História de um pioneiro na construção da BR-163

Depoimento do Sálvio Santos, engenheiro civil graduado pela Escola Politécnica da Universidade Federal da Paraíba (Campina Grande-PB), com especialização em mecânica dos solos, pavimentação, tecnologia do concreto, gestão ambiental para empreendimentos imobiliários e controle de qualidade. Foi engenheiro do 9º Batalhão de Engenharia de Construção do Exército, na implantação da rodovia Cuiabá-Santarém (BR-163/MT/PA) no trecho Lucas do rio Verde (MT) – Salto Curuá (PA).

O sr. foi um desbravador. Abriu a BR-163, numa época em que toda aquela ampla extensão, que vai Cuiabá aos acessos de Santarém, ainda havia, a rigor, mata fechada. Como foi abrir estrada naquela época? E qual foi a época?

Para mim, foi a decisão mais corajosa que tomei na minha vida profissional. Eu estava concluindo meu curso na Escola Politécnica da Universidade Federal da Paraíba, hoje Universidade Federal de Campina Grande, no primeiro semestre de 1973, e havia sido selecionado, por aquela escola, para receber uma bolsa de estudos para fazer doutorado na Universidade de Toulouse, na França. Foi então que recebi o convite para trabalhar na rodovia Cuiabá–Santarém.

Tomei a decisão de atender ao segundo convite, sabendo da adversidade da obra, que era a implantação, em curto prazo (quatro anos), de uma rodovia com cerca de 1.650 km de extensão, cruzando predominantemente selva virgem.

Valeu a pena?

Valeu. Valeu para marcar a minha vida. A experiência, impossível classifica-la do ponto de vista de importância para dar consistência a minha formação de engenheiro e de cidadão. A obra da rodovia BR-163 era tocada por dois batalhões de Engenharia de Construção do Exército: o 9º BEC, sediado em Cuiabá, que executava a obra no sentido Cuiabá-Santarém, e o 8º BEC, sediado em Santarém, que rumava em direção oposta.

O senhor fazia parte do 9º BEC, pelo que sei. Como começou, na prática, a sua aventura?

Quando lá cheguei, em agosto de 1973, o batalhão já havia instalado um canteiro de obra às margens do rio Verde, a cerca de 350 km de Cuiabá. Veja bem. Falar em 350 km a partir de cidades como São Paulo, que tem toda uma infraestrutura rodoviária implantada, é uma coisa. Mas falar de 350 km a partir de Cuiabá, até o rio Verde, naquela época, conquanto já houvessem terras exploradas, principalmente pela pecuária, já é outra coisa. A distância parecia infinita. E eram apenas 350 km. Mas vamos adiante.

Quais as principais adversidades ao longo do traçado?

Até o rio Verde havia uma mata de transição entre o Cerrado e a selva amazônica. Já a partir do Rio Renato, a mata era fechada. Fechada e, ao longo de todo o entorno, não se vislumbrava infraestrutura nenhuma. Por isso, o batalhão, que era comandado na época pelo coronel Meireles, idealizou um sistema de acampamentos móveis.

Acampamentos móveis? O senhor quer dizer tipo trailer?

Exatamente. Eram montadas sobre chassis de veículos e serviam para as mais diversas finalidades: escritórios, alojamentos, posto médico etc.. Na medida em que as obras iam avançando, nós fazíamos as mudanças rebocando aqueles chassis com os próprios equipamentos empregados na obra.

No caso do 9º BEC, foram construídos apenas dois acampamentos fixos, um dos quais, no rio Verde, onde, a partir dessas instalações, foi fundada a cidade de Lucas do Rio Verde, que conta hoje com uma população de mais de 30 mil habitantes. O outro acampamento foi montado na Serra do Cachimbo, a cerca de 900 km de Cuiabá. Veja bem: 900 km naquele deserto, ou melhor, naquela selva.

Na proporção em que íamos avançando com a rodovia mata adentro – e ela era aberta com uma velocidade fantástica (mais de 200 km/ano) – o governo da época estimulava e realizava leilões para empresas de colonização criarem as infraestruturas mínimas para ocupação, e a partir daí lotearem e comercializarem as terras para a exploração agropecuária. Eram as novas fronteiras agrícolas do País.

E o senhor lembra alguma dessas empresas que tiveram êxito?

Claro. A Sociedade Imobiliária Noroeste do Paraná (Sinop), por exemplo, que se instalou às margens da rodovia e implantou vários núcleos habitacionais, segundo as condições exigidas pelo Instituto Nacional de Reforma Agrária (Incra). Com esse sistema de colonização, a ocupação teve um incremento impressionante. Milhares de famílias, vindas principalmente do sul do País, ocuparam as terras, e a mata começou a desaparecer do dia para a noite.

Então as grandes empresas de exploração agropecuária aproveitaram…

Elas se instalaram e cresceram. Hoje, o Sinop conta com mais de 180 mil habitantes e o norte do Mato Grosso é o maior celeiro de grãos do Brasil. Mas voltemos à obra, que está em minha memória como se fosse ontem. Enfrentamos ali toda sorte de dificuldades. É que chove muito na região. E, como a chuva é contínua, só poderíamos contar com, no máximo, quatro meses de trabalho efetivo. E, nesse período, tínhamos de trabalhar ininterruptamente, com revezamento em turnos diurnos e noturnos para não perder nenhum minuto de tempo.

As máquinas só paravam para as manutenções programadas. Cruzávamos terras indígenas com tribos ainda não pacificadas. Houve, pelo que me lembro, conflito com uma delas e tivemos que parar a obra até que a Funai aparecesse e concluísse os contatos com a tribo, para acertar a possibilidade de darmos andamento, novamente, aos trabalhos.

E a fauna, na ocasião, foi muito sacrificada com a abertura da estrada?

A região tinha uma fauna muito rica, inclusive com muitos animais que traziam perigo para todos (onça pintada, lontra, cobras, lobos selvagens etc.). Durante a noite, era comum vermos onças passando pelo entorno e até pelo interior de nossas instalações. Quando nos deslocávamos de um trecho para outro, víamos com frequência diversos tipos de animais selvagens cruzando a rodovia.

Ao final, e estou falando dos trechos de responsabilidade do 9º BEC, concluímos os nossos trabalhos. Foi um aprendizado, não somente do ponto de vista de engenharia. Eu posso afirmar que foi um aprendizado de Brasil. O Brasil está, desde aquela época, um pouco nas minhas veias. Eu, um engenheiro recém-formado, queria pôr em prática a teoria absorvida nos bancos da faculdade. E acabei aprendendo ali, mais de Brasil, do que a escola me poderia ensinar.

Fonte: Estadão

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