O fator animal

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Na hora de executar rodovias, é preciso considerar a fauna local e prever medidas de proteção e mitigação. O assunto foi tema de workshop em SP

 

Guilherme Azevedo

 

Medidas para a preservação da diversidade da fauna devem ser incorporadas desde o início da elaboração do projeto de empreendimentos lineares, como rodovias. O estudo das espécies preexistentes, de seu comportamento, é base inclusive para a escolha do traçado e de medidas para mitigar impactos da construção.
 

A disciplina que rege esse conjunto de medidas se chama ecologia de estradas (road ecology) e foi debatida em São Paulo no workshop “Ecologia de Rodovias: Princípios integrados de engenharia e ecologia para rodovias mais sustentáveis”. O encontro foi organizado pela Desenvolvimento Rodoviário S/A (Dersa) e teve como destaque o pesquisador holandês Marcel Huijser, do Western Transportation Institute, departamento da Universidade do Estado de Montana (EUA). Marcel é um dos principais estudiosos e difusores no mundo dos princípios da ecologia de estradas.

 

A disciplina é relativamente nova no mundo; vigora de algumas décadas para cá, com especial força nos Estados Unidos, Canadá e em alguns países da Europa, como a Holanda, mas vem ganhando força com o avanço de normas ambientais cada vez mais severas na hora de executar empreendimentos rodoviários, por exemplo. Na abertura do workshop, Pedro da Silva, diretor de engenharia da Dersa, engenheiro responsável pela elaboração e coordenação de grandes projetos da empresa, como o trecho norte do Rodoanel Mário Covas (SP-21), em construção, frisou as novas condições e condicionantes: “A construção era o início, o meio e o fim do projeto. Hoje, se a construção for o meio de tudo, eu diria que já é uma vantagem”. Pedro da Silva garantiu que na Dersa não há hoje obra que não leve em conta, desde o início, os aspectos ambientais e sociais envolvidos em cada projeto. “Se não tiver a vertente social e a vertente ambiental, a obra não sai.” E assumiu, como benefício obrigatório: “Uma obra não pode ser uma cicatriz, ela tem de conviver com o que está ali”.

 

O pesquisador Marcel Huijser: Defesa de princípios sustentáveis

 

Marcelo Arreguy Barbosa, gerente ambiental da Dersa, foi o segundo a falar para o auditório formado por profissionais da própria empresa e de companhias de serviços de engenharia, entre as quais participantes de empreendimentos sob a supervisão e gestão da Dersa. Barbosa listou medidas que a empresa vem adotando nos projetos, como o acompanhamento e gestão dos impactos sobre a fauna e a flora de cada sítio e a adoção de medidas para mitigar e compensar possíveis danos. “Temos de nos preparar para fazer com que nossas rodovias permitam o fluxo seguro da fauna sem afetar as plataformas rodoviárias”, exemplificou. Para ter uma noção do tamanho do problema, segundo estimativa do Centro Brasileiro de Estudos em Ecologia de Estradas, da Universidade Federal de Lavras (MG), 15 animais silvestres morrem atropelados nas estradas brasileiras por segundo; 1,3 milhão por dia; e 475 milhões por ano. Efetivamente, uma tragédia ecológica. Qualifique esta conta com o fato de muitas dessas colisões se darem com animais de porte considerável, como capivaras (que ainda andam em grupos), e temos aí um quadro de insegurança também humana, com impactos econômicos igualmente consideráveis.

 

Passagem para fauna sobre rodovia dentro do Parque Nacional de Banff, no Canadá. Importa o convívio harmonioso da rodovia com seu entorno

 

A colisão com capivaras (Hydrochoerus hydrochaeris) é hoje a mais frequente, pelo menos em sete rodovias do Estado de São Paulo, conforme estudo realizado por Marcel Huijser, Fernanda Abra (USP) e John Duffield (Universidade de Montana, EUA).

 

Imagem do projeto do Olin Studio para a passagem animal no interior do Parque Nacional White River, no Estado do Colorado (EUA)Imagem do projeto do Olin Studio para a passagem animal no interior do Parque Nacional White River, no
Estado do Colorado (EUA)

 

Passagens para fauna

Passagens para a travessia segura da fauna foram aliás o principal tema da palestra do holandês Marcel Huijser. Jeito despojado, barba por fazer, calçado apropriado para longas caminhadas nos pés, ele começou nos lembrando de uma pré-condição, até evidente, mas tantas vezes ignorada: “O ambiente não é algo que a gente adiciona ao projeto. Ele é a condição, não pode ser negligenciado”.

 

O pesquisador defendeu a participação de ecologistas desde a fase de projeto de empreendimentos lineares (rodovias e ferrovias) e a busca do maior número possível de informações sobre os animais de cada região atravessada. Para a elaboração de medidas de proteção e mitigação, situou, é preciso conhecer quais são as espécies que naquele lugar vivem, como se comportam, como interagem.

 

A escolha dos locais para a instalação de passagens deve obrigatoriamente nascer da observação e identificação dos pontos onde hoje ocorrem atropelamentos e acidentes com animais, ensinou Marcel. “Não importa o que se vai construir, se se construir no lugar errado.”

 

A estrutura das passagens pode variar na largura, na forma, no material empregado, em sua constituição, em suma. Entretanto, seja de que dimensão e forma for, deve conter as mesmas condições do ambiente do entorno, em termos de vegetação e clima, por exemplo. Um animal não atravessará uma rodovia por uma passagem apenas porque queremos. Daí, pontuou o ambientalista, a existência de uma taxa até engraçada: a de aceitação ou rejeição dos animais, descoberta com o monitoramento (muitas vezes com a instalação de câmeras de vídeo) de fora e não de dentro das passagens. O monitoramento externo revela efetivamente o uso ou não da estrutura.

 

Há passagens para fauna de múltiplos tipos, específicas para alguns animais, muitas vezes, veados, onças, capivaras e até para pequenos répteis, como cobras e sapos.
Podem ser aéreas, em forma de viadutos ou pontes, como uma obra de arte especial mesmo; ou subterrâneas, como túneis e dutos.

 

Mais de um milhão de animais silvestres morrem atropelados todos os dias nas estradas brasileiras, contabilizam especialistas. Na foto, onça-parda atropelada na BR-459, em Minas Gerais

 

Outro recurso utilizado é evitar a travessia pura e simples com o cercamento lateral das rodovias. Isso tem sua validade, sim, explicou o estudioso, mas precisa levar em conta o comportamento das espécies existentes no local. Porque, dependendo da espécie, a cerca pode ser um malefício, como fator de isolamento de grupos. “Não é só cerca pela cerca.”

 

Otimismo

Marcel ainda se mostrou otimista com o futuro da ecologia de estradas no Brasil. Segundo ele, as chances de evolução por aqui são até maiores do que as nos Estados Unidos, por exemplo, onde, disse, só se tomam medidas para proteger animais quando eles põem em risco a segurança dos motoristas. “No Brasil existe uma grande preocupação com a conservação da biodiversidade, não só com o usuário. É uma preocupação mais ampla”, elogia, com o conhecimento de quem está ajudando a formar novos ecologistas de estradas no Brasil, ministrando aulas em universidades, como a USP.

 

O estudioso sublinhou ainda o fato de a disciplina que defende não se resumir a medidas de mitigação, mas sobretudo incorporar a reflexão sobre o tipo de transporte, forma e local de sua instalação: “Um dos grandes desafios globais é agora pensar sobre que transporte nós precisamos, em que locais: precisa estar lá? É realmente necessário? É uma rodovia? Uma ferrovia? Uma hidrovia?”, descreve. “Temos de pensar em qual meio é mais eficiente e menos agressivo ao meio ambiente.”

 

Se alguém ainda considera a ecologia de estradas uma questão menor ou menos importante, quando confrontada com a necessidade sempre urgente de executar e melhorar a infraestrutura, Marcel mostrou dados que indicam economia com a simples observação de passagens para fauna, haja vista a expressiva redução de colisão de animais com veículos e fatalidades humanas. Ecologia de estradas tem, sim, adequada relação custo-benefício. Há, contudo, ainda um outro ganho, menos numérico mas não menos importante: a preservação de espécies ainda desconhecidas, ou mal estudadas, mediante medidas ambientalmente corretas, na hora de edificar empreendimentos lineares. É um patrimônio de um país, possibilidade de ganhos concretos.

 

De tudo dito e ouvido, ficou uma convicção, portanto: o melhor mesmo é consultar um ecologista na hora de planejar e também na hora de executar uma nova estrada ou ferrovia. Combinado?

 

“Transbugio”

Aquela que é considerada “a primeira passagem aérea para fauna na história das rodovias brasileiras”, nas palavras de Marcelo Arreguy Barbosa, gerente ambiental da Dersa, atenderá aos nossos irmãos símios e deverá estar pronta até o fim do ano. Ela se localizará no km 25,8 da rodovia dos Tamoios (SP-99, conexão entre o Vale do Paraíba e o litoral norte paulista), no trecho duplicado do planalto.

 

Segundo a Dersa, a passagem superior para os macacos que habitam a região será executada com concreto armado e vigas pré-moldadas, como na construção de uma obra de arte convencional. A estrutura terá comprimento de 40 m e largura de 11,5 m. O tabuleiro será preenchido com uma camada de 1 m de solo e grama. Para conduzir os animais até a passagem, serão instaladas cercas de direcionamento nos dois lados da rodovia. O custo estimado é de R$ 2,43 milhões.

 

A escolha do local se baseou em observação empírica, embora sem estudo mais conclusivo. “Deduzimos que ali seria o melhor local”, defendeu Barbosa. A “Transbugio”, como a chamou carinhosa e divertidamente Pedro da Silva, diretor de engenharia da Dersa, precisou de empenho para ser aprovada e incluída no projeto final. Afinal, é algo ainda com que muitos de nossos gestores, engenheiros e empreiteiros não estão lá muito acostumados a lidar, mas estão descobrindo que é muito importante, até para a nossa própria preservação. O planeta dos macacos é o nosso também.]

 (Guilherme Azevedo)

Fonte: Revista O Empreiteiro


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