Discussão do modelo e o risco Valec atrasam concessões

 

Potenciais investidores questionam segurança do formato e temem não receber no futuro pagamentos da estatal

 

Tatiana Bertolim

 

Dois anos após o governo anunciar um megapacote de concessões para estimular investimentos em infraestrutura, as obras de ferrovias ainda custam a sair do papel. Falhas nos projetos e riscos regulatórios identificados pelos investidores têm levado a atrasos.
 

Uma solução para o impasse é aguardada com expectativa no setor, já que o Programa de Investimentos em Logística (PIL), de agosto de 2012, prevê investimentos de R$ 99,6 bilhões na construção e na melhoria de 11 mil km de vias férreas.

 

O grande nó reside no modelo de concessões previsto pelo governo, segundo o qual o direito ao transporte de carga ficará com a estatal Valec. A empresa comprará 100% da capacidade de transporte das futuras concessionárias e revenderá o direito de uso dos trilhos. No entanto, investidores questionam a segurança desse formato e veem risco nos pagamentos pela estatal, que carrega há anos imagem ruim por casos de má gestão, atrasos em obras, dívidas e corrupção.

 

O desconforto tornou-se tão grande que os potenciais investidores passaram a se referir ao “risco Valec” para justificar sua insatisfação com o modelo. Para contornar a situação, o governo anunciou em junho que apresentará garantias de pagamento com cinco anos de antecedência, lastreadas em títulos do Tesouro Nacional e depositadas em contas específicas. Os empréstimos terão prazo de 30 anos, com cinco anos de carência, e envolverão BNDES, Caixa Econômica Federal e Banco do Brasil.

 

Também em junho, a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) publicou a resolução que regulamenta a figura do Operador Ferroviário Independente (OFI), ou seja, que vai operar as estradas de ferro sem ser o proprietário dessa infraestrutura.

 

A regulamentação do OFI era um passo necessário para viabilizar as licitações dos12 trechos contemplados pelo programa e dois acrescentados posteriormente. As chamadas públicas para apresentação de estudos complementares referentes a seis deles já foram publicadas: Açailândia (MA) – Barcarena (PA), Anápolis (GO) – Corinto (MG), Estrela D’Oeste (SP) – Dourados (MS), Belo Horizonte (MG) – Guanambi (BA), Sinop (MT)-Miritituba (PA) e Sapezal (MT) – Porto Velho (RO).

 

De qualquer forma, o mais provável é que os processos licitatórios sejam empurrados para 2015 em diante. O primeiro projeto a ser licitado deverá ser a Ferrovia de Integração do Centro-Oeste (Fico), de 883 km e fundamental para o escoamento da produção de grãos. Porém, ainda não há data prevista.

 

Pedido de mudanças

Recentemente, a Confederação Nacional da Indústria (CNI) enviou aos principais candidatos à presidência da República um documento pedindo mudanças no modelo das licitações no setor ferroviário. Para os empresários, a separação entre o gestor da infraestrutura e o operador pode criar dificuldades na acomodação de várias empresas na mesma linha e não teve a eficácia esperada nos países que atuam dessa forma.

 

Outro aspecto levantado pela CNI é que deixar a União como garantidora das receitas pelos 25 anos da concessão é um risco, já que nada impede governos futuros de suspender os repasses.

 

As garantias propostas pelo governo para mitigar o “risco Valec” podem até surtir efeito, afirma Hostílio Ratton, professor associado do Programa de Engenharia de Transportes do Instituto Coppe, da UFRJ. Para ele, no entanto, há problemas no conceito das licitações. O desenho prevê que o vencedor será quem oferecer o menor preço pelo uso da capacidade de tráfego ofertada. Para ele, tal critério não faz sentido, já que numa ferrovia o tráfego é previsível e deixa pouca margem para ganhos adicionais, diferentemente do que ocorre nas rodovias.

 

“Para mim, o mais lógico seria mudar o modelo da concorrência, trocando a seleção pelo menor preço da capacidade pela seleção pelo maior preço do direito de operação. Com a liberdade de negociar tarifas com os operadores de trens, não haveria necessidade de o governo comprar toda a capacidade da via, apenas aquela que o concessionário não conseguisse vender”, afirma Hostílio. “Nesse caso, o impedimento de negociar diretamente o preço a cobrar com cada um dos operadores de trens não teria mais sentido, e o operador da via poderia ter margens mais interessantes na venda dos horários mais disputados.”

 

O professor também vê a necessidade de se tornarem mais claras as regras de convivência entre as concessões do modelo antigo, verticalizado, e as novas, baseadas na separação entre infraestrutura e operação. Isso porque certamente haverá casos em que trens das novas ferrovias muitas vezes terão de circular na malha antiga, cujos donos não têm, a rigor, o compromisso de admiti-los. É preciso definir quem vai ser responsável por essa negociação.

 

Em meio à indefinição do modelo de concessão, o governo enfrenta outro problema envolvendo grandes empresas. O sistema ferroviário é considerado estratégico para megagrupos do agronegócio e de mineração, o que torna a participação deles na construção de novas ferrovias um desafio de conciliação de interesses. O assunto é ainda pouco discutido no mercado e, por enquanto, circula somente nos bastidores do processo.

 

 

As tradicionais concessionárias do País, que inicialmente haviam sido convidadas para participar das licitações ferroviárias, principalmente por terem tido desempenho preponderante no sucesso dos leilões recentes de rodovias, passaram a ter um papel menor de uma hora para outra. É que o governo se viu obrigado a ouvir inúmeras propostas de empresas que controlam as plantações de soja, milho e algodão e a exploração de minérios em terras onde o plano de ferrovias foi traçado.

 

Falta de mão de obra especializada

Além de questões regulatórias, falhas nos projetos e nos estudos de viabilidade são outros entraves aos investimentos na malha ferroviária. Faltam também técnicos e mão de obra qua
lificada, consequência de décadas de quase abandono nos investimentos no setor. Agora, “a pressa para fazer as coisas empurra para contratação compulsiva”, além da utilização de estudos pouco aprofundados, o que deixa brechas para a aplicação de aditivos aos contratos, observa Hostílio.

 

“Hoje, há uma grande dificuldade de se encontrar profissionais capacitados na área ferroviária. Para suprir essa lacuna, as concessionárias acabam investindo na formação de pessoal”, observa Gustavo Bambini, diretor-executivo da Associação Nacional dos Transportadores Ferroviários (ANTF).

 

Para ele, as dificuldades de fazer deslanchar os investimentos no setor não decorrem apenas do modelo em si, mas da alta complexidade e dos retornos apenas no longo prazo. “Além disso, o modal ferroviário passou um longo período de declínio, entre os anos 50 e início dos anos 90”, diz Gustavo, acrescentando que tais restrições explicam a exigência de mais garantias por parte dos investidores.

 

As soluções para o setor, entretanto, estão distantes. Além dos entraves nas novas concessões, projetos antigos também convivem com dificuldades e atrasos. O caso mais grave é o da Ferrovia Norte-Sul, que foi lançada em 1987 para ligar o Pará ao Rio Grande do Sul e ainda está longe de ficar pronta. O trecho entre o Tocantins e Goiás, o último que foi construído ficou pronto há pouco tempo.

 

Na Transnordestina, a situação também é crítica. Iniciadas em 2006, as obras para a construção de 1,7 mil km deveriam ter sido concluídas em 2010. A nova previsão é que a ferrovia – que vai atravessar do Piauí ao Ceará – só fique pronta daqui a dois anos e custando quase o dobro dos R$ 4,5 bilhões orçados.

 

Até setembro, as obras da Transnordestina estavam a cargo da Odebrecht, mas a TSLA (Transnordestina Logística S.A.), subsidiária da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), rescindiu o contrato e alegou que havia falhas no projeto. A construção não foi retomada desde entãoe o poder concedente que é o governo, pelo seu lado, também não cobra o retorno aos trabalhos.

 

Hoje, as ferrovias de cargas no Brasil somam 27,8 mil km. Desses, mais de 4 mil km não estão operando plenamente.

 

Os atrasos nas novas e antigas obras pressionam a malha rodoviária e comprometem a eficiência de algumas das principais atividades da economia brasileira. No ano passado, foram transportados 490 milhões de t de cargas por essa malha, dos quais 75,71% referentes a minério de ferro e carvão e 14,86% em commodities agrícolas. O volume de grãos – hoje feito em grande parte por estradas, com todas as perdas decorrentes desse método – poderia ser muito maior com o destravamento dos projetos ferroviários. 

Fonte: Revista O Empreiteiro

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