Não é a chuva que mata

Marcos Túlio de Melo*

Épreciso que as autoridades, técnicos e a própria sociedade brasileira façam uma reflexão sobre as ocorrências pluviométricas que aconteceram no final de junho no Nordeste e as consequências que ficaram para a população. As chuvas registradas nos estados de Alagoas, Pernambuco e Sergipe, com intensidades acima dos padrões do período, nos mostram que essas tragédias anunciadas se repetem, variando somente a região atingida, a proporção do desastre e, infelizmente, o número de vítimas.

Fazendo um retrospecto superficial com os dados apresentados pela imprensa brasileira, me veio à cabeça o mês de maio do ano de 1996, quando, mais uma vez, o estado de Pernambuco, a sua capital Recife e municípios da Região Metropolitana sofreram com desabamentos de encostas, soterramento e morte de mais de 50 pessoas. No mesmo período foram registradas 67 mortes no Rio de Janeiro e 22 em Salvador. No ano seguinte, 1997, a população dos estados de Minas Gerais – principalmente da cidade histórica de Ouro Preto -, Espírito Santo, Rio de Janeiro e Paraná tiveram que vivenciar uma tragédia que deixou 67 mil pessoas desabrigadas e 85 mortas.

No final de 2008 ficamos perplexos com a tragédia que se abateu em Santa Catarina, com mais de 10 mil pessoas desabrigadas e mais de 120 mortos. Ficamos chocados com a destruição em Itajaí, uma das mais atingidas no estado. Final de 2009 e início deste ano. Mais uma vez o drama se repete no Sudeste e no Sul com as chuvas de verão. O volume de água conseguiu não só parar São Paulo, mas mostrar ao nosso país o quanto estamos atrasados em ações e iniciativas que previnam essas tragédias. Ao invés de repetirmos o que acontece anualmente quando, resignados, contamos os nossos mortos, contabilizamos o tamanho da destruição e iniciamos a reconstrução das nossas cidades. As vidas, essas não mais recuperamos.

Iniciamos o ano com o drama da cidade de Angra dos Reis. O retrato da destruição e da desolação, com 52 pessoas mortas e inúmeras famílias desabrigadas. Uma cidade em que 60% dos moradores vivem em áreas de encostas, com ocupações, na sua maioria, irregulares. Um exemplo é o Morro da Carioca, com 21 mortes onde, das 900 residências, apenas 170 tinham licença de construção. Esse exemplo demonstra a necessidade de o poder público rever a sua postura diante do cumprimento da legislação, que nasce exatamente para proibir a exposição da população quando da ocupação de áreas de risco.

Em abril outra tragédia. Mais uma vez o Rio de Janeiro sofreu, num drama que se repete a cada dezembro e janeiro, e que, desta vez, deixou mais de 250 mortos e uma comunidade (o Morro do Bumba) devastada. E agora em junho nos vemos diante de 51 mortes e da devastação de municípios dos estados de Alagoas e de Pernambuco, com o registro de 34 mortes em cidades alagoanas, 56 desaparecidos, mais de 80 mil desabrigados ou desalojados e 20 mil imóveis danificados ou destruídos (dados da Defesa Civil de Alagoas).

Por que a chuva vem matando e destruindo tanto? Essa pode ser uma indagação sem respostas, pois, numa análise mais crítica, vamos perceber que não é a chuva que mata, mas a falta de planejamento, de cumprimento da legislação e do correto enfrentamento pelo poder público dos problemas que expõem parte da população brasileira. E essa inércia coletiva pode ser sentida ao verificarmos que dos R$ 645 milhões previstos no Orçamento da União em 2009 para ações de prevenção de desastres dessa natureza, somente R$ 135 milhões foram utilizados.

Omissão? Talvez não seja tão fácil atribuir somente ao descaso deliberado. Seria até mais fácil entender se assim o fosse. Mas não é um único fator que explica esses sucessivos desastres. Esse problema vem de um conjunto de falhas: ocupação desordenada do solo urbano; falta de assistência técnica gratuita para orientação e acompanhamento das construções das moradias de famílias de baixa renda; o não cumprimento da Lei 10.257/2001 (Estatuto da Cidade) – que veio regulamentar o capítulo "Políticas Urbanas" da Constituição e tem como principal instrumento os Planos Diretores; a falta de visão de futuro dos gestores; o desmonte das estruturas técnicas na esfera pública e a falta de investimento em infraestrutura por mais de duas décadas.

O Estatuto da Cidade, em vigência há mais de 10 anos, impõe a obrigatoriedade da elaboração e aprovação de planos diretores a todas as cidades com população superior a 20 mil habitantes e a definição, naqueles planos, dos locais de moradia da população. Com a existência desse importante instrumento, é inadmissível a alegação dos gestores de desconhecimento do fato de inúmeras famílias residirem em moradias precárias, localizadas em áreas de risco.

Pesquisas internacionais, patrocinadas pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) mostraram que mais de 60% do PIB dos países desenvolvidos são produzidos em áreas urbanas. Esse dado talvez explique a razão pela qual 82% da população brasileira optaram em viver nos espaços urbanos. Essa ocupação é que precisa ser revista.

Cabe ao poder público, efetivamente, fiscalizar e fazer cumprir a legislação existente no Brasil, evitando assim a ocupação de áreas inapropriadas e inseguras, inclusive em regiões de enormes riscos geológicos, e a exposição de milhares de brasileiros a catástrofes previsíveis e evitáveis. Cabe também aos profissionais e empresas cumprirem seu papel social, desencorajando qualquer projeto em desacordo com o Estatuto da Cidade e buscando uma maior transparência nos processos de contratação e execução de obras públicas, para que a sociedade possa ser parceria nessa fiscalização.

*Marcos Túlio de Melo é presidente do Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia (Confea)

Fonte: Estadão

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