É um engano imaginar que a disputa de espaço, entre rodovia e ferrovia, é algo de algumas décadas para cá. A briga é antiga e, no Brasil, se iniciou mesmo antes que as primeiras "baratinhas", da burguesia paulistana, ensaiassem, no começo do século passado, os primeiros passos ao longo da antiga estrada São Paulo-Santos.
Se recuarmos no tempo, vamos verificar que Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá, que inaugurou sua ferrovia em 30 de abril de 1854, ligando, no primeiro trecho, o Porto de Estrela, ao fundo da Baía de Guanabara, ao sopé da Serra da Estrela, talvez já imaginasse que ela não ficaria imune à emulação que despertaria com a Estrada União Indústria, de Mariano Procópio, ligando Petrópolis e Juiz de Fora, quase na mesma época.
Com o tempo, rodovia e ferrovia se tornariam adversários figadais. Nada daquela idéia de Mauá, de que a ferrovia deveria ser, em sua concepção, o passo mais decisivo para um sistema multimodal.
E, no entanto, a ferrovia veio a se revelar um meio de transporte consistente, responsável pela abertura e fortalecimento das economias das cidades por onde passava. O "chique", na fase da Companhia Paulista de Estradas de Ferro, era ir de trem. Ferrovia significava progresso sob vários aspectos. Onde a linha chegava, chegavam as industriais ou os grandes armazéns das safras cafeeiras. E as estações, pequenas ou médias, espelhavam a movimentação do progresso nas regiões favorecidas por esse sistema de transporte, transformando-se em ambiente de encontros sociais, onde ocorriam lacrimosas despedidas ou chegadas pontuadas de efusivas manifestações de alegria.
Políticos não podiam prescindir dos trens. E isso se observava aqui ou em outras regiões do mundo. Lênine, por exemplo, desembarcou em São Petersburgo, de trem, procedente de Zurique. Não fosse esse fato histórico, Edmundo Wilson não teria escrito sua obra, Rumo à Estação Finlândia. E, no imaginário do mundo, ainda está presente a linha Orient Express, que saía de Paris e chegava à antiga Constantinopla (Istambul), transportando os mistérios da Agatha Christie, com o seu infalível detetive Hercule Poirot.
Na acirrada disputa ferrovia-rodovia, o governo paulista resolveu, no começo da década de 1960, cortar as pernas da Companhia Paulista de Estradas de Ferro. Ele percebeu que os ferroviários formavam uma categoria profissional que poderia, quando decidisse entrar em geve, colocar o Estado em xeque. Essa possibilidade, aliada ao advento da indústria automobilística, contribuiu para o estímulo ao meio de transporte por rodovia. O carro, mais individualizado e mais prático, se ajustava a uma nova realidade. Por conta desses fatores todos, o trem, como sistema de transporte de passageiros, foi caindo em desuso, diferentemente do que acontecia na Europa e em outras regiões do planeta, onde continuou a ser utilizado, não apenas para carregar passageiros, mas para o transporte de produtos.
O trem ajudou a desenvolver e a unir várias regiões brasileiras. Apesar disso, não existem, hoje, no País, mais trens de passageiros regulares, exceto aqueles da Vale, ligando Belo Horizonte a Vitória (ES) e São Luís a Carajás, no Maranhão; e os trens metropolitnaos de algumas capitais, entre as quais São Paulo, Rio, Porto Alegre, Belo Horizonte, Salvador, Recife, João Pessoa, Natal, Fortaleza e Teresina.
Em algumas regiões, o usuário ainda está na expectativa de que o trem um dia chegue (caso da Transnordestina). E outros acham que, se o trem de alta velocidade chegar, fazendo o percurso Rio-São Paulo, dificilmente terão oportunidade de utilizá-lo: o TAV vem para brigar com o avião e a passagem jamais será inferior a R$ 250 reais.
Memória – A ligação Vitória a Minas
Trecho ferroviário da ligação Vitória a Minas, no livro Um retrato,
foto de Guilherme Young, uma publicação da Lithos Editora
Frase da coluna
"Na questão do saneamento brasileiro, os investimentos são desviados para outras áreas ou são aplicados inadequadamente por falta de projetos ou por falta de interesse político."
De João Alberto Viol, novo presidente nacional do Sinaenco.
Fonte: Estadão