A saga da engenharia brasileira entre o mar e o planalto

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De um lado, o mar; de outro, o planalto. O nó do problema era a nova conexão entre um ponto e outro. Colocada diante das dificuldades que teriam de ser superadas, uma equipe multidisciplinar aceitou o gigantesco desafio de realizar a saga do mais moderno caminho da engenharia no mundo em direção ao mar: a segunda pista da Imigrantes.

“O sonho era de muitos, alimentado ao longo dos anos, antes mesmo da construção da primeira pista. As promessas eram reiteradamente renovadas. Mas coube à nossa equipe realizar o sonho de muitos e cumprir as promessas de outros, em favor de todos os usuários: dia 17 de dezembro de 2002 é o nosso ponto de chegada, com a inauguração da segunda pista.”

Irineu Berardi Meireles, presidente da Ecovias, vinha diariamente consultando o calendário. Todas as manhãs, ao chegar à sede da empresa, junto à barragem da Billings, e mesmo antes de atender a qualquer telefonema ou recado urgente, olhava obsessivamente para a folhinha e observava: “Ontem a nossa contagem regressiva completou mais tantos dias. Hoje vamos vistoriar novamente as obras para sincronizar os tempos e garantir a antecipação de cinco meses. O verão não tarda e não vai nos apanhar desprevenidos”.

Esse paulista de Santos trabalhou durante 25 anos como diretor da Companhia Brasileira de Projetos e Obras (CBPO), que desde a década de 80 se constituiu em mais um braço firme da Odebrecht na área de infraestrutura. Embora não sendo engenheiro, mas administrador de empresas, operava na área de desenvolvimento de negócios de engenharia. E, como tal, teve participação importante em obras diversas no Brasil e no Paraguai, acompanhando a construção de hidrelétricas, rodovias etc. Quando o consórcio Unicon, responsável pela construção de Itaipu, estava em processo de formação, foi a equipe com a qual ele trabalhava a primeira a ser contratada para os serviços de implantação da hidrelétrica no rio Paraná.

Posteriormente, já em São Paulo, quando a CR Almeida ganhou a licitação para assumir a concessão do Sistema Anchieta-Imigrantes, ele foi colocado diante do que considerou o maior desafio de sua vida: enfrentar o trabalho de unir diversos especialistas da engenharia – inclusive engenharia financeira – para a construção da segunda pista. Foi então que olhou a serra. O planalto e a Baixada não teriam problemas maiores. Já a serra…E considerou: “Se ao menos ela não se movimentasse. Mas como se movimenta!”.

Ao lado disso havia uma dúvida profissional e mesmo existencial muito grande. Estava com a vida estabilizada, mantinha um relacionamento sólido com os amigos e parceiros e tinha a liberdade de adotar uma concepção de trabalho criativa no grupo Odebrecht. De modo que sair do antigo convívio significava deixar o certo pelo duvidoso, com uma circunstância: lá adiante estava a serra. E todos os que a desafiavam, desde a fase da primeira pista, ou muito antes disso, sabiam que ela não daria trégua um instante, colocando à prova as técnicas e as equipes mais experimentadas.

Sucesso do programa de concessão

A construção da segunda pista da Imigrantes tornou-se possível porque o então governador Mário Covas bateu o pé para colocar em prática o Programa Estadual de Desestatização (PED), sob a presidência de Geraldo Alckmin, na época, vice-governador. Ele demonstrara que o Estado perdera o poder de investimento e não teria como arcar com o peso dos recursos necessários à obra de tal vulto, a menos que, para isso, houvesse a participação da iniciativa privada. O programa de concessão rodoviária, iniciado em São Paulo em 1998, ganhou força e atraiu investidores. Hoje, os investimentos da iniciativa privada nesse programa, cuja continuidade está sendo assegurada pelo governador Geraldo Alckmin, somam valores da ordem de R$ 4 bilhões.

Ao aceitar o convite da CR Almeida para assumir a presidência da Ecovias, Irineu Meireles já havia analisado os prós e os contras: a necessidade do emprego de alta tecnologia para a construção, sobretudo dos túneis e viadutos; a questão ambiental que avultava como da maior prioridade, pois o maciço da Serra do Mar teria de ser tratado com a delicadeza exigida por uma das últimas reservas da Mata Atlântica; e a questão de financiamento, pois o Brasil vivia uma crise econômica grave, como os banqueiros internacionais olhando o País com um viés de desconfiança. Tais condições, portanto conspiravam contra empreendimento de tal magnitude, embora ele e os parceiros tivessem a convicção de que se tratava de um projeto notável. Em outras circunstâncias emergiria, na época, como um dos mais atraentes para investidores.
De início, a CR Almeida era a acionista única do consórcio Ecovias. Ela ganhara a licitação do Sistema Anchieta-Imigrantes por meio da Primav Ecorodovias, detendo 100% de participação. A Primav Ecorodovias atua ainda como sócia controladora da Ecovia Caminho do Mar, a ligação entre Curitiba e o Porto de Paranaguá, e da Ecosul, que é a ligação de Porto Alegre, Pelotas e o Porto do Rio Grande.

Ocorre que a CR Almeida decidiu ativar, para a formação do consórcio construtor da segunda pista, uma antiga parceira em obras anteriores, a italiana Impregilo, uma das maiores construtoras do mercado mundial com a qual, entre outras iniciativas, desenvolvera os trabalhos do canal de São Simão, hidrelétrica situada na divisa de São Paulo e Minas Gerais. Pelo contrato, a Impregilo ficara com 50% de participação e a CR Almeida, com o restante. No andamento de negociações posteriores, a empreiteira paranaense e a Primav resolveram agregar maior valor, ainda, ao negócio e, para esse fim, convidaram para somar forças, como acionista, a Impregilo. Esta, além de deter 50% no consórcio construtor passou a deter também 20% do controle acionário da Ecovias. A partir daí, a CR Almeida e a Primav ficaram com 80% do negócio e a Impregilo com 20%.

Enquanto era montado esse quebra-cabeça, que tinha em vista fortalecer a engenharia para levar à frente o empreendimento, por meio de um project finance, a Ecovias trabalhava para equacionar a questão da equipe, contratar o projeto e a obra e, concomitantemente, empreender a consecução dos recursos, considerando o cenário econômico, até ali, desfavorável.

As equipes e as obras

As equipes foram montadas de modo gradativo. A Ecovias encontrara uma equipe remanescente do Sistema Anchieta-Imigrantes, mas cuja cabeça ainda funcionava como o foco de empresa estatal. A fim de imprimir seu ritmo e filosofia de trabalho, a concessionária buscou pessoal da área de mercado financeiro e de construtoras e, aos poucos, pôde direcionar o foco de atuação, com todos os parceiros, para um mesmo lado, segundo os seus objetivos, considerando adicionalmente que a concessão era algo
diferente no País, pois significava colocar uma empresa privada para prestar serviço público.

Compostas as equipes, estas teriam de ser conscientizadas de que a concessionária, além de operar o Sistema Anchieta-Imigrantes e de construir a segunda pista, pretendia conquistar o ISSO 9002, a certificação que revelaria o esforço da empresa em favor da qualidade.

Para contratar a projetista, a concessionária entendeu que deveria buscar uma empresa que já detivesse experiência e conhecimento da obra anterior, ou seja, da primeira pista da Imigrantes. Mais do que isso: deveria possuir a massa crítica do conhecimento da Serra do Mar e de seus mistérios geológicos; que soubesse tratá-la com o respeito que se deve a um patrimônio ambiental dessa natureza, levando em conta a legislação pertinente. A escolha recaiu, portanto, na Figueiredo Ferraz Consultoria e Engenharia de Projeto, cujo trabalho foi adicionado à contribuição de outras duas empresas de alto nível: a In.co e a Geodata, ambas italianas, detentoras de amplo conhecimento de projetos de viadutos e túneis, respectivamente, com as quais foi constituído o consórcio de projetistas Ecoenge com os melhores nomes do mercado nacional e internacional.

Formados o consórcio projetista e o consórcio construtor – este constituído pela CR Almeida, Primav e Impregilo – a concessionária iniciou as obras contando com aporte dos acionistas e com recursos oriundos do pedágio. Só um ano e meio depois do começo efetivo das obras, ou seja, em abril de 2001, é que ela e os respectivos acionistas assinaram o contrato de financiamento com o BID, com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e com os bancos italianos Mediocredito e Centrale e Banca Nacionale del Lavoro (BNL), obtendo aporte de US$ 242 milhões. Reflete Irineu Meireles: “Ainda bem que tomamos a decisão de iniciar as obras independentemente de contar com os empréstimos. Se assim não fosse, como poderíamos conseguir antecipar o cronograma em cinco meses, dentro do prazo de quatro anos?”

A previsão é de que a Ecovias invista perto de R$ 1 bilhão nesta obra. O retorno para os investidores só terá início depois de nove meses.

Recordes derrubados

A pista descendente compreende, singelamente, a execução de 21 km de estradas. Mas, ao longo desta extensão, há 8,23 km de túneis (três) e 4,27 km de viadutos (nove), sequenciados num declive de 730 m. Nesse trecho, a concessionária e parceiros impuseram a necessidade de quebrar alguns recordes, se quisessem entregar a obra com antecipação prevista.

Os recordes se referem ao volume de escavação subterrânea, ao consumo de m³ de concreto e de volume de toneladas de aço, além do esforço para preservar o meio ambiente local. Mas nada disso ocorreu aleatoriamente. A escavação, a concretagem e o uso intensivo de tecnologias mais aprimoradas para fazer as obras de artes, tudo isso teve uma razão de ser, além de refletir a própria dinâmica da evolução do conjunto de técnicas, em nível de projeto e de engenharia, aplicadas para fazer viadutos e túneis.

Buscaram-se os projetos que mais se casassem, de forma harmônica, com a natureza. A distância entre os pilares dos viadutos, que na primeira pista era da ordem de 40 m, nesta obra é de 90 m. Com isto houve menos interferência no meio ambiente, ao mesmo tempo em que se obtinha maior leveza nas estruturas.

Na parte ambiental, houve a preocupação com a implantação de estações de tratamento de água, a fim de que as águas e os líquidos poluídos ou poluidores, derramados nas pistas e captados através de tubos dispostos ao longo do percurso e descarregados em caixas de coleta colocadas em cada boca de túnel ou viaduto, não entrem em contato com o meio físico da Mata Atlântica.

A tecnologia aplicada nas obras permitiu reduzir em 40 vezes as necessidade do sacrifício de árvores, em relação à obra anterior. Um exemplo: se na construção da pista anterior houve o sacrifício de 1.600 ha de desmatamento, nesta obra a área atingida é da ordem de apenas 40 ha. A concessionária promete que, para cada árvore retirada para o andamento da obra, outras dez serão replantadas.

O esforço até aqui já empreendido resultou na conquista, pela concessionária, da ISO 14001, confirmada pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), considerada uma das mais sérias associações, do gênero, no mundo.

Tal esforço foi reconhecido pelo BID, que considerou a obra uma referência mundial do ponto de vista ambiental, BNDES, outros organismos de crédito e ONGs nacionais e internacionais.

A difusão do trabalho e das preocupações com o meio ambiente tem contribuído para que a obra venha sendo visitada por representantes de governos do mundo todo. Já estiveram ali delegações da China, Suécia, Cuba, Coreia, Austrália e outros países.

Momentos críticos

Tudo foi planejado de modo a se evitar a ocorrência de momentos críticos. Mas a Serra do Mar é uma complexidade. O maciço, conforme Irineu Meireles salienta, “se move e surpreende mesmo os que estão acostumados aos seus caprichos”. Um dia, os trabalhos avançando em ordem, no cronograma previsto, houve uma precipitação pluvial atípica.

As águas se encachoeiraram no km 42 da Anchieta e provocaram a erosão de um trecho da estrada. Os técnicos vistoriaram o local e constataram que a serra se transformara, naquele trecho, numa pasta gelatinosa. O transtorno foi imenso para o tráfego, tanto do ponto de vista da economia, quanto do ponto de vista operacional.

Na época, o governador Mário Covas disse que a concessionária estava desafiada a recompor o trecho em 30 dias. Os danos eram muito extensos e não se acreditava que a engenharia pudesse fazer aquilo em prazo tão apertado. A recuperação foi feita, porém em apenas 23 dias!

A concessionária, para infundir confiança no usuário e estimular as equipes que trabalhavam no local, colocou uma câmara de televisão focando o andamento dos trabalhos para que estes pudessem ser acompanhados, via internet, pelos interessados, a qualquer hora do dia e da noite. O governador e a esposa estiveram depois no local para cumprimentar as equipes na reabertura desse trecho.

Outro momento crítico ocorreu em um dos túneis. Os serviços seguiam no ritmo necessário, quando ocorreu o desmoronamento. Abriu-se, no local, o que se chama, na gíria da escavação de túneis, de “capela”. O desmoronamento ocasionou um atraso de cinco meses no cronograma de escavação. Como a decisão de antecipar a obra em cinco meses já fora tomada e anunciada, o remédio foi triplicar os esforços a fim de que o atraso provocado pelo desmoronamento fosse
diluído no conjunto dos serviços e não comprometesse a data de inauguração.

Ponto de chegada

Enfim, a obra confluiu para o ponto de chegada. Irineu Meireles diz que a sua grande satisfação – e a satisfação dos parceiros – não é ter alcançado o objetivo de entregar a obra no prazo, após 39 meses de trabalho, e na qualidade exigida e especificada em cada pormenor dos projetos; mas a satisfação de haver superado as dificuldades impostas por fatores de toda ordem.

Por ora ele ainda não se deteve para pensar no dia seguinte. O verão vem por aí e ainda há muito chão a ser percorrido para se falar dessa obra que o usuário testará, na prática, a partir do dia 17 de dezembro. Mas do ponto de vista da engenharia rodoviária, ela já está reconhecida como uma das mais importantes do mundo.

Irineu só tem uma frustração: ele sabe que no dia 31 de dezembro vai haver congestionamento na Imigrantes, mesmo com as duas pistas funcionando. “Paciência, exclama ele, é impossível impedir que o pico de movimentação de veículos ultrapasse a capacidade de escoamento da Imigrantes. É a comemoração do Ano-Novo!”

Fonte: Padrão


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