Chuvas atípicas, decorrentes das mudanças climáticas, provocam inundações,
deslizamentos de encostas, irreparáveis perdas humanas e materiais e expõem as vulnerabilidades da infraestrutura urbana e rodoviária brasileiras
As imagens dos estragos provocados pelas enchentes do final de 2008 e começo de 2009 em Santa Catarina, ainda estão presentes: cidades submersas, estradas tornadas impraticáveis pelos deslizamentos de pedras e terras, pavimento rodoviário em ruínas por causa das chuvas e da falta de serviços de drenagem das águas pluviais; árvores arrastadas pelas pistas de rolamento; residências soterradas; o porto de Itajaí destruído e um prejuízo acumulado, no Estado, de mais de R$ 200 milhões.
Essas imagens se repetiram, desta vez em, em dezembro de 2009 e em janeiro de 2010, em outras regiões brasileiras. Em São Paulo, bairros ficaram debaixo da água e um deles, o Jardim Pantanal, literalmente submerso no esgoto. O rio Tietê, objeto de ininterruptas e inconclusas obras de dessassoreamento e aprofundamento da calha, transbordou e suas águas avançaram bairros adentro. E até áreas raramente atingidas, antes, pelas inundações, acabaram debaixo de água.
O drama paulistano se estendeu a outras cidades do Estado e regiões. Na histórica São Luís de Paraitinga, no Vale do Paraíba, a devastação atingiu mais de 300 imóveis de um conjunto arquitetônico representativo da época em que a exportação do café proporcionou-lhe enriquecimento e a aquisição de bens culturais e sociais. Houve destruição também em Cunha, Guararema, Bofete e em outras cidades, onde pontes e trechos de estradas estaduais e vicinais foram danificados pelas águas. Até a via Dutra, em um trecho, sofreu o processo erosivo desencadeado pela ação das chuvas.
Diversas dessas ocorrências foram agravadas pelo elevado número de óbitos, conforme aconteceu na Baixada Fluminense, em Angra dos Reis e em Agudo-RS, onde trecho de uma ponte sobre o rio Jacuí desabou, matando dez pessoas que ali se encontravam observando a extensão dos estragos ocasionados pelas enchentes.
Em São Paulo, as promessas de obras para redução e contenção das enchentes, são divulgadas a cada nova ocorrência. Mas se torna inviável resolver um problema que não é localizado e que está na matriz da urbanização da cidade. Recentemente, em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo, a geógrafa da USP, Odette Seabra, estudiosa das várzes dos rios Tietê e Pinheiros, disse que há na cidade 43 piscinões em funcionamento. Juntos, eles poderiam comportar um volume de água muito grande. Contudo, são insuficientes para evitar as inundações. Da mesma forma, segundo ela, seria simplório atribuir o problema apenas aos bueiros entupidos, quando a situação é provocada pelo processo da urbanização anárquica.
Passam os anos, tenta-se adotar legislação prevendo medidas preventivas para evitar o uso e a ocupação desordenada do solo urbano, mas as ocupações prosseguem. Por que isso não para? – Resposta de um geólogo, que traz o problema atravessado na garganta: "A transferência de um título eleitoral tem força suficiente para que uma ocupação irregular seja `absorvida´."
Em recente seminário no Instituto de Engenharia de São Paulo, o presidente da entidade, Aluízio de Barros Fagundes, cobrou do poder público municipal, um conjunto de obras cuja execução resultaria na redução dos danos provocados por temporais. Segundo ele, com projetos e obras capazes de repensar a condução das águas, a melhoria da rede de esgotamento sanitário, a melhoria das obras de drenagem e soluções para a destinação final do lixo, a cidade estaria mais protegida e, a população menos sujeita às vicissitudes das enchentes, da poluição e das doenças ocasionadas pela falta de saneamento.
A prefeitura informa, no entanto, que ao longo de 2009 havia liberado R$ 180 milhões para obras contra enchentes. Contudo, grande parte das licitações só pode ser liberada no segundo semestre do ano. E faz outra promessa: há um plano de drenagem em elaboração e seu horizonte é ambicioso: resolverá o problema para os próximos 50 anos. Mas enquanto esse plano não vêm, os tradicionais pontos de alagamento tendem a continuar e de até se multiplicarem.
No Rio de Janeiro
A tragédia das chuvas provocou, nesse início de ano, 19 mortes e danos muito grandes na região metropolitana do Rio de Janeiro. Houve registro de deslizamentos de terra na Baixada Fluminense e em Niterói. Em Jacarepaguá, casas foram soterradas e cinco pessoas de uma mesma família, morreram. Houve prejuízos materiais, óbitos ou pessoas com ferimentos, em Irajá, Vaz Lobo, Quintino e nas cidades de Magé, Belford Roxo, Duque de Caxias e São João de Meriti.
O caso mais traumático ocorreu em Angra dos Reis, onde o deslizamento de pedra e terra, numa encosta, destruiu uma pousada e mais sete imóveis na Ilha Grande. O número de mortos chegou a cerca de 50 pessoas.
A propósito de ocorrências desse tipo, o engenheiro Francis Bogossian, presidente da Associação das Empresas de Engenharia do Rio de Janeiro (Aeerj), diz que os deslizamentos de terra têm-se repetido no Brasil. É um perigo que vem rondando as áreas urbanas e as estradas brasileiras, seja quando a terra cobre as pistas, seja quando as crateras se abrem no asfalto.
Ele afirma que o país atravessa um período de pluviosidade excepcional. Na década de 1960, após uma tragédia semelhante às que têm ocorrido ultimamente, a prefeitura do Rio de Janeiro criou uma divisão, na Secretaria de Obras, especializada em geotecnia. Ela constituiu o embrião da atual Fundação Geo-Rio. Contudo, o poder público, segundo ele, não tem sido capaz de acompanhar a enorme velocidade de crescimento da ocupação desordenada das encostas cariocas.
Po
r causa disso, novas áreas de risco surgem do dia para a noite nas comunidades de baixa renda. Como as ações judiciais são lentas, a fiscalização é deficiente e, nas encostas, prossegue o processo ininterrupto de desmatamento criminoso, alguns tipos de solos e rochas ficam inconsistentes e vulneráveis à ação das águas. Daí, os deslizamentos e as tragédias.
Bogossian diz que se fazem necessárias medidas que previnam os escorregamentos. Para isso, o governo do Estado do Rio deveria criar um órgão, nos moldes da Geo-Rio. Recentemente, a Associação Brasileira de Mecânica dos Solos, o Crea-RJ, o Clube de Engenharia, a Associação Brasileira de Geologia de Engenharia e Ambiental, a própria Aeerj e a Associação dos Engenheiros e Arquitetos de Angra dos Reis, levaram proposta semelhante ao Ministério das Cidades. A idéia é de que o ministério acate a sugestão e adote medidas preventivas contra deslizamentos em todos os municípios brasileiros em cujo entorno haja áreas montanhosas.
"A proposta é válida para zonas urbanas e para áreas rurais serranas e se destinam a evitar que trechos rodoviários entrem em colapso em razão de ocorrências localizadas", afirma o engenheiro.
Estrutura de ponte some no Jacuí
O fato pode até ser simbólico. Cerca de 20 pessoas do município gaúcho de Agudo estavam em um trecho central da ponte sobre o rio Jacuí. De repente, no vaivém revolto das águas, uma parte da estrutura se desprende, com os pilares, e fica submersa. Dez pessoas morreram nesse desastre, entre elas, o vice-prefeito de Agudo, Hilberto Boeck. A ponte de concreto fora inaugurada em 1963.
O diretor geral do Departamento Autônomo de Estradas de Rodagem (Daer) do Rio Grande do Sul, Vicente Britto Pereira, garante que a obra foi inspecionada há três anos. Aparentemente, nada indicava que ela poderia, de um segundo para outro, ser arrancada dos pilares pela força das águas. Mas foi. Técnicos acreditam que a água pode ter corroído, ao longo do tempo, a base dos pilares e as fundações, contribuindo para o colapso.
A ponte, com 314 m de extensão, começou a ser construída em 1959. Só em 1963 foi entregue ao tráfego, facilitando a circulação de veículos pela RSC-287, na ligação entre as cidades de Montenegro e Santa Maria. A obra, executada em concreto, tem seis pilares intermediários e dois encontros fechados nas extremidades. Os cinco vãos centrais possuíam 42 m e, os dois vãos extremos, 36 m. A pergunta que fica, segundo os técnicos, é a seguinte: Como fato dessa natureza pode acontecer? E se fato análogo vier a ocorrer em outras pontes pelo País afora, considerando que muitas das pontes construídas na malha rodoviária federal e nas rodovias estaduais podem ter o mesmo nível de envelhecimento e obsolescência?
Há algum tempo o Sindicato Nacional das Empresas de Arquitetura e Engenharia Consultiva (Sinaenco) andou por várias regiões brasileiras analisando estruturas que poderiam estar com o prazo de validade vencido. Muitas se apresentavam deterioradas, com as ferragens à mostra, à beira do colapso. E a entidade advertiu: se manutenções urgentes não fossem feitas, tragédias poderiam acontecer. Aconteceu.
O diretor do Daer informa que outra ponte sobre o Jacuí será construída no local. Uma construtora deverá ser contratada, em caráter de emergência, para apresentar o projeto básico de engenharia e, em seguida, começar as obras, que devem ser concluídas em nove meses. A parte da estrutura da ponte que ficou de pé será demolida. E, enquanto a nova ponte estiver em projeto e construção, o tráfego será feito por uma ponte provisória, a ser construída pelo Batalhão de Engenharia do Exército.
Microdrenagem, as enchentes e o método não destrutivo
Sérgio Augusto Palazzo*
Drenagem é o dispositivo que primeiramente é construído para evitar o acumulo de águas na superfície. E é, ainda, o dispositivo a "assorear", ou seja, coletar a água para o qual foi projetado, separando os detritos que com ela vem.
O principal assoreamento se dá com a presença de resíduos de solos, de todos os tipos, dependendo da região analisada. A obstrução por resíduo de solos (assoreamento), também acaba retendo outros resíduos, estes sólidos, de todos os tipos e tamanhos que os acessos permitam passar. Esta não é uma estória nova: tecnicamente é algo simples de discutir, mas praticamente é de uma influência enorme nos processos de enchentes. Córregos assoreiam e precisam constantemente ser dessaroreados.
Nas cidades, principalmente nas grandes metrópoles, com áreas pavimentadas que cobrem a maior parte urbana, os sistemas de microdrenagem são fundamentais no escoamento das águas superficiais e de todos os seus detritos. Numa sociedade de Terceiro Mundo, os detritos passam a constituir parte relevante dos problemas, pois, por falta de educação dos cidadãos muitos detritos de todo tipo, origem e dimensões são lançados indiscriminadamente pelas ruas.
Desassorear redes de microdrenagem, portanto, não é uma tarefa apenas para jateamento de água ainda que sob alta pressão, há também que se fazer a remoção mecânica dos detritos que o jateamento não consegue tirar.
O método não-destrutivo apresenta, entre suas várias tecnologias, o sistema direcional (tradicional perfuração direcional) que adicionada de outros dispositivos consegue entrar mecanicamente nas redes, inclusive de esgotos, embora não seja o caso aqui, e lá remover todos os materiais sólidos que estejam impedindo o escoamento.
Na administração da prefeita Marta Suplicy, um investimento de mais de R$ 40 milhões (valores da época) foi aplicado para inspecionar todas as redes, pelo método não-destrutivo, com televisionamento, procedendo com análise das imagens e a geração de diagnósticos, que serviriam para um plano de ações que tornasse os sistemas de microdrenagem íntegros e capazes de cumprir sua principal função. Nada foi feito a partir dessa coleta fantástica de imagens, nenhum projeto de limpeza e correção das redes foi licitado e, o que é pior, jamais foi incrementado ou continuado.
Aí está realmente um ponto que deveria ser explorado, pela mídia técnica e pelos administradores públicos.
*Sérgio Augusto Palazzo é diretor de Relações Institucionais da Associação Brasileira de Tecnologia não Destrutiva (Abratt).
Fonte: Estadão