Há recursos, mas faltam projetos para obras rodoviárias

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O paradoxo nem sequer se refere ao montante dos recursos disponíveis, considerando-se as enormes carências da infra-estrutura de transportes. Ele se evidencia no histórico de alguns anos recentes, quando simplesmente não havia dinheiro para obras rodoviárias. Hoje, a situação se inverteu: há recursos, mas há queixas de que não existe gestão competente e muito menos projetos de engenharia que permitam as licitações, no prazo necessário, para o investimento de R$ 6 bilhões a R$ 8 bilhões do volume arrecadado pela Cide-Combustível.

Há 20 anos, quando a Associação Nacional das Empresas de Obras Rodoviárias (Aneor) foi criada, e o engenheiro Marcos Sant´Anna assumiu os destinos da entidade, a malha rodoviária brasileira começou a viver um prolongado jejum de investimentos. O governo extinguira o Fundo Rodoviário Nacional (FRN), que dera oxigênio ao antigo Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (DNER) e vinha possibilitando, até então, a construção, manutenção e conservação de rodovias federais.

Com o fim do imposto incidente sobre os combustíveis, os programas de aberturas de estradas ou aqueles previstos para mantê-las, passaram a depender unicamente de recursos do Tesouro, a exemplo do que acontece com as áreas de saúde, educação, segurança etc. Assim, a área da infra-estrutura de transportes, que chegou a dispor de US$ 3 bilhões/ano de investimentos nas décadas de 70 e 80, passou a contar apenas com uma média de R$ 1,3 bilhão/ano, nos 15 anos seguintes.

Depois de um trabalho de convencimento junto ao governo federal, desenvolvido também em diversas instâncias e entidades pelo País afora, incluindo a Confederação Nacional da Indústria (CNI), o governo criou, em 2001, a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide-Combustível), regulamentada em 2002.

O empresário e engenheiro José Alberto Pereira Ribeiro, atual presidente da Aneor, diz que, embora responsável pela criação e manutenção daquele mecanismo de arrecadação, o Estado aparentemente não se preparou, do ponto de vista de gestão, para utilizá-lo amplamente a fim de materializar os projetos de engenharia necessários às mudanças que a malha rodoviária do País está reclamando. “Depois de sete anos convivendo com uma arrecadação da ordem de R$ 48 bilhões – R$ 30 bilhões dos quais para fins que não dizem respeito a sua destinação de origem – o que podemos afirmar é que há recursos, sim, captados pela Cide, para obras rodoviárias. E, por que, havendo recursos, estes não são integralmente aplicados?”

Em seu entendimento, o Estado teria se acostumado de tal modo à realidade da escassez de recursos, “que hoje, quanto os temos, ele se esqueceu de adaptar-se a essa nova fase, não se preparando, do ponto de gestão e projeto, para aplicá-los por inteiro, na escala de que o País necessita”.

Ele dá exemplo dessa inadequação informando que no exercício de 2005 sobraram, da arrecadação da Cide-Combustível, R$ 5 bilhões; em 2006, R$ 6 bilhões; em 2007, R$ 4,5 bilhões. “E para 2008 temos um orçamento, no Departamento Nacional de Infra-Estrutura de Transportes (DNIT), de nada menos que R$ 8,5 bilhões. Desse total, R$ 4,5 bilhões ficarão para o ano que vem. “Estamos convivendo, portanto, com recursos da ordem de R$ 4 bilhões que vão passar para o exercício seguinte e da qual se consegue aplicar, no mesmo exercício, apenas R$ 2 bilhões. Daí, a indagação: o que está atravancando o processo?”

As origens do paradoxo

Não deixa de ser curiosa a afirmação de que o problema não é mais falta de recursos, mas a carência de mecanismos para o uso adequado e eficiente dos investimentos disponíveis. Seja esta ou outra a razão para explicar o problema, o fato é que o governo, segundo o presidente da Aneor, tem interpretado os fatos de maneira equivocada. Tanto assim, que em maio deste ano, quando se procurou evitar o aumento dos combustíveis (na ocasião o preço do barril de petróleo chegou a US$ 45), ele não hesitou em reduzir a alíquota da Cide.

Essa medida de imediato provocou uma diminuição da ordem de 40% na arrecadação. E obviamente, ela terá reflexos agora em 2009 nos Estados e municípios. José Alberto Pereira lembra que a partir de 2004, estados e municípios passaram a receber o repasse de 29% daquela contribuição. A Medida Provisória 82 transferiu parte da malha rodoviária federal aos cuidados de Estados e do Distrito Federal, conquanto o repasse não viesse a ocorrer concomitantemente com o cronograma da transferência, o que acabou gerando algum impasse entre as partes envolvidas.

O imbróglio levou até à elaboração de um aditivo, resultante de uma articulação do Tribunal de Contas da União, pelo qual os Estados se encarregariam das obras necessárias ao funcionamento da malha, nos trechos de sua responsabilidade, embora estes continuassem administrados pelo governo federal.
Nessas circunstâncias, a queda da arrecadação da Cide terá reflexos nas obras resultantes daqueles contratos.

O presidente da Aneor afirma que independentemente dessas questões, e do benefício da Cide para todas as modalidades de transporte, já ouviu do governo federal manifestação favorável ao fim da contribuição. O argumento é de que o orçamento do Ministério dos Transportes mantém a garantia de recursos da ordem de R$ 12 bilhões, todo ano, para a área de infra-estrutura de transportes.

Ocorre que, apesar dessa garantia, há uma dúvida: se hoje, a atual administração federal concentra seus esforços na execução das obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), o que acontecerá com as próximas eleições para a Presidência da República? Tem sido quase uma tradição, no País, uma administração não dar continuidade às obras que a outra veio realizando. “Portanto”, raciocina José Alberto, “é natural o receio de que a Cide Combustível, com a futura troca de governo, possa vir a ter o mesmo destino do antigo Fundo Rodoviário Nacional”.

Falta de projetos e de planejamento de longo prazo

Não é de hoje que, por falta de planejamento – e de projetos – não se tem uma seqüência organizada dos trabalhos para a melhoria da malha rodoviária federal.
Se analisados os programas que têm sido desenvolvidos – o Programa Integração de Revitalização (PIR), que previu serviços de recuperação, sinalização, melhoramentos no pavimento, roçagem, limpeza de bueiros e tapa-buracos; o programa Contratos de Recuperação e Manuten&cc

edil;ão das Rodovias (Crema) e, depois o Pro-Crema – o que se vê, na análise do presidente da Aneor, é o esforço para a correção de problemas pontuais, que acabam não constituindo solução definitiva. No fundo, se gasta dinheiro no varejo, quando o País requer obras de envergadura. E, estas, não são atacadas, por falta de projetos.

Hoje, o Brasil ainda não dispõe, a exemplo do que aconteceu na era Vargas, no governo Juscelino Kubitschek e mesmo no ciclo dos governos militares, de um plano rodoviário nacional com estratégia de começo, meio e fim, na área dos transportes. Há, mas ainda em fase de discussão, o Plano Nacional de Logística de Transportes, o PNLT, uma herança da gestão do ex-ministro Paulo Sérgio Passos. Foi no ventre desse plano que nasceu o PAC.

Pode-se afirmar, por conta dessa análise, que hoje há indícios de planejamento de transporte rodoviário ou de planejamento da multimodalidade dos transportes, mas nada ainda ancorado em legislação própria. O que existe até agora pode ser alterado de hoje para amanhã, conforme a vontade do administrador. O PNLT é um plano que aponta para os próximo 15 anos.

Para os defensores da contribuição específica para a área da infra-estrutura dos transportes, é necessário um ajuste no tempo e no espaço, para que haja planejamento de longo prazo. Ao longo dos últimos 20 ou 25 anos, a carência de recursos para a área criou uma série de complicadores, que precisam ser erradicados. Em décadas passadas os responsáveis pelo planejamento da malha rodoviária podiam contar com empresas de consultoria dotadas de amplas equipes especializadas, que elaboravam projetos e cujas obras contavam com supervisão competente. Por força das circunstâncias, essas empresas foram minguando. Hoje, até a Empresa Brasileira de Planejamento de Transportes, o Geipot, do Ministério dos Transportes, foi desativada, o que deu origem a um vácuo na inteligência dessa área.

Era imperativo, na época, para obtenção de empréstimo para obras junto ao BID, BIRD ou junto a outras instituições de crédito, a apresentação do projeto final de engenharia. Este, segunda a lei 8.666, promulgada pelo presidente Itamar Franco, inclui quantitativo, cronograma, pormenores essenciais ao desenvolvimento das obras. E é a partir dele que é elaborado o projeto executivo, detalhando, com minúcias, o que precisa ser feito. Os projetos não eram elaborados para maquiar ou para executar obras dimensionadas segundo a elasticidade maior ou menor dos recursos.

Outro ponto levantado pelo presidente da Aneor, José Alberto, diz respeito ao histórico das rodovias brasileiras, a maior parte das quais durava até cerca de 30 anos, naturalmente contando com as manutenções de rotina. Atualmente, com as exceções que devem ser evidenciadas, há estradas construídas hoje que precisam de restauração em período até inferior a dez anos. E isso ocorre em um momento em que a malha rodoviária pode contar com materiais de boa qualidade e equipamentos e técnicas construtivas só comparáveis àquelas utilizadas nos países mais avançados. Por quê? Um dos fatores, segundo ele, tem sido a preocupação com os anos de mandado e não com programa permanente de governo.

Além desse aspecto, ele argumenta que a modalidade contratual para elaboração de projeto poderia considerar a que é praticada na área energética. “Veja o seguinte: eu estou construindo uma barragem. Há o pagamento de um bônus para a antecipação do cronograma. Se o prazo para construí-la são nove meses, vou tentar concluí-la em oito. Assim, não será necessário esticar o prazo para ganhar um pouco mais. Ganho na antecipação”.

Obras sem sustentabilidade

São várias as interfaces do paradoxo recursos versus projeto. Elas explicariam a posição de empresas, médias ou grandes, que têm devolvido contratos ao DNIT. Enquanto eram algumas, dentre as grandes construtoras, que estavam agindo assim, a Aneor imaginava que tal procedimento se devia à multiplicidades das atividades que elas desenvolviam.
Elas poderiam se dar ao luxo de escolher as obras que lhes fossem mais convenientes. Contudo, ao perceber que até empresas médias agiam de forma semelhante, a entidade começou a pesquisas as razões que as levavam a esse procedimento.

Empresários disseram, nas reuniões realizadas com o presidente da Aneor, que decidiram parar os contratos, porque não tinham margem para nenhuma lucratividade. Uma obra executada no Nordeste ou no Centro-Oeste, nem sempre tem as mesmas características, embora o projeto seja semelhante, de uma obra executada na Amazônia. As características locais ou regionais interferem no andamento dos trabalhos, no esquema de logística e em outros fatores executivos. O fator chuva – seis meses sob água pluvial na região amazônica – elimina a possibilidade da aplicação do BDI que é aplicado, por exemplo, em uma região de clima seco. Essas variáveis nem sempre são levadas em consideração pelos órgãos fiscalizadores. Daí, a desistência de alguns contratos.

Outro dado diz respeito ao próprio DNIT. Este órgão, que sucedeu ao antigo DNER, ainda não se encontra adequadamente aparelhado para as atribuições para as quais foi criado. Ele dispõe, hoje, quanto pode contar com um orçamento de até R$ 8 bilhões, com a mesma estrutura mantida quando o orçamento era de R$ 1,2 bilhão. José Alberto Ribeiro defende o aperfeiçoamento e a ampliação da estrutura técnica do DNIT.

Mas não será fácil introduzir melhorias nesse órgão. Se, hoje, um engenheiro que ali está ingressando, recebe R$ 4 mil, o engenheiro que presta concurso para entrar no TCU, já se inicia, na carreira, com R$ 12 mil. Portanto, para que haja correções no esquema com vistas à melhoria dos transportes, elas passam necessariamente pela melhoria da gestão do DNIT.

As obras e o papel do empreiteiro

O DNIT vem trabalhando, hoje, com dois tipos de obras: as do PAC, e as demais. “As demais”, salienta o presidente da Aneor, “são aquelas executadas com recursos orçamentários”. E aí ocorre uma discrepância. Pelas contas que a entidade vem fazendo, deixarão de ser aplicados este ano nas obras do PAC recursos da ordem de R$ 4 bilhões. Já para as demais obras – aquelas que se encontram fora do PAC – estão faltando, para os respectivos pagamentos, valores possivelmente superiores a R$ 600 milhões. Nesse caso, por que não aproveitar as “sobras” do PAC para atendimento das demais obras?

Foi em razão da existência dessa zona cinzenta entre as obras do PAC e as demais, que se começou a discutir a obrigatoriedade da transferência dos recursos da Cide também para o Fundo Nacional de Infra-Estrutura de Transportes (FNIT) que, a

propósito, foi criado constitucionalmente e continua sem receber parte, mínima que seja, da arrecadação captada por aquele tributo. Junto com o FNIT, foi criado o Conselho Nacional de Integração dos Transportes, o Conit, ao qual caberia resolver essa pendência.

É difícil dizer, em alguns casos, que uma obra do PAC não terá a mesma importância das demais obras na área da infra-estrutura dos transportes. Afinal, a duplicação da BR-101 não terá sentido, na capital cearense, se o contorno de Fortaleza não estiver igualmente construído. “Por isso”, diz José Alberto Ribeiro, “não faz sentido essa divisão”.

De qualquer modo, o segmento das empresas que atuam na área da infra-estrutura dos transportes, superou dificuldades passadas e há uma consciência voltada para a retomada, em escala mais ampla, de suas atividades, na expectativa da continuidade da cobrança da Cide.

O Brasil conta com empresas que fizeram a história de sua malha rodoviária. Naturalmente sem perder de vista as lacunas que ficam na memória, a Aneor lembra nomes tais como Andrade Gutierrez, Camargo Corrêa, Norberto Odebrecht, Queiroz Galvão, Mendes Júnior, OAS, Serveng-Civilsan, CR Almeida, Carioca Engenharia, Egesa, Estacon, ARG, SA Paulista, Encalso, Toniolo Busnello, Sutelpa, Brasília Guaíba, Ferreira Guedes, Ivaí, Triunfo, Tardelli, Barbosa Mello, Cowan, Galvão Engenharia, Jofege e inúmeras outras, todas – incluindo renomadas consultoras e projetistas – partícipes do trabalho que resultou na construção do patrimônio rodoviário brasileiro. E ele não esquece o reflexo disso tudo na indústria de máquinas e equipamentos, cujos fabricantes têm colocado seus produtos aqui e no mercado internacional.

“Manter a malha e adequá-la ao processo do crescimento do País. Essa é a nossa reivindicação.
Porque, em nosso entendimento, o Brasil tem de seguir o modelo dos demais países para enfrentar a crise financeira global. A infra-estrutura é o instrumento que garante esse crescimento”, diz José Alberto Pereira. E ele lembra que a Cide, para esse fim, não pode ser carimbada como se chegou a dizer, como “imposto de empreiteiro”. No rastro das obras, a indústria se movimenta: elas ativam os fornecedores de materiais, equipamentos, serviços e nenhum segmento é marginalizado. “E faço uma ressalva”, diz o presidente da Aneor: “Sem empreiteiro, plano de governo é apenas papel”.

Fonte: Estadão


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