Toda obra de engenharia gera impactos maiores ou menores. E, embora ela deva ser, por si só, um benefício social, requer contrapartidas em favor da população diretamente atingida. Belo Monte tenta estabelecer um equilíbrio, com uma série de condicionantes, aos impactos que está ocasionando
Nildo Carlos Oliveira
Em São Paulo, Rio e em outras capitais é impossível contar nos dedos, ou recorrendo a outros recursos, as obras que foram implantadas, para só depois se pensar nas soluções de acesso ou nas consequências sociais de grupos atingidos, cujas casas ou outros bens tiveram de ser removidas do meio do caminho. Houve um tempo em que, na abertura de novas avenidas ou de linhas do metrô, a população do entorno sequer era ouvida; ou era ouvida somente depois que a decisão das administrações municipal ou estadual já era dada como irreversível. A alegação, para eventual desapropriação, era colocada na conta do “interesse social”. Então, entrava na fila do fundo perdido dos precatórios.
Os impactos têm sido detectados tanto em obras públicas – pontes e viadutos – quanto em obras privadas, tais como condomínios e shopping centers. E, quando depois da obra pronta, os condicionantes acontecem, raramente correspondem ao equilíbrio que deve existir nas duas pontas do processo.
Obviamente há exemplos em que as contrapartidas, ao longo do tempo, acabam superando as expectativas. No Estado de São Paulo há o exemplo da cidade de Ilha Solteira, que surgiu ao pé da obra da usina hidrelétrica do mesmo nome. Concebida nos anos 1970 pelos arquitetos Ernest Robert de Carvalho Mange e Ariaki Katoi, para dar suporte à construção da hidrelétrica, ela se tornou município autônomo e paradigma de centro urbano planejado. Os dois profissionais deram à cidade um traçado em forma de violão, com a avenida Perimetral priorizando o tráfego rápido.
Pode ser mencionado também aqui o planejamento logístico da Vale, sobretudo a Estrada de Ferro Carajás, construída para o transporte de minérios de ferro, mas que acabou disponibilizando a linha para trens de passageiros, de modo a atender aos usuários dos Estados do Maranhão e do Pará, percorrendo perto de 900 km ligando os municípios de São Luís, Santa Inês, Açailândia, Marabá e Parauapebas.
Belo Monte e outras hidrelétricas
As obras de maior impacto social, no longo e médio prazo, têm sido invariavelmente as usinas hidrelétricas. Belo Monte vem sendo apontada como o exemplo mais acabado. Provocou polêmica desde os seus primórdios, quando a Eletronorte elaborou o primeiro esboço do arranjo geral da usina. Foi necessário que o projeto recebesse mil e uma alterações, com o desenho da obra desdobrado em quatro sítios, para que então o projeto acabasse aprovado e, mesmo assim, não deixou de ser alvo de reivindicações para condicionantes de toda ordem, em especial por parte de ONGs e de comunidades indígenas.
Hoje, passadas mais de três décadas (ver matéria Implantação da hidrelétrica traz progresso, mas problemas históricos persistem, publicada nesta edição), Belo Monte continua a suscitar reflexões, como as que vêm aqui difundidas pelos engenheiros Brasil P. Machado, presidente do Comitê Brasileiro de Barragens (CBDB), e Paulo Vasconcelos Reis, gerente geral do Consórcio Projetista UHE Belo Monte.
Brasil Machado diz que tanto o CBDB quanto a Comissão Internacional de Grandes Barragens (Icold), que ele representa, preservam preocupação antiga quanto ao equilíbrio que precisa existir entre a necessidade de uma obra hidrelétrica e as medidas para fazer frente aos impactos que ela provoca.
“Entendemos”, diz o presidente daquela entidade, “que é muito difícil determinar aquele equilíbrio. Uma obra de engenharia a rigor já embute um benefício social. Mas os beneficiados nem sempre são, em sua maioria, aqueles diretamente atingidos pelos impactos negativos”.
Ele afirma que há razões objetivas nas reclamações colocadas e é preciso todo esforço das partes envolvidas – empresas, governo e representantes dos grupos afetados – para a adoção de medidas capazes de minimizar os problemas apresentados. “Mas a finalidade deve ser o encontro de um patamar de equilíbrio.”
O engenheiro recorda que nos anos 1970, quando o projeto de Itaipu começou a ser divulgado, o jornal New York Times publicou anúncio, assinado por diversas comissões, informando que o Brasil iria construir “o maior túmulo do mundo”. Com efeito, as obras de Itaipu sepultaram o Salto de Sete Quedas e provocaram até a interferência lírica do maior poeta brasileiro, Carlos Drummond de Andrade, que fez um poema sobre a morte de Sete Quedas. Alguns dos versos do poema são os seguintes:
Sete quedas por mim passaram,
E todas sete se esvaíram.
Cessa o estrondo das cachoeiras, e com ele
A memória dos índios, pulverizada,
Já não desperta o mínimo arrepio.
Aos mortos espanhóis, aos mortos bandeirantes,
Aos apagados fogos
De ciudad real de guaira vão juntar-se
Os sete fantasmas das águas assassinadas
Por mão do homem, dono do planeta
Contudo, Itaipu vingou. E a pergunta que fica, segundo o engenheiro, é a seguinte: “O que seria da economia brasileira sem a energia de Itaipu?”
“Por isso”, afirma Brasil Machado, &l
dquo;na medida em que as populações se urbanizam e avançam em seu processo civilizatório, aumentam as exigências por mais luz elétrica, transporte, saneamento, moradias. Tudo isso significa energia, que pode ser obtida a partir de diversas matrizes, a principal das quais continua a ser a hidráulica”.
Ele diz que o importante é ouvir as populações e encontrar soluções compartilhadas. Lembrou os acontecimentos no Canadá envolvendo tribos indígenas, o governo e os responsáveis pela construção de usina hidrelétrica. “Lá, como aqui no Brasil”, há aproveitamentos hidrelétricos importantes, barragens e reservatórios. E, para construí-los, o governo canadense tem negociado com os índios, solicitando que eles indiquem os interlocutores que os representem. Historicamente, os resultados têm sido benéficos. As reivindicações são examinadas e discutidas até se chegar “ao ponto do equilíbrio”.
Brasil Machado informa que em 2003 esteve no Canadá e presenciou um ato de negociação do governo com os índios. O resultado das negociações foi, mais tarde, explicado tanto pelo chefe indígena quanto pelo representante do governo, em Quebec, aos demais índios, que concordaram com os itens negociados. Há casos em que os índios canadenses detêm até 20% das ações das obras.
O presidente do CBDB pergunta: “Por que não podemos fazer a mesma coisa aqui? É muito mais proveitoso, para as tribos e para o País – considerando que há outras obras projetadas na Amazônia – se chegar a um acordo e não se partir para uma disputa em que todos perdem. “E o Brasil e a sociedade, como um todo, precisam ganhar, com os seus recursos hídricos”.
A importância dos reservatórios
Paulo Vasconcelos Reis concorda com Brasil Machado em relação às negociações tendo-se em conta os condicionantes para minimizar impactos em obras de engenharia. Mas, acredita que, em diversos casos, há exigências em demasia e elas podem até colocar em risco obras importante para o futuro brasileiro.
“E acho mais. Uma usina não pode ser encarada apenas como usina. O conjunto não tem apenas um propósito único. Um reservatório precisa ter uso múltiplo, uma vez que fornece água para a agricultura, melhora o ecossistema, permite o desenvolvimento das operações hidroviárias, instiga a pesca e o turismo e colabora para o controle de vazões”.
Com esse mesmo raciocínio, Brasil Machado cita o exemplo de Sobradinho. “Só não é o maior do Brasil, porque há o da Serra da Mesa. Mas tem sido importante para a região agrícola do rio São Francisco, que depende da irrigação”.
“Hoje, o São Francisco tem uma situação de seca muito semelhante à de São Paulo, e o reservatório a montante é o de Três Marias, que está muito baixo. Se esse reservatório fosse maior, ele permitiria a continuidade de uma série de benefícios, mesmo em época assim. Permitiria, por exemplo, manter a navegabilidade entre Três Marias e Sobradinho, onde a navegação está parada.”
Para os dois engenheiros, as obras de engenharia precisam ser estudadas e prever agendas de negociações para que haja condicionantes contra impactos e o País evolua.
A “Paz entre Bravos” no Canadá
Esse foi o nome do tratado histórico de 2002, celebrado entre o governo de Quebec, Canadá, e a nação indígena Cree, que consolidou os entendimentos iniciados em 1975 para implantar a hidrelétrica de Eastmain-A-Sarcelle-Rupert, na região de James Bay. Os nativos Cree foram envolvidos em cada aspecto do projeto, desde os estudos preliminares. Ashley Iserhoff, grande chefe executivo do conselho dos Crees (Eeyou Istchee), prestou o seu testemunho de que a operadora Hydro Quebec cumprira um extenso programa de compromissos, incluindo preservar a pesca e a fauna, respeitar o modo de vida dos indígenas e adotar mecanismos que minimizassem os impactos ambientais e sociais.
O projeto hidrelétrico demandou amplas obras de proteção ambiental como a criação de locais para desova de peixes, plantio de vegetação para conter erosão nos barrancos e levantar diques no rio Rupert para manter a navegação e as atividades tradicionais de pesca e caça dos nativos. Esse conjunto de medidas consumiu US$ 260 milhões na época. A usina Eastman 1, em James Bay, entrou em serviço em 2006, e a construção do Eastman-A-Sarcelle-Rupert começou dois anos mais tarde.
Seguindo esse exemplo, a empresa Manitoba Hydro e a nação Cree Nisichawayasihk assinaram em 2006 um acordo de associação para desenvolver a usina de Wuskwatim, oferecendo treinamento para empreendedores nativos, empregos e dividendos financeiros para as comunidades locais. A Manitoba Hydro vai construir e operar Wuskwatim, enquanto a nação Cree da região terá papel crucial no monitoramento ambiental e nas relações com as tribos nativas, e terá oportunidade de controlar até 33% do empreendimento. (Joseph Young)
Fonte: Revista O Empreiteiro