E se, por exemplo, os rios, uma vez despoluídos, voltassem a abrigar as regatas, as competições de natação e parques de recreação para a população? E por que não piscinas flutuantes como aquelas das margens do Sena?
Maria Cecília Barbieri Gorski *
Uma colina situada entre os rios Tamanduateí e Anhangabaú foi o sítio escolhido para estabelecer a vila de São Paulo de Piratininga no século XVI. Poucos sabem que as águas do ribeirão Anhangabaú, cujas nascentes se localizam entre a Vila Mariana e o Paraíso, ainda correm escondidas debaixo do metrô e sob a avenida São João, desaguando no rio Tamanduateí, perto da rua 25 de Março.
Já o Tamanduateí, outrora importante eixo de navegação, que tinha 43 afluentes, está em grande parte comprimido dentro de galerias semi-abertas ladeadas pela avenida do Estado . O atual Mercado Municipal se localiza às margens do Tamanduateí, via de abastecimento do centro da cidade.
E o porquê do nome da ladeira Porto Geral? Por mais eloqüente que seja o nome da ladeira, poucos a associam ao outrora porto do Rio Tamanduateí.
A cidade foi se "modernizando" e nossos rios e córregos foram sendo retificados, canalizados, passando o sistema viário a dominar o desenho urbano.
No final do século XX o cenário da metrópole, originária da vila, já era de total desligamento da sua rede hidroviária em termos de paisagem ou de relação com a natureza. Pode-se dizer que a sentença drástica de enclausuramento dos nossos principais rios se deu com a construção das marginais do Tietê e do Pinheiros no final da década de 1960. Essa decisão absolutamente focada no sistema viário subestimou a complexidade dos sistemas fluviais e empurrou para décadas a frente a possibilidade de recuperar as várzeas desse rios.
Atualmente a população paulistana circula no dia a dia sobre as pontes sem se dar conta de que está atravessando um ou mais rios e córregos e de que eles já tiveram, um dia, uma condição saudável.
Esses corpos d’água passaram a representam para a maior parte dos paulistanos nada mais que entraves à circulação e fonte de mau cheiro.
Como será o futuro desta
conflituosa relação?
A situação de colapso que se apresenta nas grandes cidades, particularmente com as inundações e a deterioração do tecido urbano, contribui decisivamente para uma reavaliação das decisões adotadas e para uma mudança de paradigmas e de mentalidades.
A incessante transformação das cidades e as intervenções sobre seu sítio original evidenciam a dinâmica desses processos. Dinâmica que nos possibilita acreditar em transformação do cenário atual, evoluindo para o resgate dos valores potenciais das áreas urbanizadas, de forma integrada com os fundos de vale e os cursos d’água.
Desde 2008 a população mundial que vive nas cidades é maior que a população que vive nas áreas rurais. Como esta situação parece irreversível, a qualidade de vida urbana torna-se então uma questão central para a humanidade.
Metrópoles de complexidade similar à urbe paulistana já deram início à recuperação de áreas degradadas e de seus principais corpos d’água.
A cidade de Washington, por exemplo, a partir de 2000 passou a desenvolver um plano de recuperação para o rio Anacostia, localizado na região leste da cidade, tendo como meta a balneabilidade do rio para 2025.
Também a cidade de Los Angeles cujo rio Los Angeles se transformara em canal de concreto isolado que mal se conseguia distinguir no tecido urbano começou a desenvolver seu plano de recuperação a partir de 2002.
Quais as metas de São Paulo
nessa direção?
E se, por exemplo, começarmos imediatamente a coletar e a tratar todo o esgoto doméstico, inclusive de empreendimentos altamente sofisticados, que é despejado diretamente dentro do leito dos rios? A poluição e o mau cheiro que afetam a população de todas as classes sociais teriam uma melhoria resultante da melhor qualidade da água.
E se, por exemplo, em vez de aumentar as pistas das marginais chegarmos ao ponto de ter que suprimi-las pela inviabilidade de se deslocar em transporte individual? Teremos que forçosamente desenvolver outros sistemas de transporte coletivo com a chance de ir pouco a pouco retomando áreas de várzea para os rios.
E se, por exemplo, uma vez despoluídos, voltassem a abrigar as regatas, as competições de natação, e parques de recreação para a população? E por que não piscinas flutuanrtes como aquelas nas margens do Sena?
E se, por exemplo, o transporte fluvial se apresentar como uma solução intermodal no sistema de transporte coletivo e de transporte de carga? Afinal os rios Tietê, Pinheiros e Tamanduateí já foram navegáveis (fig. 1).
E se a pesca esportiva fizesse parte das atividades de recreação ribeirinha?
E se as pontes se transformassem em ícones estruturais e arquitetônicos não se esquecendo dos veículos de transporte coletivo, dos pedestres e dos ciclistas. A ponte estaiada do rio Pinheiros não incluiu essas possibilidades de deslocamento no meio urbano (fig. 2 e 3).
E se os planos diretores de drenagem urbana determinarem que as APPs ( áreas de Preservação Permanente) dos rios terão que ser liberadas para proteção dos leitos fluviais como uma das medidas de prevenção de inundações? E se em vez de piscinões, que por funcionais que sejam, não contribuíram para a qualidade da paisagem urbana, tivéssemos lagoas de detenção integradas aos sistemas de parques?
E se o sistema de áreas verdes urbanas passar a planejar corredores verdes que se conectem com as margens dos rios?
E se com a recuperação das matas ciliares interconectadas aos corredores verdes, começarmos a ter uma quantidade tão significativa de pássaros a ponto de atrair um público observador de pássaros?
E se os parques ribeirinhos passarem a abrigar atrações de interesse turístico?
E se os projetos de educação ambiental fossem mais atraentes e efetivos, de modo a conscientizar a população urbana, e também os técnicos, gestores e políticos ? (fig. 4).
E se pudéssemos contar com grupos de parceiros e de voluntários tanto na implementação, como na gestão e no monitoramento dos planos de recuperação dos rios?
Parece uma utopia? Sim, pode parecer. Esses planos são de longo prazo, prevendo etapas que levarão décadas desde o início até a implementação total. Muita pressão social, vontade política, qualidade técnica, integração entre os diversos setores governamentais, parcerias público-privadas entre outros fatores serão necessárias para vencer os desafios que se colocam
para a recuperação dos sistemas fluviais urbanos. Várias categorias de abordagem articuladas concorrem para a definição dos objetivos, diretrizes e propostas a serem adotados (fig. 5).
Algumas ações recentemente implantadas já prenunciam mudanças. As ciclovias ao longo de um trecho do Pinheiros estão levando a população para junto do rio. São, às vezes, essas singelas ações de sensibilização e de conscientização da sociedade, de rápida aceitação, é que abrirão caminho para aquelas de médio e longo prazo.
A recuperação de nossos bens certamente será a nossa chance de reinventar uma cidade de melhor qualidade, em que todos os setores da sociedade se beneficiarão.
*Maria Cecília Barbieri Gorsk é arquiteta e autora do livro Rios e cidades – ruptura e reconciliação (ver resenha na seção Dimensões, nesta edição)
Fonte: Estadão