Nascido há 121 anos e morto há 60, Graciliano Ramos, ou o “mestre Graça”, como era chamado pelos amigos, será o grande homenageado da 11ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip 2013), de 3 a 7 de julho próximo. A homenagem será para o escritor. Mas, que tal se um dia ele viesse a ser homenageado também como homem público, mais especificamente, como administrador público?
A homenagem não seria de todo incoerente. Ao contrário. Seria o reconhecimento de que um administrador público sensível, exemplo de honestidade na prestação de contas no trato da coisa pública, merece ser saudado nesses tempos, senão em todos os tempos, pelos seus concidadãos.
Ele foi prefeito da pequena Palmeira dos Índios, em Alagoas, de 1928 a 1930. Anos difíceis, sem internet, computador, máquinas digitais de calcular. Todas as despesas e informações anotadas no papel com escrupulosa correção, eventualmente a lápis, para só depois tomarem forma de relatórios datilografados em antiga máquina de escrever, um objeto estranho, que hoje pode parecer anterior à época dos Afonsinhos.
Atualmente, com mais de 70 mil habitantes, Palmeira dos Índios, no agreste alagoano, longe estava, naqueles tempos ásperos, de se transformar na terceira maior cidade do estado. Por suas ruas passavam pessoas e bichos. E tudo era de uma carência sem limites. Foi esta cidade que Graciliano passou a administrar, simultaneamente aos esforços para escrever Caetés, o seu primeiro romance.
Urgia, no entanto, ao final do primeiro ano de administração, prestar contas ao governador. Seus relatórios inusitados suscitaram comentários públicos e acabaram atraindo a atenção de literatos do Sudeste e de outras regiões.
Ele começou a redação de um desses documentos dizendo que “o principal, o que sem demora iniciei, o de que dependiam todos os outros, segundo creio, foi estabelecer alguma ordem na administração”. Conta que havia no município inúmeros prefeitos: os cobradores de impostos, o comandante do destacamento, os soldados e outros que desejam também administrar. Segundo ele, “cada pedaço do município tinha a sua administração particular, com prefeitos coronéis e prefeitos inspetores de quarteirões”. Na luta para acabar com essa anomalia, alguns amigos não lhe davam nem três meses para levar um tiro.
Mas, ele foi tocando a prefeitura. Corrigiu os rumos e, dos funcionários que encontrou no começo da administração, “saíram os que faziam política e os que não faziam coisa nenhuma”. Ficaram aqueles que trabalhavam e “não se enganavam nas contas”.
No livro onde contabilizava receita e despesas observou: “… fiz despesas que não faria se elas não estivessem determinadas no orçamento”. Com os minguados recursos cuidou das exigências maiores da população: reparou ruas esburacadas, desviou o curso de águas que em épocas de trovoadas inundavam a cidade, mandou fincar postes para a iluminação pública, abriu e consertou estradas e multava infratores. Um dia, ao saber que um fiscal evitara multar o seu pai, o velho Sebastião Ramos, que descumprira posturas municipais, chamou o funcionário e fez ele lavrar o auto de infração, dizendo: “Prefeito não tem pai”.
Resumindo o final do relatório, informou ao governador: “Em janeiro do ano passado não achei no município nada que se parecesse com lei, fora as que havia na tradição oral. Constava a existência de um código municipal, coisa inatingível e obscura. Procurei, rebusquei, esquadrinhei, estive quase a recorrer ao espiritismo. Convenci-me de que o código era uma espécie de lobisomem.” Assim era Graciliano, o administrador.
Fonte: Revista O Empreiteiro