Madeira-Mamoré: obras executadas em sete anos foram marcadas por condições de trabalho absolutamente adversas, com muitos operários mortos
Construída entre 1907 e 1912, por empresários e engenheiros Americanos e Ingleses, sob concessão do governo brasileiro, a legendária Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (E.F.M-M), com 364 km de extensão cortando a selva amazônica, entrou para a história da engenharia brasileira como símbolo do esforço humano contra as forças da natureza, e ficou conhecida como a Ferrovia do Diabo. O nome se deve às grandes perdas de vidas humanas e às dificuldades encontradas durante sua construção. Consta que nada menos que 6.000 trabalhadores morreram de forma trágica nas frentes de obras, vítimas de flechadas de índios, afogamentos, picadas de animais silvestres e doenças como malária, febre amarela, tifo e tuberculose.
A idéia de construir uma ferrovia ligando os rio Madeira, em Porto Velho, e Mamoré, em Guajará-Mirim, do hoje estado de Rondônia, para servir de canal de exportação da borracha brasileira produzida na fronteira com a Bolívia, remonta à metade do século XIX. E quem possivelmente a difundiu pela primeira vez foi o general boliviano Quentin de Quevedo, em 1861, seguido do engenheiro ferroviário brasileiro João Martins da Silva Coutinho. O fato é que naqueles idos de 1861 o general Quevedo, descendo o rio Madeira, viu a necessidade de encontrar uma solução para a transposição das 18 cachoeiras do rio Madeira, a fim de que o trecho se tornasse navegável. Só assim seria possível o estabelecimento de uma ligação do Brasil com o Atlântico, via Bolívia, depois que a guerra do Paraguai interrompeu a navegação ao longo da bacia do Prata.
O engenheiro João Martins da Silva, que viajara pelo Madeira a serviço do governo da província do Amazonas, com o objetivo de estudar a viabilidade da navegação e da colonização naquelas áreas, considerou um projeto que previsse um sistema integrado de navegação a vapor e ferrovia. A diplomacia brasileira da época entendia que essa possibilidade extravasava os limites do ponto de vista econômico e adquiria uma conotação geopolítica. A partir dessa perspectiva, o governo imperial assinou, com a Bolívia, o Tratado de Amizade, Limites, Navegação, Comércio e Extradição, abrindo caminho para a ligação Madeira-Mamoré, embora sem especificar se ela seria feita por ferrovia. Em fins daquele ano os engenheiros alemães Joseph e Franz Keller (pai e filho), que haviam trabalhado na construção de várias ferrovias brasileiras, realizaram estudos para o governo e apresentaram propostas prevendo a construção de um sistema de planos inclinados, capaz de permitir aos navios superar os declives do leito do Madeira e Mamoré, a abertura de um canal de navegação na margem direita das cachoeiras ou a construção de uma estrada de ferro entre Santo Antônio e Guajará-Mirim.
O coronel norte-americano George Earl Church, com vivência na região e que era considerado um homem de espírito aventureiro, inclinado para o enriquecimento a qualquer preço, conseguiu, em 1870, a concessão do Império para fazer a ferrovia. Para tanto foi constituída a empresa Madeira-Mamoré Railway Co. Ltda. O governo Imperial concedera a George Earl Church uma série de privilégios para que ele tocasse o empreendimento, incluindo direitos de servidão e mineração e controle sobre uma área de 1.394 km2 ao longo da linha férrea. Ocorre que nenhuma das empresas por ele contratadas conseguiu levar o projeto adiante. O governo brasileiro acabou por cassar os direitos que havia concedido ao coronel Church.
As obras da ferrovia só se tornaram possíveis – e irreversíveis – com o advento do governo republicano quando, em 1903, sob a égide do barão do Rio Branco, foi assinado o Tratado de Petrópolis entre Brasil e Bolívia, pelo qual o País obrigava-se a fazer a construção "por si ou por empresa particular".
Em 1907 instalou-se em Santo Antônio a empresa May, Jekyll & Randolph, do empresário norte-americano Percival Farqhuar, que já havia construído os portos de Belém e Manaus e era detentor do controle da navegação do rio Amazonas, da construção e exploração das linhas de transportes urbanos, telefônicos e de energia, não só de Manaus e Belém, mas de diversas cidades brasileiras.
Essa empresa, contando não só com mão-de-obra brasileira, mas também procedente da Índia, Escócia, China, Grécia, Suécia, Bélgica e de outros países, iniciou a construção da ferrovia utilizando material rodante, peças metálicas para pontes e outros materiais e insumos, oriundos da Inglaterra e dos Estados Unidos.
As obras foram executadas entre 1907 e 1912 em condições de trabalho absolutamente adversas. Quando finalmente foram concluídas, o Brasil entrava no período da decadência do ciclo da borracha. A produção dessa matéria-prima, na Ásia, superava as exportações brasileiras do produto e a ferrovia não conseguiu alcançar o retorno econômico esperado. Nem mesmo com o transporte complementar de passageiros, castanha, peles de animais silvestres, toras beneficiadas de madeira, etc. A Madeira-Mamoré Railway, não vendo mais futuro na ferrovia, tratou de devolver a concessão, deficitária, ao governo, sem, entretanto, arcar com a indenização prevista no contrato.
A estrada de ferro ainda funcionou precariamente até 1966, quando passou à responsabilidade do Ministério do Exército. Em 1968 entrou em operação uma rodovia ligando Porto Velho a Guajará-Mirim, seguindo o traçado da ferrovia, e contribuiu para liquidar as perspectivas da ferrovia. Atualmente o leito da ferrovia foi substituído por duas estradas pavimentadas: a BR-364 (Porto Velho-Abuanã) e a BR 425 (de Abuanã a Guajará-
Fonte: Estadão