É bom fechar o ano abrindo um livro. Melhor ainda, se o livro for este "Memórias de um historiador de domingo", do historiador Boris Fausto, que acaba de ser publicado pela Companhia das Letras.
Sem encaminhar o leitor para um labirinto de tramas históricas, mas conduzindo-o para os fatos da história como se ele estivesse sendo puxado pela força da memória, sobretudo memória das solicitações e urgências familiares, o autor expõe o seu mundo. E mostra que nenhum mundo, sobretudo de quem está articulado com a política, a economia, a sociologia e personagens de seu tempo e de outros tempos, jamais será uma ilha.
O livro pode ser lido como uma história dele e da esposa. Mas, aos poucos, o mundo familiar vai se agregando a outros mundos. Transcende o patamar das reminiscências e desenha diferentes períodos, em especial o que vem depois do golpe de 1964. As pequenas inferências domésticas aparentemente se diluem, mas revelam como o autor foi, aos poucos, estruturando o seu pensamento no período em que teve uma inflexão para o trotskismo. Depois, vieram as perseguições políticas e houve a opção pelo trabalho de historiador, ao lado das atividades de advogado.
De cada etapa, o desenho da época e seus personagens. Como na fase em que estudou na secular Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Alguns personagens surgem de relance e desaparecem em seguida. Caso de Almino Affonso. Outros têm permanência maior.
Dentre os vários episódios curiosos que ele narra, seleciono dois, por motivos óbvios. Ele se refere a uma casa da família, em Ubatuba. Projetada por um arquiteto renomado, foi construída "subterrânea", à beira da praia. O terreno foi escavado. De modo que a visão do mar "só é possível na faixa de terreno da frente ou no jardim suspenso". Resumindo: uma casa junto ao mar, escondida do mar. Pode?
Ainda sobre Ubatuba. A cidade cresceu. A especulação imobiliária tomou conta de tudo. O falho planejamento urbano não permitiu que ela se desenvolvesse organizadamente. Acabou virando mais uma cidade junto ao mar. E, para ele, que parafraseou, no caso, Drummond de Andrade, "Ubatuba não há mais".
No final, chegando à senectude, lembra o livro "De Senectude", de Norberto Bobbio, que trata da maior e mais fascinante travessia da vida. Ele diz que gostaria de fazer essa travessia, se possível ressurgindo para dançar com uma bela jovem, um tango argentino.
Fonte: Estadão