As cidades vão crescendo e se apropriando de rios e lagoas e de todas as suas áreas de influência. Com o passar do tempo, a ocupação anarquicamente devastadora deixa marcas difíceis de serem removidas. Às vezes, os rios se vingam. Quando chuvas torrenciais lhes banham as cabeceiras e eles avançam por campos e cidades, não há como impedir que destruam e carreguem tudo o que encontrem pela frente. Mesmo aqueles que morreram precocemente, parecem ressuscitar nas estações chuvosas. E, embora sejam apenas uma caricatura do que foram, ocasionam inundações e paralisam metrópoles. O velho Tietê está aí para mostrar do que é capaz, apesar de inutilizado e colocado na camisa-de-força da poluição. Ele e o Pinheiros, a exemplo de tantos outros, são vítimas de administrações públicas ineptas, que não souberam respeitá-los.
O tema da ruptura e, eventualmente, da reconciliação, é tratado, com densa profundidade no livro Rios e cidades, ruptura e reconciliação, de autoria da arquiteta Maria Cecília Barbieri Gorski, publicado no ano passado pela Editora Senac São Paulo, com prefácio da paisagista Rosa Grena Klias. Tendo em mãos a dissertação de mestrado apresentada à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Mackenzie, a arquiteta não deixou que tantas informações, obtidas ao longo de cuidadosa pesquisa, acabassem esquecidas numa gaveta. Ampliou a estrutura do trabalho e o resultado é o aprofundamento do tema, com o exame das causas da deterioração de rios urbanos e das condições possíveis para recuperá-los. Daí, o aceno com as possibilidades de "reconciliação".
A arquiteta estudou vários rios pelo Brasil afora, dedicou capítulo especial ao "Estudo de casos internacionais" e examinou o impacto da deterioração da água no solo, na vida, na paisagem. Mas não se atém à denúncia. Todos os assuntos são tratados com rigor científico. Mostra que a recuperação não é mera figura de linguagem. Pode acontecer na prática. Veja-se, dentre outros, o exemplo do rio Los Angeles, Estados Unidos, na cidade do mesmo nome, cujo recorte de intervenção correspondeu a 59,2 km de extensão. Claro que obras de recuperação desse tipo não são fáceis. A divisão, por trechos, precisa considerar variações geométricas, capacidade de inundação, regime hidrológico, qualidade da água, valor do hábitat na área e o significado de tudo isso para o ambiente urbano.
Embora o livro leve em conta intervenções pontuais, como o caso do rio Cabuçu de Baixo e outros cursos d´água, na RM de São Paulo, não deixa de instigar a imaginação para a necessidade de um trabalho de conjunto, do ponto de vista nacional, para salvar outros rios, além do Tietê, Pinheiros, Guandu, rio Doce e das Velhas, Araguaia, Cuiabá. Estendo as preocupações para o São Francisco, sacrificado desde a nascente até a foz, em Piaçabuçu, entre Sergipe e Alagoas; o rio Negro, deteriorado na área de Manaus; Itajaí, Canoas e tantos outros que "o processo civilizatório" vai sufocando e levando para a morte.
Se não por outro motivo, o livro de Cecília Gorski já seria importante pela expectativa de "reconciliação" que provoca. Precisa ser um instrumento permanente de consulta, sobretudo por parte de administrações públicas modernas, que não podem mais incorrer em práticas antigas e destruidoras de nosso hábitat.
Fonte: Estadão