As cenas são conhecidas – crianças brincando nas ruas de terra onde correm ás águas fétidas do esgoto, e mulheres
com baldes na cabeça que vão trazer a água para beber de algum poço rudimentar ou distribuído por caminhão-pipa. O local pode estar na África, Ásia ou Brasil. O resultado é aquele: 1,8 milhão de crianças mortas, todos os anos, no mundo, vítimas de diarréia. A revelação contundente é divulgada pela UNDP – United Nations Development Programme, uma das 23 agências da ONU que auxiliam uma população estimada em 1,1 bilhão de pessoas que não conseguem água potável suficiente, e outros 2,6 bilhões que vivem em condições antissanitárias. O relatório sobre Desenvolvimento Humano 2006, tendo como tema. “Além da escassez: poder, pobreza e a crise global d’água”, denuncia os governos que não priorizam obras sem glamour nem atraem a opinião pública, como as instalações de pontos de água potável encanada e privadas com rede de esgoto – ferramentas essenciais da medicina preventiva para combater a diarréia infantil. O relatório, assinado por uma equipe liderada por Kevin Watkins, reivindica que o acesso à água potável seja reconhecido como direito humano pelo governos, como o faz a África do Sul.
Ele recomenda que os governos utilizem também o mecanismo do preço para viabilizar sua distribuição, caso contrário será mais um dispositivo legal inviável na prática. Na Tanzânia, nos anos 50, a água potável podia ser comprada em pequenas lojas. Com a independência do país, seu primeiro presidente, Julius Nyerere, declarou que o fornecimento da água seria gratuita. Com essa medida, a água, que antes era usada com parcimônia, passou a ser desperdiçada e as torneiras acabaram secando.
E as lojinhas que vendiam água deixaram de trabalhar com essa mercadoria porque, pelos mecanismos implacáveis de mercado, a água é um produto que custa caro para ser distribuído. Se esse custo de distribuição não for coberto, ela deixaria de ser entregue à população, principalmente na periferia dos centros urbanos.
Se uma parte da população paga um preço subsidiado pela água e desperdiça no seu uso, ela acaba faltando para outra parte da população. O relatório da UNDP é categórico ao afirmar que o preço subsidiado ou o fornecimento gratuito sustentam o desperdício d’água. Mas como os pobres vão pagar pela água que usam? Estudos do Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento – Banco Mundial (Bird) mostram que, a grosso modo, custa cerca de US$ 10 mensais o abastecimento de uma casa num país emergente.
Cerca de 90% das casas na América Latina têm capacidade de pagar essa conta, sem gastar mais do que 5% da sua renda. Mas, nos países mais pobres do continente, como Nicarágua e Bolívia, de 30% a 50% das famílias não têm renda para comprar o produto. Na Índia e África, mais da metade das famílias teriam dificuldades também. Se os pobres não podem pagar, o restante da população assume a conta.
O estudo do Banco Mundial estima que 90% das empresas distribuidoras de água em países de baixa renda não cobram uma tarifa suficiente para cobrir os custos de operação e manutenção, sem falar em novos investimentos. Mas, curiosamente, essa receita, mesmo insuficiente, acaba beneficiando a parte mais abastada da população, que está ligada à rede de água e vale-se do seu preço baixo inclusive para abastecer suas piscinas e lavar sua frota de carros. O Chile controla o subsídio da água de outra forma – famílias pobres precisam provar sua condição para o governo, que então decide dar um subsídio entre 25% a 85% da conta para um volume máxima de 15 m³.
Esse modelo tem dois problemas – a burocracia para comprovação de baixa renda e a medição do consumo nas casas. A solução seria aumentar o preço da água e usar essa receita extra para ligar as famílias pobres às redes de distribuição. Mas, aumentar o preço das tarifas é politicamente delicado, porque se presume que aumentará o lucro da empresa distribuidora, e se esta for privada, provocará um terremoto político.
O relatório aponta que a privatização mostrou resultados precários no passado e a própria industria privada da água no mundo parece estar na defensiva em diversos países. Entretanto, o paradoxo é que muitos pobres dependem de fornecedores privados informais – na ausência do serviço publico – para fazer ligações à rede que podem ser clandestinas, abrir poços ou trazer a água em caminhões pipas.
E esses fornecedores são dinâmicos e praticam preços muitas vezes competitivos, para manter sua freguesia. E a população abastecida por esses fornecedores informais preferem comprar água deles a esperar pelas promessas sem prazo dos governos.
Fonte: Estadão