi um grande problema que nos foi colocado.
Se fizermos um levantamento da situação atual na engenharia chegaremos a uma conclusão muito interessante: não precisamos criar mais escolas nessa área. Criar escolas não é absolutamente o caso. Nós dispomos de 180 mil vagas nas escolas de engenharia, no 1º ano. No entanto, apenas 30 mil ou 35 mil, se formam, por ano. Isso significa que perdemos quase 80% desses nossos alunos no meio do caminho. A evasão nas escolas de engenharia é vergonhosa.

E qual a causa dessa "evasão vergonhosa"?
Nossos alunos chegam nos cursos sem uma formação adequada, em especial nas matérias de maior interesse para aquela finalidade. Refiro-me a matérias tais como física, matemática, química, desenho etc. Sem esse conhecimento, eles não têm como acompanhar o curso e desistem. Outros o abandonam por motivos financeiros. A maior parte das escolas de engenharia, atualmente nas mãos da iniciativa privada, são muito caras.
Para tentar reduzir as evasões, o empenho é fazer plano emergencial a fim de melhorar o rendimento. E já temos de prever a preparação desses futuros profissionais para o próximo estágio do mercado – a internacionalização.

Hoje, quais são os segmentos mais avançados da engenharia, do ponto de vista da "internacionalização"?
Sem dúvida nenhuma, a engenharia mecânica e as agregadas, incluindo a tecnologia dos materiais, pesquisas e engenharia eletrônica. Toda a indústria automobilística está muito avançada, internacionalizada. Os engenheiros, nessa área, até aqueles que operam em seus escritórios, se encontram permanentemente conectados com a rede de engenharia afim no mundo inteiro, porque todos eles se encontram envolvidos em um objetivo, digamos assim, único.
A engenharia espacial poderia estar ainda muito mais avançada do que está. Ocorre que ela se insere na questão da defesa nacional e acaba ficando um pouco restrita aos seus países de origem. Mas tem evoluído muito, dentro de suas finalidades estratégicas.
Nessa área, no caso brasileiro, tem ocorrido avanços por conta dos investimentos em submarinos nucleares. Em se tratando de objetivos estratégicos, a internacionalização é complexa. Há acordos internacionais e os objetivos são muito direcionados.

E, professor Cardoso, como o senhor analisa a questão da engenharia de projetos, no País, em especial para empreendimentos de tecnologia de ponta?
Foi muito bom termos levantado essa questão. Um problema que foi detectado recentemente pela Petrobras foi justamente o fato de não temos engenheiros de projeto em alguns segmentos. Posso garantir que não se está fazendo mais projetos no Brasil. Nós fabricamos trens, mas não os projetamos; fabricamos navios, mas não projetamos navios; fabricamos plataformas de petróleo, mas não projetamos plataformas de petróleo; a Embraer fabrica aviões, mas não os projeta. E, pela falta de engenheiros de projetos, a Petrobras vive uma dificuldade muito grande. Como opera com tecnologia de ponta, precisa de projetistas brasileiros. Não pode depender de projetistas do exterior para resolver seus problemas nesse segmento, pois se trata de tecnologia que tem de ficar aqui e ela não pode deixar que esse conhecimento

migre para os seus concorrentes lá fora.

Isto significa que, ao menos nessa área, continuamos a ser reféns dos países ou empresas que dominam determinada tecnologia, do ponto de vista de projeto?
Significa muito mais. Significa que hoje estamos virando mestre de obras do planeta. Por isso, precisamos dar uma atenção especial ao projeto. E o projeto se faz dando ao engenheiro uma formação sólida em ciências básicas.

"A evasão nas escolas
de engenharia é vergonhosa"

Outra consideração que gostaria de fazer, nessa entrevista, é sobre a questão da "gestão". Por que tanta atenção à gestão? Tão-somente à gestão? A engenharia brasileira, em nossos dias, ficou muito "gestão", como se isso fosse tudo. E não é. Precisamos mudar um pouco esse paradigma.

E no caso da engenharia civil? Como estamos?
A única engenharia, que conta com projetos elaborados no Brasil, é a civil. Mas nesse caso não teria outro jeito mesmo. Vai se projetar um viaduto, uma ponte, uma rodovia, tem que haver projeto específico. Não se pode importar isso. Daí, a evolução que se observa no segmento da engenharia de cálculo. A engenharia civil ainda preserva seu potencial próprio, nacional. Mas, na maior parte dos demais empreendimentos, a presença da engenharia brasileira no projeto não é plena; é marginal.
Ao contrário do que alguns pensam, considero que a engenharia civil dispõe, aqui, de um mercado aberto. Temos uma demanda por engenheiro civil muito grande. Quantos engenheiros civis nós formamos por ano? Cerca de 8 mil? É muito pouco para esse mercado atual, considerando as grandes obras que estão previstas. É por isso que os jovens da engenharia civil estão se divertindo. Têm um mercado de trabalho imenso. Eles sabem que a nossa engenharia civil hoje muito "explodida", com uma quantidade enorme de atividades simultâneas.

Nessa área, considerando as mudanças climáticas, as grandes obras no fundo do mar e outras complexidades na chamada mecânica dos solos, como se encontra a engenharia geotécnica?
É uma das mais importantes, em razão das grandes estruturas que estão sendo construídas, incluindo toda parte de prospecção de petróleo. A geotecnia tem participação fundamental nessa área. A interação estrutura-solo requer grande desempenho dessa engenharia, que teve aqui na Poli um avanço muito expressivo, como resultado de notáveis professores. Outros avanços importantes ocorreram na engenharia de túneis, em razão de obras que foram ou estão sendo construídas ao longo do traçado de rodovias, ferrovias, metrôs. Claro que tem havido avanços também na engenharia de materiais para a construção civil, campo em que são desenvolvidas pesquisas para baratear e melhorar a qualidade das edificações e facilitar os processos de montagens.

O senhor acha ser necessário um apoio mais incisivo do governo e da iniciativa privada no processo de internacionalização do engenheiro para os próximos 50 anos?
Acho o seguinte: o jovem tem de se preocupar em ter uma carreira internacional se ele quiser ser um profissional com possibilidades no mercado de obras globalizado. Ele precisa obter essa experiência no mercado internacional, mesmo que esta não seja conquistada na graduação, mas na pós-graduação. Ficando algum tempo no exterior, em alguma escola, laboratório de pesquisa, etc., ele acabará assimilando conhecimentos. Porque, nesse processo de internacionalização, não basta ele conhecer e ter fluência numa ou em mais línguas específicas. Mais do que isso, ele precisa se identificar com os usos e costumes locais, apropriar-se da cultura local, mediante a integração que a prática profissional lhe possibilite.

O governo brasileiro tem sinalizado com algum aporte com vistas a essa internacionalização?
Ele vem adotando algumas ações nas escolas de engenharia, em especial na fase da graduação. A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capess) tem feito programas que permitem dar bolsas de estudos para que estudantes de graduação fiquem no exterior em períodos de seis meses e até um ano. A Capes e o Conselho Nacional de Pesquisa de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), estão sensíveis a isso a essa visão do mundo. A Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo (Fapesp), ainda não tomou nenhuma ação nesse sentido. Ela não está se envolvendo com a graduação. Mas a Capes, ligada ao Ministério da Educação, sim.
Embora a internacionalização esteja na ordem do dia, no governo, quero deixar claro que esse processo precisa também ter o apoio maior dos empresários. Empresas do exterior, que se encontram operando aqui no País, poderiam fornecer bolsas de estudos para que nossos alunos possam fazer estágios lá fora, mesmo na matriz dessas empresas. E, as empresas brasileiras, poderiam se esforçar igualmente nesse sentido. A manutenção de um aluno no exterior não significa custos demasiados. Ele sobrevive com uma mesada da ordem de 600 ou 800 euros. E a contrapartida, considerando a experiência que ele obterá, são alguns passos no caminho da internacionalização. Então ficamos assim: ou nos internacionalizaremos ou ficaremos, no caso da engenharia de projetos, na condição de mestres de obra do planeta.

Fonte: Estadão


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