Nas crises, a sociedade que se dane

A fórmula é simples: a sociedade é a responsável. Cabe a ela, portanto, resolver os problemas cruciais. O governo fica em cima do muro; se pressionado, posiciona-se ao lado dela; se não houver pressão, dá de ombros, assobia e sai de fininho como se a responsabilidade não fosse dele. A fórmula é repetida em todas as instâncias. Todos os governos são unânimes no discurso: “Cabe à sociedade…” e por aí em diante. Se a situação está ruim na política do meio ambiente, no transporte público, no saneamento básico, no abastecimento de água, na iluminação pública, na pavimentação, nas creches sempre insuficientes e precárias, nos estabelecimentos de ensino, nos postos de saúde e hospitais, nas estradas com mais buracos do que rede de pesca, nas ruas que viram crateras, nas redes de esgotos que se tornam rios em época de chuva e inundam cidades, na segurança pública, que é essa violência de todos os dias, o argumento do governo é de que a sociedade não soube se organizar para reivindicar seus direitos. No caso dos precatórios, essa vergonha nacional e única, com tanta gente e empresas na expectativa de que suas dívidas sejam pagas, o refrão repete-se. E tudo fica na dependência da capacidade maior ou menor da sociedade em se juntar para pedir. E pedir até aquilo que está na lei como direito líquido e certo. Enquanto a sociedade não se organiza para fazer prevalecer as suas reivindicações, o governo está há séculos organizado para cobrar e punir. Daí, a seqüência ininterrupta dos recordes de arrecadação. Os impostos, taxas e multas incidem sobre tudo. Por conta disso um contribuinte desabafou na televisão: “Há imposto até para a sobrevivência; sobreviveu, tem de pagar”. É claro que a sociedade tem de se organizar. E, se conseguisse um nível extremamente elevado de organização, o governo tremeria nas bases. Mas não cabe a ela se revelar organizada e mostrar o seu patamar de organização a todo momento e por dá cá aquela palha. O instrumento do voto, para prefeito, governador, presidente da República e renovação das casas legislativas nas três instâncias, pressupõe o meio mais democrático pelo qual ela aponta a sua capacidade de organização. Os governantes são colocados no poder como instrumentos da sociedade organizada a fim de estudar, indicar, dar soluções e prestar contas do que fez ou deixou de fazer. Os orçamentos são elaborados em cima das previsões de cada segmento prioritário, tendo em vista o crescimento da sociedade e a atuação compatível dos órgãos públicos com os quais ela precisa contar no atendimento de suas necessidades. Apesar disso, vem o comodismo. O governo alheia-se. Nos momentos em que a sociedade mais precisa dele, lá vem o discurso afinado: “Cabe à sociedade…” É exigir demais de uma sociedade que está secularmente no contrapé da mera sobrevivência. Mas o governo insiste em transferir-lhe toda e qualquer responsabilidade, esquecendo-se de que esta é a maneira mais covarde de escapismo. É como se dissesse: “Há problema? Toma que o filho é seu. Dane-se”.
Fonte: Estadão

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