"Amanhã continuaremos", disse-me ele uma vez, ao precisar interromper uma entrevista. A promessa continuou em três encontros insólitos. Contudo, essas interrupções nunca significaram que ele deixasse de fechar a entrevista sobre o tema que correspondia à razão da vida dele: o saneamento. Ele queria dar continuidade às suas idéias porque o assunto se lhe afi gurava inesgotável e sempre procurava explora-lo sob um ponto de vista novo.
José Martiniano de Azevedo Netto era engenheiro civil e sanitarista. Encontrei-o algumas vezes na Planidro, empresa que ele fundou e presidiu; em outras ocasiões, na Empresa Metropolitana de Planejamento da Grande São Paulo (Emplasa), da qual foi presidente, ou na Faculdade de Higiene e Saúde, da USP.
"A briga pelo saneamento é a briga pela vida", dizia ele, achando que a liberação de recursos, para obras de saneamento, deveria ser ato natural dos governos, motivado por uma questão de consciência. Por conta desse raciocínio, às vezes eu me perguntava: "Acaso ele acha que a divulgação da natureza do problema constitui, por si só, argumento suficiente para a tomada de decisões urgentes e inadiáveis dos governantes?".
O fato é que ele sempre acenava com a possibilidade de prosseguir a entrevista "amanhã". Como se o amanhã pudesse ser, infalivelmente, o dia seguinte. Quando nos encontrávamos de novo, passasse uma semana, um mês ou um ano, era como se a conversa precisasse continuar a partir do fio interrompido no encontro anterior.
Foi por causa dessa constante recorrência ao dia de amanhã para o prosseguimento de uma entrevista que, ao fi nal, eu já julgava encerrada, que acabei guardando a memória do Martiniano de Azevedo Neto, em três encontros insólitos. Uma vez foi no elevador do Edifício Itália, em São Paulo. Na medida em que descíamos e eu anotava algumas de suas informações, o volume de usuários, que aumentava de andar a andar, me empurrou para um lado e, ele para outro. Gesticulávamos e tentávamos manter o diálogo, até que ele sinalizou: "Amanhã. Fica para amanhã". Passaram-se dois anos.
Em outra ocasião, na esquina da Paulista com a Augusta, pressionado pela multidão e pelo tempo – ele consultava obsessivamente o relógio – afastou-se e sugeriu: "Mas amanhã teremos oportunidade melhor. Ligue-me no escritório". Não fosse o telefone, o amanhã jamais chegaria.
Em outra ocasião cruzava o rio São Francisco, nem lembro mais em que trecho. Seguia num veleiro, acompanhado de um engenheiro, quando outro veleiro se aproximou vindo da direção oposta. Dentro do barco, ninguém mais ninguém menos do que o engenheiro sanitarista. Cumprimentamo-nos e ele perguntou: "Vamos nos ver amanhã?".
Infelizmente Martiniano de Azevedo Neto veio a falecer em 1991. Deixou uma obra teórica expressiva sobre tratamento de águas de abastecimento e sistemas de esgotos sanitários e conferiu à questão do saneamento a mesma importância da luta diária pela sobrevivência. Foi um técnico e uma consciência imprescindíveis ao nosso tempo. Pena, conforme diz o brasileiríssimo Rolando Boldrin, é que ele tenha ido embora muito antes do combinado.
Frases da coluna
"Empresário tem de ser corajoso e ousado. Se não for corajoso e ousado não é empresário". De Luiz Fernando Pires, presidente da Mascarenhas Barbosa Roscoe, que está comemorando 75 anos de atividades em vários segmentos da Engenharia.
Fonte: Estadão