No fundo, os velhos discursos. E, a cada obstáculo, por mínimo que seja, um pretexto para que o problema do saneamento seja empurrado com a barriga. De repente, aparece o Programa de Aceleração do Crescimento. O PAC seria a solução arrancada do bolso do colete oficial. Mas, pode-se acreditar em promessas ou em planos mirabolantes, em um País que requer investimentos da ordem de R$ 220 bilhões em dez anos para tentar resolver uma questão que deveria ser motivo de vergonha para todos? O ceticismo é justificável. Porque, até aqui, o saneamento tem servido apenas para alimentar a retórica dos cínicos.
O Plano Nacional de Saneamento Básico (Planasa), conquanto coisa do passado, é o parâmetro mais próximo do que já se pôde fazer, concretamente, do ponto de vista de investimentos para obras satisfatórias de esgotamento sanitário e de amplas redes de abastecimento de água destinadas a servir às populações dos centros urbanos mais populosos ou das regiões mais remotas. Chegou-se a empregar técnicas avançadas de engenharia para a construção barragens de captação, de estações de tratamento de grande porte e de emissários terrestres e submarinos destinados a retirar de cidades médias ou grandes a carga de dejetos que comprometiam a saúde de suas populações. O mecanismo das tarifas cruzadas favorecia os municípios de renda acanhada – ou sem renda nenhuma – estimulando-os a realizar obras de emergência para afastar o esgoto das portas das casas e fazer chegar água tratada a parcelas de seus habitantes.
O naufrágio do Planasa obliterou expectativas, que renasceram, mais de 20 anos depois, com o projeto de lei do deputado Júlio Lopes, que deu origem à Lei 11.445, atualmente em trâmite no Supremo Tribunal Federal. No começo deste mês, o ministro Márcio Fortes, das Cidades, e o secretário Leodgard Ticoski, do Saneamento, pressionados pela Frente Nacional pelo Saneamento Ambiental (FNSA), resolveram conversar com o ministro Gilmar Mendes, do Supremo, para obter uma posição sobre o andamento do processo. E receberam a informação de que a lei, com a solução para a polêmica da titularidade dos serviços, poderá ser votada nos próximos 60 dias.
A lei deverá prever a formação de conselho representativo, a criação de uma agência reguladora independente e com autonomia administrativa e financeira e mecanismos pelos quais cada município possa elaborar um plano integrado de saneamento que inclua abastecimento de água, esgotamento sanitário, drenagem de águas pluviais e manejo dos resíduos sólidos. Novas regras, que ela deverá estabelecer, ampliarão a possibilidade do ingresso da iniciativa privada na área do saneamento. Com isso, a participação das concessionárias privadas, que é atualmente da ordem de 7%, poderá chegar a 30% até fins da próxima década. E, de 2007 até 2012, as concessionárias poderão injetar nos serviços recursos da ordem de R$ 5 bilhões. Contudo, até que essas benesses apareçam e que o governo faça a sua parte, seja através do PAC ou de outros programas, há um dado que não pode ser descartado: a população não pode esperar mais. Aliás, já não vem podendo esperar mais há muito tempo.
Situação atual
E por que não pode esperar mais? Uma simples consulta nos dados disponíveis no IBGE, no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicadas (Ipea) ou nas empresas estaduais de saneamento mostram o seguinte: há déficit no abastecimento de água e na oferta dos serviços de esgotamento sanitário nas faixas de renda mais baixas e nas regiões menos desenvolvidas. Hoje, no Brasil, quando há no Planeta sofisticadas tecnologias em todas as áreas, 90% dos esgotos coletados ainda são lançados in natura ou sem tratamento adequado nos rios, nascentes ou diretamente no solo; cerca de 65% da população urbana ainda tem o esgoto à porta de casa e somente 17% do lixo produzido no País recebem tratamento conveniente.
Não é necessário ir muito longe para se constatar essa realidade. Basta andar pela periferia paulistana. Ou olhar para os canais de esgoto a céu aberto que cruzam a cidade. O Tietê, apesar do projeto de despoluição, é um exemplo de como se provoca a morte de um rio. Guarulhos, segundo levantamento recente, despeja ali esgoto com índice zero de tratamento. Em Diadema, o percentual do esgoto tratado jogado nas águas é de apenas 10% e, São Benrardo do Campo, consegue tratar apenas 20% do esgoto que atira no Tietê. Enquanto isso, toneladas de lixo deixado nas ruas são carreadas pelas chuvas para o leito do antigo Caminho dos Bandeirantes.
Os exemplos, se observados outros municípios e outras regiões do País, de Sul a Norte, Leste a Oeste, vão se multiplicar. E mostram por que a situação do saneamento, em todo o território, é uma calamidade.
Segundo recente estudo do Ipea – Saúde e Saneamento no Brasil – divulgado no Senado Federal, o aumento de 1% da rede de esgoto no País significaria a possibilidade de se evitar 216 mortes/ano. E o acréscimo de apenas 1% no número de casas com água potável evitaria 108 óbitos/ano. A continuidade, portanto, desse quadro, sem que providências adequadas sejam tomadas, configura um crime contra a população.
O jornalista Washington Novaes, que há anos se dedica às questões do saneamento e do meio ambiente, fala do extraordinário déficit nos serviços de tratamento de esgotos. “Admitindo”, diz ele no jornal O Estado de S. Paulo, “que 90 milhões de pessoas tenham seus esgotos coletados no País à razão de 200 litros/diários por pessoa, serão 18 bilhões de litros/dia. Como se afirma que 35% desses esgotos, são tratados, restariam quase 12 bilhões de litros diários despejados nos rios ou no mar sem qualquer tratamento. Se a eles se acrescentar a produção das fossas que vai para as redes de drenagem, tem-se um déficit colossal, que ajudará a entender por que 70% das internações na rede pública de saúde se devem a doenças transmitidas pela água; e que 80% das consultas pediátricas têm a mesma causa. Sem falar que é primária a maior parte do tratamento que é feito com esgotos coletados pelas redes; ou seja, metade da carga orgânica é devolvida aos cursos d´água sem tratamento.”
Os responsáveis
Onde estão os responsáveis? Obras na área do saneamento custam caro. E, se considerar-se que ele atinge as populações de renda mais baixa, ou sem renda nenhuma, a conclusão é de que cabe ao governo a responsabilidade pelos ajustes de mecanismos financeiros que venham a possibilitar a universalização e a oferta dos serviços àquelas populações.
No fundo, no entanto, todos têm uma parcela de culpa. Quando são elaborados os gra
ndes projetos de conjuntos habitacionais populares ou de condomínios de luxo, a questão do abastecimento de água e do tratamento de esgoto deveria ser prioritária na região de implantação dos empreendimentos. A rigor, cuida-se da obra e deixa-se para depois os cuidados com a infra-estrutura urbana do entorno. E não são raros os casos em que condomínios de luxo lançam os seus dejetos nas áreas onde vive a população mais pobre ou no leito de cursos d´água que a partir daí ficam contaminados. Há até exemplos de condomínios que despejam dejetos em redes clandestinas que seguem para tributários de rios ou para o mar.
Carlos Zveibil Neto, presidente da holding Ponte Di Ferro, que inclui empresa responsável por concessões de tratamento de água e de esgoto em Jaú, e de tratamento de água em Araçatuba, no interior paulista, diz que empresários poderiam ajudar a cortar o mal pela raiz. Se cada empresário que instale suas fábricas em determinados municípios, exigissem das prefeituras providências prévias para a instalação daqueles serviços, com a contrapartida da instalação dos equipamentos antipoluentes, parte desses problemas seria resolvida no nascedouro.
O empresário assegura que a existência ou não do marco regulatório não deveria ser pretexto para a falta de obras de saneamento. O necessário é que, caso a iniciativa privada seja convocada para realizar os serviços, que haja segurança no retorno do investimento aplicado. Se esse retorno ocorrer em dois, três, quatro ou cinco anos, a situação ainda pode ser contornada. Mas, se o aceno do retorno for para 20 ou 30 anos, então que o município recorra ao mecanismo da Parceria Público-Privada (PPP), conforme ocorreu recentemente com a prefeitura do município fluminense do Rio das Ostras.
A prefeitura, com recursos próprios, ou provenientes de impostos drenados para o caixa sem fundo da União, precisa separar uma verba específica para subsidiar a tarifa que a população vai pagar. E, não se poderia relacionar tal subsídio dentre aqueles aplicados a fundo perdido. Perdido por quê? Saneamento é saúde e menos brasileiros na fila do SUS.
Como deveria estar ocorrendo na área de logística dos transportes, o saneamento precisaria contar com recursos específicos para a manutenção de um programa contínuo de obras. Só assim, as empresas de projeto, consultoria e construção, que atuam nesse campo, teriam condições de se reciclar periodicamente, do ponto de vista de recursos humanos e tecnológicos, para não ficarem defasados no tempo, em uma área que é essencial para o crescimento e a saúde da população.
Além disso, recursos para saneamento – e, de modo geral, para as prioridades da infra-estrutura – não poderiam jamais ser moeda de barganhas políticas. O episódio da votação da “provisória” CPMF é um deprimente exemplo para esta ou qualquer outra geração. Enquanto persistir essa política de compadrio, de ajustes de interesses, alguns dos quais inconfessáveis, graves problemas, como os do saneamento, continuarão a alimentar o cinismo dos que preferem deixar tudo como está para ver como é que fica.
É por conta disso que, quando o presidente da República anuncia R$ 4 bilhões para saneamento em áreas indígenas e quilombolas, onde se constata grande incidência de endemias, de imediato vem o ceticismo. É que, entre o anúncio público dos recursos e a chegada efetiva do dinheiro, a distância entre teoria e prática pode ser maior do que uma volta ao mundo.
Fonte: Estadão