Uma estratégia para usar e preservar os recursos naturais da Amazônia

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É muito difícil, hoje, tratar de qualquer tema sem que venha à memória uma advertência de Kofi Annan, que durante mais de uma década foi secretário-geral da ONU. Com essa experiência, ele insistia e ainda insiste: o problema central do mundo não está no terrorismo, como parece; está nas mudanças climáticas e na insustentabilidade dos padrões globais de produção e consumo, que já superam a capacidade de reposição do nosso planeta. “Esses problemas – diz Kofi Annan – é que ameaçam a sobrevivência da espécie humana.” Nada mais, nada menos.

Se é assim, se o nosso planeta já não consegue repor o que é retirado e consome cada vez mais (20% além da capacidade de reposição) – e isso faz avançar a cada dia a degradação do solo, do ar e da água, a perda da biodiversidade – , recursos e serviços naturais são o fator escasso no mundo, o fator mais importante. E se essa visão está correta – como parece estar – recursos e serviços naturais devem ser o início e o centro da estratégia de qualquer país.

O Brasil tem território de dimensões continentais, Sol durante todo o ano, clima favorável, 12% de toda a água que corre pela superfície do planeta, de 15 a 20% da biodiversidade planetária (garantia de futuro, novos medicamentos, novos alimentos, materiais para substituir os que se esgotarem), matriz energética com predominância de fontes renováveis, possibilidade de muitas energias alternativas e pouco poluentes: solar, eólica (só esta, um potencial duas vezes e meia maior que o atual consumo nacional de energia), das marés, das biomassas (etanol da cana de açúcar, biocombustíveis a partir da mamona, do dendê, do pinhão manso, do girassol, da soja, da celulose etc.). O Brasil é, por esse ângulo, o sonho de um mundo carente e em altas dificuldades.

Mas não temos estratégia nessa direção. Continuamos a poluir e desperdiçar nossos recursos hídricos (todas as bacias brasileiras, da Bahia, ao Sul, estão em situação crítica, por poluição ou assoreamento, diz a Agência Nacional de Águas, ao mesmo tempo em que desperdiçamos cerca de 40% da água que sai das estações de tratamento).

Estamos construindo até usinas termelétricas a carvão e implantando hidrelétricas em locais problemáticos, quando estudos da Unicamp, do WWF, da Coppe e de especialistas como o professor José Goldemberg dizem que podemos reduzir em até 30% o consumo atual de energia (como já provamos no “apagão” de 2001, sem nenhum prejuízo); ganhar mais 10% com a repotenciação de usinas antigas e de baixo rendimento; mais 10% reduzindo nossas perdas nas linhas de transmissão (onde se perdem perto de 15%, contra 5% na Europa e 1% no Japão). Ou seja, poderíamos ganhar 50% sobre a atual oferta de energia e tudo a custos algumas vezes menores que os da geração em novas usinas hidrelétricas ou termelétricas problemáticas.
E ainda há mais. Nosso programa de energias alternativas, o Proinfa, tem recursos inacreditavelmente baixos e há anos move-se a passos de lesma. Planejamos implantar várias usinas nucleares, quando tantos especialistas nos dizem que esse tipo de energia é altamente inseguro, muito mais caro e não tem destinação para o perigosíssimo lixo radiativo.

Continuamos sem um zoneamento ecológico/econômico que defina territorialmente onde pode e em que condições deve acontecer a expansão do etanol da cana – para não transformar em problema uma das possibilidades de solução para reduzir emissões de gases poluentes. Uma estratégia que não implique devastar o Cerrado ou a Amazônia, expulsar a agricultura familiar (que responde por mais de 60% do abastecimento interno de alimentos), contribuir para aumentar seus preços.

Continuamos, na verdade, a devastar nossos biomas. Levantamento recente da Fapesp (Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo) mostra que já suprimimos a vegetação em quase 30% do território nacional, 2,5 milhões de quilômetros quadrados: quase 600 mil na Amazônia, mais de 800 mil no Cerrado, 751 mil na Mata Atlântica, 300 mil na Caatinga, 87 mil nos Pampas, 17 mil no Pantanal. Isso, quando em um único hectare da Mata Atlântica ou da Amazônia podem ser encontradas mais de 460 espécies de árvores. A maior parte da nossa biodiversidade ainda não foi sequer estudada. E hoje, só o comércio mundial de medicamentos com base em espécies vegetais movimenta muitas centenas de bilhões de dólares a cada ano. Das 150 drogas mais receitadas nos Estados Unidos, 57% têm pelo menos um componente derivado dessa biodiversidade.

Quanto vale o conhecimento sobre o guaraná que os índios maué da Amazônia aprenderam com seus heróis mitológicos e transmitiram, até se tornar a base da indústria nacional de refrigerantes? Quanto vale o conhecimento sobre a pupunha, esse palmito amazônico que não era industrializável (por causa dos espinhos), mas que o Instituto de Pesquisas da Amazônia (INPA), com vários cruzamentos, chegou a um tipo manejável e que hoje abastece de palmito os mercados externo e interno, para substituir o quase extinto palmito juçara? Quanto valem o cupuaçu, o açaí, a andiroba e muitas outras espécies?

Mas é preciso lembrar que nenhuma dessas espécies pode sobreviver sozinha. Todas dependem de cadeias genéticas, reprodutivas, alimentares. Dependem da relação com outras espécies em ambientes específicos. Cada espécie é uma “obra prima da natureza”, diz o “papa” da biodiversidade, o biólogo norte-americano Edward Wilson. Em um grama de solo pode haver 10 bilhões de bactérias. No corpo humano há mais bactérias do que células. Insetos e fungos estão na casa dos quintilhões. Só de formigas existem mais de 10 quatrilhões, que, juntas, pesam mais que todos os seres humanos somados.

Na recente reunião da Convenção do Clima, em Bonn, Alemanha, um documento do governo alemão advertiu: a perda da biodiversidade que está acontecendo no mundo pode significar, até 2050, de 6 a 7% do produto bruto mundial. Porque, segundo a Sociedade de Zoologia de Londres e o WWF, de 1970 a 2005 perdemos 27% das espécies do planeta. Há quem diga que desaparecem três espécies por dia. Inclusive porque os países ricos, que, com menos de 20% da população total, têm quase 80% do consumo no mundo, usam 75% da chamada biocapacidade planetária – diz esse documento.

Definido esse panorama, cabe perguntar: qual deve ser, então, a estratégia para um bioma como a Amazônia, com seus milhões de quilômetros quadrados, um terço da biodiversidade brasileira, quase 80% dos recursos hídricos superficiais do país, alto potencial energético e mineralógico?

O começo da resposta está na estratégia nacional que o pa&iacute

;s precisa conceber e executar: a de valorização dos recursos e serviços naturais. Estes últimos, inclusive, têm um valor raramente considerado. Um estudo efeito por Robert Constanza e outros 13 economistas, na Universidade da Califórnia, mostrou que eles podem valer mais que todo o produto bruto mundial. Depois de calcular quanto custaria substituir por ações humanas os serviços que a natureza presta gratuitamente – fertilidade do solo, regulação do clima, manutenção do fluxo hídrico, conservação da biodiversidade etc. –, o estudo chegou à conclusão de que eles valem no mínimo uma vez e meia o produto bruto mundial. Por ano. A valores de hoje, uns 80 trilhões de dólares. Mas ninguém nos paga pela nossa parte.

Se definirmos essa estratégia de valorização, pode-se em seguida chegar à proposta que a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) vem fazendo há anos: desmatamento zero no bioma e forte investimento em ciência e formação de cientistas na Amazônia, voltados especialmente para o conhecimento da biodiversidade e sua utilização em novos medicamentos, novos alimentos, novos materiais. Deixar a expansão da agropecuária apenas para mais de 200 mil quilômetros quadrados já desmatados e hoje sem nenhuma utilização econômica. Ao mesmo tempo, buscar, nesse caminho, formatos geradores de trabalho e renda para a população – para que ela não os tenha de buscar nas atividades que implicam desmatamento e devastação (garimpo, madeira, expansão da agricultura e da pecuária em áreas inconvenientes).

Tudo isso esbarra em muitas questões. Como alguns estudiosos já mostraram, hoje custa três vezes menos trabalhar ilegalmente em uma área pública– derrubando árvores, vendendo madeira e repassando a terra para pecuaristas ou produtores de grãos – que trabalhar legalmente, comprando terra, pagando impostos, salários decentes, contribuições sociais. Mas o Estado brasileiro não consegue sequer saber onde estão os 47% do território amazônico constituído de terras públicas, porque só há cadastro de 4% das propriedades. Se soubesse e delas cuidasse, junto com mais de 12% da Amazônia que são reservas indígenas, mais as áreas de conservação permanente, teria controle sobre uns 70% do território.

Só que o orçamento do Ministério do Meio Ambiente é quase ridículo, pouco mais de meio por cento do orçamento federal (R$ 651 milhões no último número conhecido) e ainda tem todo ano uns 30% contingenciados. Por isso, o Ibama tem um número ridículo de fiscais para milhões de quilômetros quadrados. Uma amostra: numa das últimas crises por causa do desmatamento, o diretor desse órgão para a região de Alta Floresta, uma das que mais desmatam, mostrou que tem sob sua jurisdição 82 mil quilômetros quadrados (Estados do Rio, Espírito Santo e Sergipe, juntos); mas para controlá-los, apenas quatro funcionários e três veículos quebrados. Há cerca de ano e meio, o diretor do Sivam (Serviço de Vigilância da Amazônia, que custou US$ 1,8 bilhão e uma crise governamental) declarou ao jornal O Globo que, embora disponha de satélites de observação, estações de rastreamento e monitoramento, nunca recebeu uma só consulta ou pedido do Ministério do Meio Ambiente.

O Ministério do Meio Ambiente leva adiante seu projeto, transformado em lei, de entregar trechos de floresta a empresas privadas, para “manejo sustentável” (aquele em que, dispensada de manter qualquer reserva legal, a empresa retira de 1/30 dos hectares, a cada ano, os melhores espécimes, para só retornar depois de três décadas às mesmas áreas).

Muitos cientistas levantaram questões: e como se vai saber quais são os melhores espécimes sem conhecer detalhadamente cada hectare e se em cada um deles há espécies de 50 anos de maturação até 1.200 anos? Ou o que acontecerá com a biodiversidade se retiram os melhores espécies – não se está assim instaurando um processo de evolução às avessas, partindo dos exemplares mais fracos? Que acontecerá com o restante da biodiversidade que se relaciona com os espécimes retirados? Os países que entraram por esse caminho não ficaram sem as florestas, como na Ásia (Malásia, Papua-Nova Guiné), na África (África do Sul, entre vários), na América Latina (Bolívia, Paraguai, Peru)?

Na área mineral, muito teria de ser definido. Primeiro, como se pode fazer o aproveitamento nas áreas indígenas (onde está boa parte dos minérios) sem que elas deixem de ser – como apontam hoje vários estudos – o melhor caminho para a conservação da biodiversidade. Como fazer sem destruir as culturas próprias dos grupos indígenas, que, além de serem um direito desses grupos, podem conter formatos admiráveis de organização política e social (há no Congresso um projeto muito controvertido para permitir a exploração mineral)? E em que termos e para que se fará a exploração mineral?

Relatórios do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) vêm dizendo, há muitos anos, que boa parte dessa exploração mineral é feita para consumo nos países industrializados, que não recompensam os países exportadores pelos custos ambientais e sociais dessa atividade. Um dos exemplos mais apontados é o do alumínio, produto que a maior parte dos países industrializados não quer fabricar, por causa do alto consumo e custo energéticos (mais de 50% do custo total). E na Amazônia há o caso de Tucuruí, onde o poder público investiu bilhões de dólares na implantação da usina, inundou quase 3 mil quilômetros quadrados de floresta (sem sequer retirar a madeira), desalojou dezenas de milhares de pessoas e disseminou a malária – e passou a fornecer a energia com mais de 50% de subsídio para os produtores de alumínio e ferro gusa, principalmente. Ao cabo dos primeiros 20 anos do contrato, fora repassado para a conta de todos os consumidores nacionais o prejuízo de muitos bilhões que ficara com o Tesouro Nacional. Mas ainda assim o contrato foi renovado (com alguma redução no subsídio, ainda muito alto). E novas hidrelétricas são planejadas para atender inclusive a esse tipo de atividade.

Tudo isso, de certa forma, relaciona-se com a falta de “transversalidade” das políticas nacionais, como repetia muito a ex-ministra Marina Silva. Cada ministério agindo no bioma com sua estratégia própria, isolada, sem relacioná-la com as macro-questões do bioma – nos transportes, na agropecuária, nas minas e energia, no desenvolvimento industrial, em tudo.
E agora, com nova crise gerada pelo desmatamento que cresce e derruba uma ministra? Fala-se em zoneamento ecológico-econômico, mas só para o ano que vem, quando a soja, a pecuária e talvez o álcool já

tenham avançado ainda mais, favorecidos pela alta de cotações no mercado externo e no interno. Anuncia-se que se vai criar uma guarda nacional, com algumas centenas de servidores para fiscalizar milhões de quilômetros quadrados. Mas continua-se repassando a competência para autorizar desmatamentos a governos estaduais e municipais, que não só não têm estrutura como não têm capacidade de resistir às pressões políticas e econômicas locais.

Uma medida provisória (422) permite que áreas de até 1.500 hectares possam continuar recebendo crédito oficial, sem provar a legalidade de sua posse. Cerca de 70% das ações previstas em 2004 para conter o desmatamento não saíram do papel, diz o Greenpeace. O Ibama continua com 1.242 servidores para cuidar de 600 mil km² de reservas federais. O Congresso prepara-se para votar projeto que reduz de 80 para 50% as reservas legais em áreas de florestas primárias.

E o mundo continua a dizer que somos incompetentes, inclusive porque a Amazônia responde por 59% das nossas emissões de gases que intensificam o efeito estufa, por desmatamento, queimadas e mudanças no uso do solo. 59% de 750 milhões de toneladas de dióxido de carbono por ano (inventário nacional de 1994) significam quase 450 milhões de toneladas anuais. Que continuam crescendo. E afetando o clima naqueles países que protestam e criticam.

Vamos chegar a uma estratégia competente que possa enfrentar tudo isso ? Essa é a tarefa da sociedade brasileira: discutir o tema, transformá-lo em propostas, levá-las às campanhas políticas, exigir dos candidatos e governantes que as ponham em prática. Fora daí, seguiremos na velha rotina da retórica indignada e nada eficiente. Com altos riscos.

Fonte: Estadão


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