Queda de braço

Mariuza Rodrigues

Embate entre o TCU, o governo federal e segmentos da engenharia aponta para a necessidade de aperfeiçoamento dos modelos de contratação de obras

Um embate entre o governo federal e o Tribunal de Contas da União (TCU) tenta colocar em dúvida as atribuições do órgão, criado para fiscalizar a destinação correta do dinheiro público. No ano passado, por vários momentos o presidente Lula da Silva, alguns ministros e representantes de entidades de engenharia criticaram o Tribunal de Contas, que havia determinado a paralisação de obras onde identificara irregularidades, como na expansão dos aeroportos administrados pela Infraero.

O confronto chegou ao ápice com o veto do presidente à orientação do Tribunal, na proposta de Orçamento de 2010, de bloquear verbas federais para obras com indícios de ilicitudes.

Ao sancionar a lei do Orçamento, o presidente vetou parcialmente o bloqueio a 24 obras – quatro delas são da Petrobras e duas contam com recursos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Incluem-se a nova refinaria Abreu e Lima, em construção em Pernambuco; a ampliação da refinaria Presidente Getúlio Vargas, no Paraná; a construção do terminal de escoamento de Barra do Riacho, no Espírito Santo; e o Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro – Comperj. O argumento do governo foi de que a paralisação das obras geraria prejuízos e desemprego, pois a maior parte das obras já havia começado.

A sansão causou mal-estar entre as instâncias do governo, por confrontar-se com a posição do TCU, e ampliou o debate sobre o papel e a legitimidade do órgão. O governo chegou até a levantar a hipótese de criar outro órgão para "fiscalizar" o órgão fiscalizador. O papel do TCU, previsto na Constituição, é de que o órgão fiscalizasse a aplicação de recursos públicos em apoio ao Poder Legislativo. O gesto do presidente estimulou até um movimento de auditores em defesa do órgão e criou a polêmica: governo X TCU, quem tem razão?

Poder judiciário

Em defesa do TCU está o jurista Ives Gandra Martins. Na última Constituinte de 1988, ele propôs que os Tribunais de Contas devessem participar do Poder Judiciário, ao invés de serem órgão "acólito do legislativo". A seu ver, os Tribunais de Contas representam a maior garantia do cidadão contra os desmandos de quaisquer governos.

"A tendência de quem tem o poder é utilizá-lo pro domo sua, como procurei demonstrar no meu livro Uma breve teoria do poder (Ed. Revista dos Tribunais, 2009). A própria criação dos TCs, no seu tríplice modelo, em todo o mundo (controle prévio, durante e após a execução do orçamento) decorre da idéia de que o Poder deve ser controlado para que, como dizia Lord Acton não ocorra a frase que se tornou célebre: "O poder corrompe. O poder absoluto corrompe absolutamente". Cheguei a propor na Constituinte, que os Tribunais de Contas deveriam participar do Poder Judiciário e não ser um órgão acólito do Legislativo. Não consegui, nas discussões com os constituintes, convencê-los, mas ganharam os TCs maior autonomia", destaca afirma.

Na opinião de Gandra, há, claramente, melhor fiscalização das obras, "inclusive contra o mal maior nas licitações que é o sobrepreço, campo em que o TCU tem, com muita precisão e acuidade, atalhado sempre que se detecte seu aparecimento." A seu ver, a instituição atende nitidamente a este objetivo. "Se não atendesse, não seria tão atacado principalmente pelas autoridades que não têm como justificar os preços pagos, razão pela qual o TCU é um incômodo. Felizmente, para o cidadão, exerce magnificamente seu papel de ser o verdadeiro Poder Responsabilizador".

Ele é contra qualquer hipótese de extinção do órgão: "A extinção dos TCs transformaria o Brasil na ´pátria da corrupção`. O aperfeiçoamento é sempre desejável, apesar de já estar o TCU em patamar de idoneidade e competência muito acima da média das instituições políticas deste país.". Enfatiza ainda que a" reação dos descontentes, não só não é legítima, como preocupa todos os cidadãos, pois levanta suspeita de que há algo hameletiano no reino do Brasil".

Com relação à isenção entre os poderes, Ives Gandra acredita que seja difícil reformular o papel dos TCs, à luz da atual Constituição. "Entendo eu que os arts. 70 a 75 da Lei Suprema não serão reformulados. Se viessem a ser, todavia, mais tributos para suportar mais corrupção seriam necessários. No livro acima citado, mostrei que em todos os períodos históricos e espaços geográficos o poder corrompe. No Brasil, o TCU conseguiu reduzir o nível de corrupção. Se deixar de existir, a corrupção atingirá espaços estelares".

E reforça que a existência do TCU está vinculada às garantias constitucionais dos cidadão. "A melhor garantia do "cidadão não governamental" é confiar no TCU, em nível federal, e nos TCs e Conselhos de Contas nas outras esferas públicas. Fazem pelo cidadão o que os representantes por ele eleitos não têm conseguido fazer".

Questão emblemática

Paulo Godoy, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Base e Infraestrutura (Abdib), e que tem tido uma participação ativa na discussão do papel do órgão junto ao governo federal, diz que o "TCU é uma instituição extremamente importante, bem como é fundamental fiscalizar e controlar o gasto público". Argumenta, no entanto, que "nem sempre as instituições de controle e fiscalização funcionam da forma como deveriam, assim como as instituições encarregadas de executar as obras e as políticas públicas".

"Devemos, sempre, manter vigilância e esforço para aperfeiçoar o funcionamento das instituições e aproximar procedimentos e normas que todas essas instituições adotam, de forma que os investimentos possam ser realizados com menos atritos e sem interrupções", pondera.

A seu ver, éfundamental melhorar a uniformidade e a integração aos procedimentos e trâmites relativos às atividades das instituições e órgãos públicos, com competências de controle e fiscalização. Mas ele acredita que seja possível acelerar os investimentos em infraestrutura com base na transparência, economicidade, eficiência e legalidade. "Acima de tudo, o essencial é fortalecer a segurança jurídica e a transparência nos processos, principalmente nos de licenciamento e licitação, com previsibilidade com relação a custos e prazos. Atualmente, a empresa inicia um investimento com base em uma licença prévia e depois há grande chance de surgirem custos novos e inclusive interrupções da obra", reclama.

Enfatiza também que a paralisação de obras implica em prejuízos graves para a sociedade, pois há custos intrínsecos para retomar as atividades e para recontratar pessoal e máquinas. "Isso não significa um aval para o desperdício de recursos ou uma conivência com possíveis falhas. O que quero dizer é que temos de ser eficientes nas fases que antecedem o gasto, de forma que, depois de assinado o contrato, cumpra-se o contrato."

Hoje ocorre em muitos casos divergências que poderiam ser evitadas, diz Godói, pois os órgãos de controle adotam algumas normas diferentes das adotadas por órgãos de execução e as empresas públicas e privadas envolvidas.

Dessa forma, em toda fiscalização essas diferenças vão aparecer e as obras sofrerão sanções ou constrangimentos. "Temos de discutir essas diferenças – e é isso que estamos fazendo, dentro do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES)", grupo que trata questões referentes à infraestrutura que tem Godói com coordenador. "Queremos aproximar as regras, as normas e os procedimentos dos órgãos executores e fiscalizadores para reduzir divergências e evitar problemas nas obras em andamento. Queremos compatibilizar critérios com quem fiscaliza e com quem executa obra", completa.

O empresário acha que para reduzir a quantidade de conflitos que atrapalham a condução dos investimentos em infraestrutura, a legislação precisa prever mecanismos para que haja segurança e qualidade na contratação pelo administrador público e redução da burocracia. E dá como exemplo o uso mais intenso de mecanismos como Seguro-Garantia e do Projeto Executivo..

"O seguro-garantia transfere para a indústria de seguros boa parte da análise do perfil financeiro das empresas que querem participar da licitação. Hoje, essa análise é feita principalmente pela administração pública. Esse instrumento garante a entrega do bem ou serviço contratado e diminui o risco de surgirem obras públicas inacabadas ou abandonadas", diz. No segundo exemplo, os processos de licitação englobariam o Projeto Executivo de engenharia, substituindo, o que ocorre em muitos casos, a simples existência de um projeto básico ou precário como requisito para iniciar a licitação. "O projeto executivo oferece mais detalhes com relação aos desafios e recursos técnicos e financeiros exigidos para o bem ou serviço em contratação, diminuindo os riscos para a administração pública.", pondera Godói.

Forma x conceito

Para o empresário Eduardo Capobianco, diretor da Construcap, e também presidente da Organização Não Governamental Transparência Brasil, o TCU é hoje um dos órgãos tecnicamente mais aparelhados dentro do governo, tendo condições de exercer qualquer papel que for designado.

A seu ver, a polêmica sobre a atuação tem o mérito de abrir caminho para um aperfeiçoamento do órgão. "O TCU tem que continuar a fazer o seu trabalho, que é extremamente importante ao defender o patrimônio público", diz ele. "As obras que estiverem irregulares precisam ser paralisadas para que os problemas sejam corrigidos. Se há problemas numa obra, ela realmente não pode continuar", reforça ele.

O que precisa ser reavaliado, na sua opinião, são os conceitos que tem orientando os trabalhos de fiscalização do TCU. "O Tribunal de Contas deveria estabelecer regras mais claras e que não impedissem o mercado de funcionar, realizando uma análise preventiva da licitação, dentro das livres regras de concorrência".

Ele critica a prática do TCU de usar tabelas de preço como referência. "Este é um ponto fundamental. Eu acho que o TCU está se apegando muito nessa questão de tabelas-padrão, tentando pasteurizar essa discussão, e acaba chamando tudo aquilo que seja de diferente da tabela de super-faturamento. Isso é um erro. Eu acho que o importante seria focar as condições da licitação, eliminando-se as barreiras que impedem o livre funcionamento do mercado. O conceito de tabelas de preços é algo antigo, pertence ao passado, e tira a capacidade mais importante numa concorrência que é a capacidade dos agentes do mercado de estabelecer o preço.Quando isso ocorre, o preço pode até ser menor, pois cada empresa desenvolve sua capacitação técnica de modo a obter desempenhos melhores em algumas áreas, e que efetivamente, podem contribuir para a redução de um preço global", justifica ele.

O próprio Capobianco já questionou muitas regras do órgão, sem obter respostas satisfatórios. "Diversas vezes aparecem regulamentos que quebram a regra do princípio legítimo de funcionamento do mercado, e de concorrência". A seu ver, a questão principal está na definição de regras claras, definidas, adotando referências que não sejam impositivas, e impedir o dirigismo. "Numa economia de mercado, os agentes estabelecem o preço", destaca.

Ele defende também que o órgão deveria se prender a verificar se o que está sendo realizado está dentro dos parâmetros estabelecidos no contrato. "O lucro maior ou menor do c

ontratado depende das condições assumidas na concorrência, assim como ocorre na iniciativa privada". Informa que alguns parâmetros acabam distorcidos, e por causa de questões como o dirigismo, o TCU passou a trabalhar noutra ponta, que são preços. "Não resolve o problema, e subverte o procedimento sob o qual o TCU deveria trabalhar mais.

A seu ver, a crítica do governo ao TCU é perigosa. "Nunca deve se justificar fazer o empreendimento contra princípios republicanos apenas porque o empreendimento precisa ser feito, senão vai se desrespeitando questões básicas como a livre competição, combate à corrupção, respeito aos contrato". E enfatiza ser preciso garantir que a concorrência seja limpa, dentro dos princípios da livre concorrência. "Um edital sem dirigismo leva a uma competitividade maior. A grande mudança que deveria ser discutida em relação ao TCU seria foco no trabalho preventivo, evitar licitações que induzam à restrição da concorrência, por meio da criação de barreiras artificiais que atrapalham o funcionamento do mercado", conclui.

Infraestrutura representa 43% da auditoria do TCU

Segundo o relatório do Tribunal de Contas da União, relatório que consolida as fiscalizações de obras feitas em 2009, o setor de infraestrutura concentrou 43,4% dos levantamentos de auditoria e 78,5% da dotação orçamentária fiscalizada. No total, as auditorias envolveram R$ 35,4 bilhões em dotação orçamentária e 219 obras.

Entre as 99 obras do PAC fiscalizadas, 13 apresentavam irregularidades que recomendavam paralisação, segundo critérios da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). O número representa 0,5% das 2.446 obras do programa.

Este ano, o TCU ampliou a abrangência das auditorias, que passaram a abordar mais detalhadamente os aspectos relativos a questões ambientais.

Outra mudança diz respeito à paralisação de obras. Pela LDO 2010, o Congresso estabeleceu para si maior controle sobre o anexo da Lei Orçamentária Anual (LOA) que contém o "quadro-bloqueio". O quadro traz a relação de "subtítulos relativos a obras e serviços com indícios de irregularidades graves". Suprimiu-se a menção de que ele seria elaborado e alterado com base nas informações fornecidas pelo Tribunal de Contas da União, e deixou-se expresso que a fundamentação para as alterações serão deliberações da Comissão Mista de Planos, Orçamentos Públicos e Fiscalização do Congresso Nacional.

Os números

– Total de obras fiscalizadas: 219

– Obras com irregularidades graves com recomendação de paralisação: 41

– Obras com retenção cautelar de pagamentos: 22

– Dotação orçamentária fiscalizada: R$ 35,4 bilhões

PAC

– Total de obras fiscalizadas: 99

– Obras com indícios de irregularidades graves com
recomendação de paralisação: 13

– Obras com retenção cautelar de pagamento: 17

– Dotação orçamentária fiscalizada: R$ 25 bilhões

Algumas obras paralisadas pelo TCU

– Drenagem do Tabuleiro dos Martins – (AL)

– BR – 317/AM – Boca do Acre (AM/AC)

– Modernização da Malha Viária do Distrito Industrial de Manaus (AM)

– Construção de Trechos Rodoviários no Corredor Leste BR 242/ES -Entrocamento BR 101 (Divisa ES/MG)

– Restauração de Rodovias Federais (ES)

– Melhoramento no Aeroporto de Vitória (ES)

Construção de Trechos Rodoviários no Corredor Leste Br 265 MG Divisa RJ/MG; Ilicinéia (MG/SP)

– Construção da Refinaria Abreu e Lima em Recife (PE)

– Construção da Barragem Rangel – Redenção da Gurgéia (PI)

– Implantação do Sistema Adutor do Sudeste Piauiense (PI)

– 10-Distribuição de Energia Elétrica -Luz para Todos (PI)

– Sistema de Esgotamento Sanitário (PI)

– Modernização e Adequa da Produção Refinaria Pres. Getúlio Vargas (RJ)

– Implantação Metro Linha 3 do Rio de Janeiro

– Construção de Ponte Sobre o Rio Madeira em Porto Velho (RO)

– Reforma e Ampliação do Aeroporto de Guarulhos (SP)

Fonte: Estadão

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