Diversos TAVs do mundo mostram que a complexidade dos modelos pode trazer fracasso ou sucesso aos operadores em diferentes épocas econômicas
"Até agora não vimos no mundo um único operador de trem de alta velocidade que tenha bons lucros." A afirmação, do vice-gerente geral da estatal China Communications Construction, Chang Yunbo, registrada pela correspondente em Beijing do jornal O Estado de S. Paulo, deve ter soado como uma bomba de efeito moral aos ouvidos dos planejadores do TAV brasileiro, ligando Campinas, Rio e São Paulo. Pior: a declaração do vice-gerente expressou a decisão final da empresa de ficar fora da concorrência para construir o trem-bala brasileiro. Segundo a análise do jornal, os chineses estão mais adaptados ao modelo africano, de negociação direta com os governos. Yunbo comunicou a resolução durante um seminário em Beijing sobre investimentos chineses na América Latina.
Na contramão do posicionamento chinês, uma avaliação dos vários sistemas de trens pode revelar que cada um tem problemas específicos. Países como a França, Alemanha e Japão vêm comprovando que a operação do trem de alta velocidade seria deficitária, se tivessem de amortizar os custos de construção das linhas. Enquanto isso, nos Estados Unidos, as operadoras de carga ferroviária temem compartilhar os trilhos com os novos projetos de trens de alta velocidade para passageiros e perder eficiência, que é considerada referência mundial. Obama liberou uma verba para várias linhas de TAV, mas os republicanos insistem em bloquear os projetos. Lá, as operadoras cobram a metade das tarifas de carga praticadas na Europa.
Os números exatos não são conhecidos ou estão embutidos dentro dos orçamentos das empresas ferroviárias estatais, que operam desde os subúrbios até os trens intermunicipais. Mas parece correto supor que as operadoras do TAV exigiriam um desembolso anual do Tesouro para poder fechar as contas, se tivessem de amortizar os custos de construção das linhas de trilhos.
O Japão foi o país que construiu o primeiro trem-bala, chamado Shinkansen, para orgulho da engenharia japonesa, em 1964, para "voar" a uma velocidade de 210 km/h. A velocidade média atual é de 262 km/h, sendo a máxima alcançada de 443 km/h. Entretanto, até hoje as quatro operadoras diferentes ainda carecem de subsídio anual do governo, a despeito de transportar com pontualidade nipônica 151 milhões de passageiros em 2008, numa rede de 2,459 km. A primeira linha, inaugurada em 1964, liga Tóquio a Shin-Osaka, percorrendo 515 km. Entre Hiroshima e Kokura, o trem-bala cobre 192 km em apenas 44 minutos.
De acordo com a Japan Railway & Transport Review, a troca da rede ferroviária convencional pelo transporte com trem de alta velocidade gerou um ganho calculado na casa das 400 milhões de horas, o que representaria um impacto econômico de cerca de 500 bilhões de ienes (US$ 5,8 bilhões). Isso sem contar o incremento social e cultural de cidades rurais antes isoladas dos grandes centros. Acontece que as últimas linhas construídas sofreram muito com as imposições políticas em detrimento das demandas reais. O que acarretou um enorme déficit no custo dos serviços além de baixa lucratividade. O débito chegou a 28 trilhões de ienes (US$ 328,9 bilhões).
Na Europa, o Train à Grande Vitesse (TGV) francês briga com a DB Bahn alemã pela hegemonia no mercado do TAV, embora atuem em parceria desde 2007 com o uso recíproco dos trilhos e estações nos respectivos territórios, ligando cidades importantes dos dois países. Por questões políticas, os trens de alta velocidade rodam sempre com operadores das duas nacionalidades na cabine de comando.
O TGV francês foi desenvolvido na década de 70 pela então GEC-Alsthom, hoje Alstom, e a estatal francesa Société Nationale des Chemins de Fer Français (SNCF). A primeira linha, de 1981, liga Paris a Lyon. Além da Alemanha, a Bélgica, Itália e Espanha implantaram trens de grande vitesse que se ligam à Suíça através da rede francesa, a Bélgica, Alemanha e Holanda pela rede Thalys e à Inglaterra pelo Eurostar.
A DB tem um histórico de eficiência no transporte de cargas, no qual detém a liderança na Europa, além de possuir um mercado mais extenso. Atingiu lucro de US$ 597 milhões, em 2009. A SNCF teve prejuízo de € 980 milhões neste ano, debitado nas exigências dos sindicatos dos trabalhadores, em especial os do transporte de cargas mas em 2007, gerou lucros de € 1,1 bilhão graças às altas margens de lucratividade do TGV. O TGV, que opera a velocidades maiores, teve vários anos de lucro, embora o crescimento recente tenha estagnado. Esses lucros naturalmente não contabilizam amortizar os custos de construção das linhas de alta velocidade.
Como a Comunidade Europeia liberou o tráfego dos trens entre os países e a atuação das operadoras, a concorrência tende a se agravar. A DB alemã vai testar o novo trem ICE-3 de alta velocidade para atravessar o Túnel do Canal da Mancha, monopólio do Eurostar francês desde 1994, a tempo de entrar em serviço comercial para atender a Olimpíada de 2012 em Londres. Mas, esse serviço depende da aprovação do governo francês.
Com serviços de carga ferroviária em vários países europeus, inclusive na França, a alemã DB se prepara para desafiar a SNCF no transporte de passageiros, onde esta é líder. Adquiriu este ano o controle da Arriva, da Inglaterra, empresa que opera ferrovias e ônibus em 12 países da Europa. A estatal francesa não ficou parada e comprou 20% de participação na empresa italiana que vai operar o TAV no país em 2011, a Nuovo Trasporto Viaggiatori, além de solicitar novas rotas domésticas na própria Alemanha.
O TAV americano pode esbarrar nos trens de carga lucrativos
Considerada a rede ferroviária de carga mais eficiente do mundo, os novos projetos de TAV incluídos no pacote de estímulo anti-crise do governo americano enfrentam a resistência das operadoras atuais, devido ao compartilhamento de alguns trechos CRITICOS de alta densidade de tráfego. As operadoras de cargas temem ter de reter os trens em estações, para abrir passagem para os TAVs. Embora em uso na Europa há anos, a única linha que se assemelha ao conceito TAV nos Estados Unidos é o trem Acela que liga Boston a Washington, via Nova York, que, na média, roda a 50% da velocidade limite de 240 km/h em razão das condições técnicas dos trilhos, nos quais trafegam ao mesmo tempo os trens de carga, a 80 km/h.
Um dos planos mais ambiciosos é o da Califórnia, que planejar investir US$ 42 bilhões para ligar San Diego, Los Angeles, San Francisco e Sacramento. O governo federal concede uma contrapartida inicial de US$ 8 bilhões, mais US$ 1 bilhão ao ano, para empresas que venham a implantar esses corredores para TAV, cortando o território americano do leste ao oeste. Ao compartilhar a mes
ma rede de trilhos, os operadores de carga temem a introdução da tecnologia de controle de tráfego, de alto custo, que os trens de carga dispensam. Mais do que isso, como o transporte de carga é um mercado desregulado há anos, eles temem a volta da regulamentação governamental, seguida de ingerência nas tarifas e lucros menores.
Mas o transporte de carga esteve próximo a bancarrota durante décadas por causa da regulamentação governamental, linhas deficitárias de passageiros e a concorrência de transporte rodoviário, que se agravou com a construção da rede interestadual de rodovias nos anos 50, financiada por imposto sobre combustível. A participação da ferrovia no transporte intermunicipal americano caiu de 75%, nos anos 20, para 35%.
Quando o governo liberou o transporte de cargas, as operadoras puderam competir em tarifas e contratos de longo prazo, elevando a produtividade em mais de 150%, desde os anos 80. Ajustadas pela inflação, as tarifas caíram cerca de 50% no mesmo período. A participação no transporte de carga das ferrovias cresceu para 40%, com forte contribuição do intermodal – contêineres ou reboques rodoviários colocados sobre vagão plataforma – que quadruplicou de volume em 25 anos.
Consideradas como as empresas de carga mais eficiente do mundo, as ferrovias investiram um total de US$ 450 bilhões desde os anos 80 mas a alta do petróleo e a capacidade restrita de transporte começaram a elevar as tarifas nos últimos anos, atá a recente crise global. Grandes usuários como mineradoras têm pressionado o governo no sentido de voltar a regulamentar as tarifas, além de obrigar as operadoras a investir em novas linhas e trens de maior capacidade.
O plano de estímulo anticrise do governo americano, ao priorizar os trens de passageiros de alta velocidade, utilizando os mesmos trilhos existentes, colocam as operadoras de carga num dilema. Como as linhas tradicionais apresentam cruzamentos em nível com rodovias, os trens de carga são limitados a trafegar nestes trechos a 80 km/h e os de passageiros normais a 130 km/h. Como esses mesmos trilhos vão comportar um TAV a 170 km/h?
Fonte: Estadão