Valeska Amorim (*)
Quando escuta o barulho de helicóptero rasgando o céu, a cuidadora de idosos Eliane Santos Salgado, de 35 anos, se assusta e corre para a janela. Em questão de segundos, vêm à mente dela imagens do dia 5 de novembro de 2015, quando o rompimento da barragem de Fundão, na unidade industrial de Germano, entre os distritos de Mariana e Ouro Preto (cerca de 100 km de Belo Horizonte), provocou a morte de 19 pessoas e uma onda de lama que devastou distritos próximos. O mais atingido foi Bento Rodrigues, onde morava Eliane.
Quase nove anos depois, a tristeza divide espaço com a alegria e com a esperança de reconstrução de uma vida em segurança.
Ela abre, orgulhosa, as portas de uma bela casa de dois andares, muito espaçosa, com móveis e eletrodomésticos novinhos. E com uma linda vista de Novo Bento Rodrigues, como foi batizado o município que está sendo construído a 9 km do antigo vilarejo, sob responsabilidade da Fundação Renova – entidade que administra a reparação dos danos causados pelo rompimento da barragem da mineradora Samarco.
Não esquece do que ficou pra trás e que nunca mais verá, como uma carta de amor escrita pelo então namorado que ela guardava com muito carinho. Mas comemora a residência onde ela vive com ele, dois filhos (13 e 9 anos), três cachorros, uma calopsita, um periquito e dois papagaios. Lar de onde avista boa parte dos vizinhos com os quais dividia a Rua Olinda, em Bento Rodrigues, onde nasceu e viveu por quase três décadas. Mesmo nome da via onde mora hoje, há quase um ano, no Novo Bento Rodrigues.
“Ela (a arquiteta) bateu um papão comigo e entendeu minha vida em menos de uma hora. Fez o que eu queria, não quis mudar nada”, comemora Eliane que, apesar da satisfação, não esquece da vida pacata que levava no distrito. Um contraste com o canteiro de obras que está o Novo Bento Rodrigues, e há casas ainda não estão prontas.
A família de Eliane é uma entre as cerca de 50 que já estão vivendo em Novo Bento Rodrigues. O projeto inclui 480 residências em reassentamentos sociais, mas 130 famílias desistiram de morar nas comunidades de origem, preferindo ir embora, recebendo casas ou indenizações para viver em outro lugar.
A casa ficou do jeito que ela quis, assim como ocorreu com todos os outros moradores, que participaram de mais de uma dezena de reuniões com arquitetos para definir os projetos. Esta foi apenas uma das particularidades encaradas pelas empresas contratadas pela Fundação Renova, entidade responsável pela mobilização para a reparação dos danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão, em Mariana. Uma organização sem fins lucrativos, resultado de um compromisso jurídico chamado Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC), que define o escopo da atuação da fundação: 42 programas que se desdobram nos muitos projetos que estão sendo implementados nos 670 km de área impactada ao longo do rio Doce e afluentes.
A Fundação Renova reúne técnicos e especialistas de diversas áreas de conhecimento, dezenas de entidades de atuação socioambiental e de conhecimento científico do Brasil e do mundo. No pico das obras, entre o fim de 2022 e o início de 2023, somou-se mais de 6 mil pessoas (entre colaboradores próprios e parceiros) trabalhando no processo de reparação, de Mariana até a foz do rio Doce, que fica na região Nordeste do Estado do Espírito Santo – onde a lama de rejeitos de mineração chegou na tarde de 20 de novembro, 15 dias após o rompimento da barragem, mudando a cor da água e causando impactos à vida do rio e da região costeira.
A Revista O Empreiteiro visitou Novo Bento Rodrigues no fim do mês de abril, onde encontrou mais de 1.210 trabalhadores mobilizados em Novo Bento Rodrigues, na finalização de grande parte das obras dentro do prazo acordado com Poder Público – dezembro deste ano.
O projeto urbanístico foi implantado com o envolvimento dos moradores. A comunidade participou ativamente do planejamento das áreas comuns, desde a escolha do terreno. A área escolhida por 206 (92%) das 230 famílias que participaram do processo de definição é conhecida como Lavoura e pertencia à empresa ArcelorMittal. O terreno destinado à construção é de 89 hectares.
Além de casas, foram construídas igrejas, um posto de saúde, uma escola e praças. E como Elaine contou, o projeto de cada casa foi feito de acordo com o desejo dos proprietários.
Até março de 2024, além da infraestrutura concluída, 192 imóveis residenciais e comerciais haviam sido concluídos – incluindo escola, estações de tratamento de água e esgoto (ETA e ETE) e posto de serviços –, de um total de 248 previstos. Um total de 115 imóveis foi entregue aos novos moradores até 29 de março.
“O processo é muito particular, pois existem moradores que ainda não se decidiram – se querem casa ou indenização. Das famílias que definiram estar no processo de assentamento, estas obras terminam em dezembro deste ano. Se algum dos outros moradores que não se decidiram vieram a se decidir, será estabelecido com eles um novo prazo. Em média, as casas têm demorado, desde a conclusão do projeto-executivo, de oito meses a um ano para ficarem prontas”, detalha Wallace Ferreira, diretor de Engenharia e Obras da Fundação Renova.
Processo participativo
A implantação de Novo Bento Rodrigues incluiu diversas oficinas para avaliar as propostas conceituais da nova comunidade. Mais de 70 versões do projeto urbanístico foram desenhadas antes de atingir o modelo final, validado pelos moradores em 2018. Todas as etapas foram debatidas, alinhadas e decididas por eles.
Após a aprovação, cada família teve um arquiteto disponível para elaborar um projeto individualizado para a sua casa, de acordo com sua vontade. A equipe de engenharia e arquitetura fez, em média, 13 encontros com cada núcleo familiar, desde o desenho do projeto, a base da construção, a estrutura, o acabamento e até a entrega das chaves, buscando construir residências customizadas. No auge dos trabalhos, 49 profissionais de arquitetura se debruçaram nos esboços das casas, o que resultou em mais de 26 mil croquis.
Características básicas das residências originais foram mantidas, dentre elas, o número de cômodos e sua disposição, quintais com espaço para hortas e até mesmo detalhes internos, como os ladrilhos dos mosaicos. Um showroom foi criado em Mariana para que os moradores pudessem escolher os acabamentos, como azulejos, pisos, pias, torneiras e itens elétricos.
As construções das casas começaram em 2019. Em março de 2020, com o início da pandemia de Covid-19 no Brasil, as obras foram paralisadas, seguindo o Decreto Municipal de Mariana. A partir de junho daquele ano, foram retomadas gradualmente, com a testagem de 100% dos trabalhadores e o contingente reduzido para atender às exigências sanitárias. Diante da impossibilidade de realizar encontros presenciais, algumas ações com as famílias, como o desenho dos projetos individuais, passaram a ser realizadas por telefone ou videochamada.
A construção de cada imóvel só teve início depois da aprovação final do desenho pelo morador. Durante o processo, as famílias participaram de vistorias guiadas, de acordo com os marcos da obra, e também visitas livres, seguindo o desejo de cada núcleo familiar. O tempo individual na definição do novo lar foi respeitado.
Terraplanagem individualizada, de menor impacto
De acordo com Wallace Ferreira, diretor de Engenharia e Obras da Fundação Renova, o processo de terraplenagem de Novo Bento Rodrigues foi bem individualizado também, por questões de licenciamento ambiental e para diminuir o volume, o movimento de terra. E, também, para se ter um projeto mais sustentável.
“Sabíamos que demoraria um pouco mais, mas teríamos um processo mais sustentável, com menos movimentação de terra. Se pudéssemos comparar este reassentamento para outros, a grande diferença é a individualização de projetos. Cada morador com seu projeto individual, traz uma não-padronização da construção. Acaba tendo que trabalhar de forma individualizada, não permitindo uma padronização como, por exemplo, se comparado a um reassentamento que pode ser feita em outra localidade – com casas tipo A, tipo B, tipo C, com um número X de casas padronizadas, onde você acaba padronizando a construção e pode acelerar, otimizar processos”, salienta.
E no caso de Novo Bento Rodrigues, por ser muito particularizado, as construções foram únicas. Muitos moradores quiseram preservar a história da família. Em algumas casas foram instalados pedaços de ladrilho da casa original.
Sustentabilidade
Algumas soluções adotadas também tornaram o empreendimento sustentável. A terraplanagem do terreno, por exemplo, foi realizada lote a lote, em vez de ser feita na região como um todo. O processo foi mais lento, mas de menor impacto.
O projeto da escola de Novo Bento Rodrigues, por sua vez, contempla a captação de água da chuva para ser usada em atividades como irrigar o jardim e lavar as mãos e os pisos. Já o asfalto utilizado nas vias é produto de um processo de reciclagem que tem como base a borracha de pneus que seriam descartados.
A ETE foi construída em um terreno mais afastado das residências. Ela tem um sistema 100% biológico e vai tratar os esgotos das casas e bens coletivos. O sistema utilizado em Novo Bento Rodrigues não gera odor, e a água é devolvida ao rio Gualaxo do Norte após o tratamento, contribuindo para a preservação ambiental.
No novo distrito, há cerca de 5 mil metros quadrados de área verde por pessoa. Mais de 600 mudas de árvores de 21 espécies estão sendo plantadas.
Tamanho dos terrenos
O distrito de Bento Rodrigues, devastado pela enxurrada de lama que deslizou de duas barragens, era bucólico e calmo. O lugarejo, que pertence ao município de Mariana, região Central de Minas, possuía aproximadamente 600 casas, que abrigavam duas mil pessoas. Carros, casas e tudo o que havia pela frente do mar de lama foi arrastado. A rua principal era um dos acessos à comunidade. Os rejeitos atingiram cerca de 15 metros de altura. Apenas 20% das casas ficaram de pé. A lama também arruinou parte do patrimônio sacro de Bento Rodrigues. Da igreja de São Bento, que havia sido erguida no século XVII, quase nada restou. Apenas os primeiros degraus da escada de madeira e da pia batismal.
Como reconstruir um município aos olhos dos próprios moradores. Como saber o tamanho das casas, da escola, da igreja, dos pomares que eram cuidados pelas famílias já que praticamente tudo foi destruído. A lama também levou documentos e escrituras com informações sobre cada um daqueles imóveis.
O diretor de Engenharia e Obras da Fundação Renova, Wallace Ferreira, explica que foi feita uma espécie de regra geral. Aos moradores que tinham a documentação, foi preservado o que constava na escritura. Em alguns casos, o imóvel foi construído em medidas maiores, pois foi determinado, junto ao poder público. Cada lote tem o mínimo 250 m². A área construída individual tem o mínimo de 75 m² – mas cada núcleo familiar pode solicitar 20 m² a mais, a título de compensação.
“E aqueles que não tinham foi autodeclaratório: era uma casa de tantos metros, criava tal coisa, tinha determinado animal. A gente optou por reproduzir o que o morador autodeclarou. Mas obviamente que algumas pessoas autodeclararam a menor. Definimos por um padrão mínimo de 150 metros quadrados. Pessoas que tinham casas de 90 metros quadrados ou menos tiveram direito de adquirir casa de 150 metros. Se o canil tinha um metro quadrado, fizemos um de cinco. Tudo adequado à essa norma. Na realidade, todas as casas acabaram maiores do que tinham na origem, a título de compensação. Ficaram maiores que as da origem. Foi uma regra acompanhada pelo Ministério Público que foi acertada nos termos do acordo que fizemos com o poder público”, salienta o representante da fundação.
Movimento de caminhões nas ruas
Bonito aos olhos de quem visita, Novo Bento Rodrigues ainda não tem identidade própria. São moradores se adaptando à nova vida, outros visitando a casa em construção, comerciantes à espera de mais famílias para ver o negócio prosperar. E muitos, muitos caminhões levando e trazendo material de construção. As ruas estão sujas de terra. São poucas as pessoas que se vê andando por elas.
Nem mesmo crianças. Elas são levadas à Escola Municipal Bento Rodrigues e entregues em casa em vans disponibilizadas pela Fundação Renova.
Não há filas de pessoas aguardando por atendimento no posto de saúde. As consultas são agendadas. O primeiro comércio inaugurado foi a Mercearia Barbosa´s, que vende “de tudo um pouco”. Fica na Rua Olinda, uma das principais. E para onde estava se mudando o casal Maria Cecília, 30 anos, e Alessandro Márcio Pinto, de 40. Ela, estudante de Serviço Social, nunca morou no “Bento antigo”. Ele, motorista de ônibus, sim. Foi nascido e criado lá.
Os dois estão juntos há cinco anos. Ele tem duas filhas (18 e 13 anos) e Cecília tem um pequeno. Casa de dois andares (a anterior não tinha, mas ele já idealizava ampliar), na região mais alta, de onde vê praticamente toda a comunidade emoldurada pela Serra do Caraça, de onde pode avistar o Pico do Frazão.
“Tudo é muito bonito e tranquilo. A expectativa é para uma mudança suave”, avalia Cecília, que está casada com Alessandro há cinco anos – ela não morava em Bento Rodrigues, conheceu o marido quando ele morava em Mariana, onde a Samarco hospedou as famílias após a tragédia e enquanto as casas no novo distrito eram construídas.
“Não era o que esperava para a minha vida, mas com o impacto do que aconteceu, a gente tem, como diz o ditado, de caçar outro rumo. Lá era uma roça, aqui é um condomínio.
As casas são totalmente diferentes, mas eles nos deram a oportunidade de fazer do jeito da gente. Vizinhança é toda conhecida, a família vai estar perto”, comemora Alessandro, que vai morar perto do pai, que já se mudou para a rua de baixo, de primas e da mesma vizinha com quem se acostumou a bater papo quando moravam no distrito destruído pela lama. E espera, em breve, retomar os jogos de truco e churrasco na rua que costumavam divertir a ele e aos amigos no fim do dia.
Enquanto isso, ação na Justiça já dura 9 anos…
Em janeiro deste ano, a Justiça Federal condenou a mineradora Samarco e as acionistas Vale e BHP a pagar R$ 47,6 bilhões para reparar os danos morais coletivos causados pelo rompimento da barragem. Conforme a decisão, o montante deverá usado exclusivamente nas áreas impactadas. Em abril deste ano as três empresas anunciaram que haviam ampliado o valor ofertado em compensações de R$ 42 bilhões para R$ 72 bilhões, o que fez com que as ações da Vale na bolsa valorizassem, com investidores antevendo um ponto final para um imbróglio jurídico que se arrasta há quase nove anos.
No entanto, a Advocacia Geral da União e o estado do Espírito Santo rejeitaram a nova proposta. De acordo com a AGU, em nota, a rejeição aconteceu porque a oferta das mineradoras “não representa avanço em relação à proposta anterior, apresentada e discutida em dezembro de 2023”, além de conter “condições inadmissíveis” que desconsideram o que “já havia sido exaustivamente debatido e acordado” desde que as tratativas estão em andamento.
A União e o ES afirmam que o aumento do valor ofertado pelas empresas para financiar as medidas de reparação foi feito em conjunto com uma redução drástica nas obrigações que as mineradoras já haviam concordado em assumir durante as negociações.
BHP e a Vale informaram que mantêm o interesse em negociar. A Samarco disse acreditar que “todas as partes chegarão a um acordo comum”.
Na proposta, as mineradoras reduziram o plano de retirar 9 milhões de metros cúbicos de dejetos do Rio Doce para 900 mil metros cúbicos, o que foi considerado “inadmissível” pela União e os estados. As empresas também retiraram o compromisso de monitorar áreas contaminadas.
A ação corre sob confidencialidade no Tribunal Regional Federal da 6ª Região, em Belo Horizonte. As mineradoras afirmam que a indenização total chegaria a R$ 127 bilhões, somando o que já foi aplicado na Fundação Renova até hoje (cerca de R$ 37 bilhões).
Críticos nas comunidades impactadas na região perguntam como se justifica o retrocesso das mineradoras quanto aos compromissos já acordados anteriormente, como o volume de dejetos a ser removido do rio Doce – visto como medida elementar por técnicos ambientalistas na recuperação do ecossistema local? Esses especialistas lembram que o processo de recuperação vai se prolongar por décadas.