Pesquisador de infraestrutura defende mudanças na 8.666 e condena RDC

José Carlos Videira

 

 

O engenheiro civil Paulo Resende, diretor executivo de Programas Abertos e Pós-Graduação, professor e pesquisador da Fundação Dom Cabral nas áreas de Logística, Cadeia de Valor, Supply Chain e Planejamento de Transporte avalia que o estado atual da infraestrutura logística no Brasil ainda está muito aquém do esperado para um país de dimensões continentais como o Brasil. Essa situação afeta a competitividade e traz prejuízos à economia brasileira. O especialista também ressalta que o portfólio de projetos do governo para a área é bastante completo, mas não avança na velocidade ideal por conta dos entraves burocráticos que emperram os processos. Ele defende a atualização da lei 8.666, condena o RDC e avalia que o Brasil aproveitou mal a oportunidade de avançar a questão de infraestrutura com os eventos esportivos, como Copa e Olimpíada, que ajudaram a expor a péssima qualidade dos gestores públicos do País. A seguir, os principais trechos da entrevista exclusiva concedida ao O Empreiteiro.

 

Qual a sua avaliação sobre o estado atual da infraestrutura de transportes no Brasil?

Considero que o setor de carga no Brasil é deficiente. As mudanças e melhorias têm sido muito lentas; prejudica o País pela sua ineficiência e, pelos seus altos custos, prejudica a competitividade brasileira. É um fator também responsável pelo aumento interno dos custos dos produtos e dos serviços.

 

Quanto que a infraestrutura atual de estradas, ferrovias e portos contribui para esse estado?

Se formos comparar a logística brasileira à logística norte-americana, que é uma referência mundial, principalmente para países de dimensões continentais como o Brasil, podemos afirmar que o Brasil tem hoje uma diferença de 5% dos custos de transporte em relação ao seu Produto Interno Bruto (PIB), tendo como referência os norte-americanos. Isso significa hoje, se considerarmos o PIB brasileiro em cerca de R$ 4 trilhões, que temos uma perda anual em relação aos norte-americanos de R$ 200 bilhões, mais ou menos US$ 100 bilhões. Portanto, qualquer  produtor brasileiro, qualquer empresa brasileira que concorra com produtos norte-americanos já chega com um prejuízo muito grande. Então, hoje, o Brasil tem por ano uma perda, ou um aumento de seus custos, em torno de R$ 200 bilhões, comparado com os norte-americanos.

 

Como a infraestrutura e logística do Brasil se situam em relação aos Brics?

O Brasil está muito distante. O último relatório do Fórum Econômico Mundial, que é chamado de Fórum de Competitividade, posiciona o Brasil na última colocação entre os Brics em termos da qualidade da infraestrutura. O Brasil somente ganha no quesito rodovias da Rússia. Mas em todos os outros modais (aeroportos, portos e ferrovias) é o último. E na qualidade geral da infraestrutura, nós também somos os últimos. Então, o Brasil é o pior colocado entre os Brics em termos de infraestrutura de transportes.

 

O governo tem tomado algumas iniciativas, a exemplo do Programa de Investimento em Logística (PIL), como o senhor avalia o PIL, tem alguma possibilidade de mudar a situação atual?

O governo hoje tem um portfólio de projetos bastante completo. É abrangente, envolve os principais projetos necessários e até suficientes para colocar a infraestrutura logística do Brasil numa posição de competitividade entre as 20 maiores economias mundiais. No entanto, esse portfólio de projetos tem um grau de operacionalidade muito baixo.

 

Porto do Pecém (CE)

 

Então os projetos de logística no Brasil funcionam somente no papel?

Exatamente, não tem dúvida. E aí o índice nosso de projetos realizados no tempo certo, planejado, e eu destaco no tempo planejado porque, hoje, o governo brasileiro tem uma média de adiamentos de prazos de execução de projetos em torno de 80% de cada projeto. Isso é uma média perigosíssima. Ou seja, nós estendemos o prazo de execução de um projeto em até 80%. Por exemplo, um projeto que estava definido para terminar em quatro anos, ele quase que dobra, vai para sete anos. É perigoso porque carrega também nesse processo uma média de aumento do seu orçamento inicial de 50%.

 

Qual seria um exemplo clássico desse tipo de atraso entre o projeto e a execução da obra no Brasil?

A Ferrovia Norte-Sul é o caso clássico de todos no Brasil. Iniciada na década de 1980, não acabou até agora. Eu diria que esse é o exemplo extremo dessa régua que nós estamos analisando.

 

BR-040 liga Brasília (DF) ao Rio de Janeiro (RJ)

 

Quais seriam as principais consequências desse tipo de situação que vivenciamos no Brasil?

Por atrasarmos tudo, tudo fica mais caro. Com isso, se reduz a capacidade de execução em termos de volume de obras, porque o Orçamento (do governo) não é tão grande assim. E não é somente isso. Quando o projeto chega ao final, acaba com uma demanda represada. É a mesma coisa na inauguração de terminal de aeroporto no Brasil, quando inaugura já está precisando de um segundo.

 

Por que esses atrasos acontecem no Brasil?

A questão toda está na burocracia. É a burocracia governamental, desde o ponto da definição de um projeto até a sua entrega para a operação, que faz com que a média de realizações de projetos governamentais no Brasil fique abaixo de 20%.

 

Mas essa é uma realidade que transcende governos, não?

Não tivemos nenhum governo até hoje capaz de reduzir essa complexidade burocrática. Governo após governo continua convivendo com isso. E essa prática é, sem dúvida nenhuma,  a fonte da corrupção. Porque, quanto mais complexo é o processo burocrático, melhor para o corrupto, de todos os lados. O mal-intencionado se alimenta da complexidade burocrática, porque ela não é transparente.

 

Criam-se dificuldades para se vender facilidades?

Não tem dúvida nenhuma. Portanto, os projetos do governo, o PIL, o próprio PA
C, são projetos com uma boa intenção com relação ao portfólio de projetos. Mas não podemos dizer que essa boa intenção se desdobra para a prática por causa de todas essas questões que discutimos.

 

Que países podem ser exemplos de equilíbrio entre planejamento e execução?

A China é o primeiro deles. Só que a China tem um problema. O controle é feito pelo governo central. Manda quem pode e obedece quem tem juízo. É um pouco diferente daqui, onde temos de encaixar as questões no processo democrático. Mas temos na Índia uma ação cada vez maior de se garantir esse equilíbrio por meio de fortalecimento técnico das agências reguladoras. Temos de encontrar mecanismos no Brasil para que a influência política não seja a única influência.

 

O senhor enxerga alguma solução para esse problema?

Acredito que o volume necessário na infraestrutura de logística no Brasil só virá com maior participação da iniciativa privada por meio do aumento do volume de concessões.

 

Como o senhor tem visto as últimas concessões de rodovias e aeroportos, já não estariam no limite do interesse privado?

Em rodovias e aeroportos, estamos realmente atingindo um limite. No caso de rodovias, temos cerca de 20 mil km já concedidos, e em estágio de concessão mais uns 5 mil km. Então, o limite brasileiro seria de uns 25 mil km. No caso de aeroportos, temos um espaço um pouco maior, e coloco como dois aeroportos bastante atrativos, que precisam ser analisados com um pouquinho mais de paciência, que são Congonhas e Santos Dumont. Também acho que temos aeroportos do Sul e alguns do Nordeste com atratividade para a iniciativa privada. Mas, também, o limite está chegando.

 

Esgotados aeroportos e rodovias, não existe nenhum outro modal de interesse privado?

Uma grande fronteira que temos ainda de concessão são as ferrovias. Acho que o governo brasileiro deveria começar a trabalhar agora bastante nisso. Vejo o processo de concessão com bons olhos, mas, agora, temos de iniciar uma segunda fase, que é a de controle e fiscalização para que as tarifas cobradas tenham o retorno em qualidade de serviço.

 

Aí é que entra o papel das agências reguladoras, certo?

Sim, mas confesso que isso me preocupa.

 

Por quê?

As agências precisam ser mais técnicas do que políticas. Exatamente, nesse ponto, defendo um mapeamento e uma avaliação profunda da capacidade técnica das agências reguladoras. Deveríamos fazer esse mapeamento com a intenção de aparelhar as agências reguladoras tecnicamente, o que significa o desaparelhamento político. Eles são excludentes.

 

O senhor acha que não pode haver políticos nas agências reguladoras de nenhuma forma?

O elemento político tem o seu lugar, mas não é na agência reguladora. Não consigo imaginar um modelo de gestão que conviva de forma eficiente com esses dois elementos no mesmo ambiente. Não cabe. O elemento técnico precisa, necessariamente, substituir o elemento político.

 

O que mudaria na prática?

Quando fizermos isso, a partir desse mapeamento, poderemos aparelhar as agências reguladoras para defender as empresas brasileiras, o cidadão brasileiro usuário de rodovia, aeroportos, ferrovias, portos etc. com relação à contrapartida da qualidade do serviço. Se garantirmos a qualidade do serviço com tarifas razoáveis, podemos entrar num segundo movimento que é o da parceria público-privada (PPP), em que o orçamento é da União e a gestão privada.  Aí poderíamos abranger projetos com baixa atratividade de mercado no momento. Nesse caso, criaríamos condições de aumento de demanda para, no futuro, transferir para a iniciativa privada.  Esse círculo virtuoso só será adquirido a partir do momento em que fizermos um par perfeito entre tarifas de mercado associadas à qualidade de serviço.

 

Mas é só capacidade técnica que falta às agências?

Elas também sofrem de falta de investimentos em gestão, capacitação, em recursos humanos e em tecnologia. Elas não têm verba e, portanto, não têm a capacidade técnica necessária. Por outro lado, estão aparelhadas politicamente. Cada vez mais se transformam em agências muito mais de controle político do que com papel de regular e fiscalizar o que se espera.

 

Quais foram os avanços na questão de infraestrutura que o senhor enxerga nos últimos anos?

O primeiro avanço qualitativo é que a infraestrutura veio para a pauta de discussão da sociedade brasileira. Não escondemos para debaixo do tapete a importância do tema. Nos últimos anos, nunca foi tão discutida a necessidade de investimentos em infraestrutura no País, que agora é colocada como uma questão de Estado. Outro avanço recente foi a percepção dos governos brasileiros, em todos os níveis, de que o orçamento público não é capaz de cumprir com as necessidades que precisamos para melhorar a infraestrutura. Daí vieram as participações privadas, as concessões, alguma coisa ainda muito pequena de PPP, mas a constatação de que o orçamento público não é soberano. Isso é uma quebra de paradigma que vinha há séculos no Brasil. E um terceiro avanço é o papel do Judiciário no controle dos projetos de infraestrutura, com bastante ênfase dada pelo Ministério Público e Tribunal de Contas, porque, infelizmente, enquanto não tivermos o fortalecimento das agências, vamos ter que ter alguém tomando conta do galinheiro. No Brasil, historicamente, tínhamos raposas tomando conta do galinheiro.

 

O que falta agora?

Avançar no nível de investimento e na redução da burocracia para controlar a corrupção.

 

Mas isso não é papel da lei 8.666?

Ela é uma boa lei, mas precisa ser modernizada. A intenção da lei é excelente, mas está ultrapassada. Tanto é que, não sou defensor do Regime Diferenciado de Contratações (RDC), que surgiu por conta de Copa do Mundo, que agora se espalha, porque todo mundo está colocando projetos em RDC. Isso é um sintoma da necessidade de se atualizar a 8.666. Quando um país precisa contornar uma lei tão importante quanto essa, é sinal de que tem alguma coisa errada. O RDC não pode se tornar um concorrente da 8.666.

 


Mas hoje a 8.666 também não amarra o processo de execução?

Ela amarra demais, atrasa os processos de contratações, que por vezes exigem agilidade, quanto mais tempo passa, mais caros ficam os projetos e se tornam mais difíceis de contratar. Por isso, a lei 8.666 precisa ter a agilidade do mundo atual. Sem atualização, é uma lei que funciona como se o mundo não tivesse mudado nada nos últimos 20 anos. E muita coisa mudou. A tecnologia hoje permite que se façam leilões reversos com muito mais agilidade; que cuide de questões burocráticas de forma mais rápida. Portanto, acho que ela tem tudo para continuar sendo uma boa lei, mas uma lei atual. Na essência é uma boa lei para um país que tem a cultura da corrupção, do malfeito. Se estivéssemos na Suécia ou na Suíça ela seria totalmente dispensável.  Porém, uma lei para combater os malfeitores não pode prejudicar os benfeitores.

 

O senhor acha que o Brasil aproveitou bem as oportunidades para investir em infraestrutura com a realização dos grandes eventos esportivos no País?

Aproveitou muito mal. Desde a Olimpíada de Sydney e Barcelona, desde a Copa da África do Sul e até mesmo da Copa Coreia-Japão, o Brasil é o país que de longe menos aproveitou essa oportunidade.

 

Esses eventos não trarão nenhum ganho para o País?

O resultado mais importante é que conseguimos expor a grande ferida brasileira que é infeccionada pela péssima gestão pública que temos em todos os níveis. A incapacidade do gestor público brasileiro é algo que assombra. A sociedade brasileira tem consciência agora do quão incompetente é o processo gerencial público brasileiro. Isso vai nos servir como grande fator para melhorar o que tem de ser melhorado.

 

 

Obra ferroviária da Valec                                                                      Obras no Aeroporto de Fortaleza

Fonte: Revista O Empreiteiro

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