Usuário da infra-estrutura está entregue à própria sorte

Não é de hoje que o cidadão brasileiro, usuário dos serviços de infra-estrutura – transportes, energia, portos, aeroportos etc. – sente-se como se valesse menos do que um níquel furado. Nas ruas, nas casas, nas estradas, no ar, no mar, ele é o grande náufrago solitário. Pode, no entanto, recorrer aos mecanismos de proteção disponíveis, desde os órgãos de defesa do consumidor, até os ministérios públicos, na tentativa de fazer prevalecer os seus direitos. Na prática, as histórias de êxito nessas empreitadas para a cobrança dos ressarcimentos devidos, são proporcionais aos atos de heroísmo de quem insiste em iniciá-las. Para obter indenizações e reparações, que jamais serão equivalentes aos prejuízos contabilizados, o caminho passa por experiências tão surrealistas, quanto às vividas pelos personagens kafikianos. O desastre com o Airbus-A320 da TAM (vôo 3054), no dia 17 do mês passado, em São Paulo, o mais trágico da aviação brasileira até aqui, poderá ser o maior exemplo do abismo existente entre os direitos de segurança do cidadão em matéria de infra-estrutura, e a capacidade do Estado para atendê-los. As tragédias, embora comumente atribuídas à fatalidade, o que é uma maneira esquiva de fugir à responsabilidade, não ocorrem por acaso. Têm começo, meio e fim. A exemplo do apagão de energia de 2001, o apagão aéreo, em cujo contexto ocorreu o desastre de Congonhas, vinha se desenhando há longo tempo. A crise dos controladores de vôo, destacada depois do desastre com o avião da Gol no vôo 1907, que se chocou com o jato Legacy da Embraer e caiu na selva fechada no norte do Mato Grosso matando 154 pessoas, e os problemas cotidianamente observados nos aeroportos urbanos, em especial o de Congonhas, que operava com uma sobrecarga de utilização maior do que deveria suportar, potencializavam riscos que estavam à vista de todos, menos dos que precisavam adotar medidas para evitá-los. O presidente Lula da Silva chegou a dizer que não sabia que o caos aéreo brasileiro atingira a dimensão que a tragédia – e as mortes – demonstraram. Mas a população, em especial os usuários, sabia. E grande parte deles, por conta da situação do congestionamento do tráfego aéreo nos principais aeroportos, da desconfiança em relação às condições de manutenção das aeronaves ou da situação de risco de Congonhas, permanentemente uma ilha cercada de prédios por todos os lados, temia que a qualquer momento o pior acontecesse. E aconteceu.

A ENGENHARIA E OS AEROPORTOS

A aviação no Brasil começou com um desastre. Edmond Plauchut, mecânico de Santos Dumont em Paris, decolou da praça Mauá, no Rio de Janeiro, sobrevoou a avenida Central, hoje Rio Branco, e caiu no mar, de uma altura de 80 m, quando alcançava a Ilha do Governador. Dali até hoje a aviação evoluiu e evoluíram, com ela, as técnicas de projetar e construir aeroportos, incluindo, entre eles, dois que sempre disputaram as preferências do público e da Empresa Brasileira de Infra-estrutura Aeroportuária (Infraero): Congonhas e Santos Dumont, que operam, desde os anos 40 do século passado, no coração das duas maiores capitais brasileiras, São Paulo e Rio de Janeiro. Hoje, quando as críticas à distribuição das linhas aéreas e à segurança nos terminais se avolumam, é bom lembrar que a engenharia brasileira, em suas diversas modalidades – sondagens de solo, ensaios tecnológicos, cálculos matemáticos, acústica, técnicas de compactação e pavimentação e recomendação quanto às dimensões corretas e desenho das pistas – é responsável pela construção de aeroportos considerados exemplares. Ela construiu o Aeroporto Internacional “Eduardo Gomes”, de Manaus, nas vizinhanças do igarapé Tarumã-Açu, onde a falta de pedra constituiu problema singular, e desenvolveu estudos para o aproveitamento de arenito em uma jazida a 8 km do canteiro. Simultaneamente à dificuldade de logística e da falta de material na região, realizou grande volume de terraplenagem para concluir o platô das pistas na conformidade do projeto executivo. Inaugurado em 1976, o aeroporto foi considerado ideal, uma vez que as pistas, paralelas, eliminam a possibilidade de choques de aeronaves nas operações de pouso e decolagem. O Aeroporto Internacional “Juscelino Kubitschek”, em Brasília, também se insere entre aqueles considerados bons, sob o mesmo ponto de vista. A disposição das pistas não permite que uma aeronave acabe invadindo o espaço utilizada por outro avião. E se, em uma primeira etapa, uma das pistas possuía 2.400 m, numa segunda etapa o aeroporto passou a contar com pista de 3.300 m. Outra obra que espelhou a capacidade de assimilação e aplicação de técnicas construtivas específicas foi o Aeroporto Internacional “Tom Jobim”, no Rio de Janeiro. O volume de terraplenagem chegou a 31 milhões de m³. Os trabalhos exigiram extraordinária quantidade de água, numa época em que sua escassez era crônica nessa capital. O remédio foi usar água do mar na compactação dos aterros e dos acessos. O resultado eliminou o mito de que água salgada, tratada, é incompatível com utilização do gênero. Nessa obra empregou-se também o método de protensão Dywidag na pavimentação, o que implicou trazer a técnica alemã para o Brasil e importar ou produzir o aço necessário. A Belgo Mineira acabou aceitando a tarefa e produziu o material. O Aeroporto Internacional de Guarulhos, cuja construção da terceira pista vem sendo anunciada, é outro que se inclui entre as obras competentemente planejadas. Desde que começou a operar, não parou de constituir um permanente canteiro de obras. O terceiro terminal de passageiros, previsto há muito tempo, inclui pátio de aeronaves, viaduto, sistema viário interno, edifício-garagem e deve ter capacidade para 12 milhões de passageiros/ano. Seu grave problema é o acesso, o que poderá ser resolvido caso seja colocado em prática o projeto do trem Expresso Aeroporto. A evolução das técnicas de construir aeroportos, no Brasil, levou empresas nacionais a serem contratadas para obras, nesse campo, no exterior. O aeroporto do Funchal, na Ilha da Madeira, teve a participação da Construtora Andrade Gutierrez e da Zagope, sua subsidiária local. Para construí-lo segundo os parâmetros que os contratantes consideravam ideais, a empresa brasileira e a Zagope fizeram um dique de proteção no entorno da área selecionada e executaram um aterro de 1,5 milhão de m³, com material proveniente do desmonte de um morro próximo. As fundações da estrutura foram realizadas em rocha. Para cada pilar foram cravadas oito estacas, algumas com até 60 m de profundidade. O resultado é um aeroporto moderno, basicamente direcionado
para o turismo europeu. A empresa brasileira credenciou-se, recentemente, para construir o aeroporto de Antígua e Barbuda, no Caribe.

A ESTÉTICA DOS AEROSHOPPINGS

A engenharia e a arquitetura absorveram experiências internas e externas nos programas da Infraero para a modernização dos terminais. Ocorre que a maior parte deles era deficitária. E a política da empresa tinha em vista os aeroportos “rentáveis” e as obras que pudessem transformá-los em mais rentáveis ainda. Como a estatal não podia contar apenas com o dinheiro das taxas de embarque para tocar as obras, resolveu empenhar-se para buscar o aumento dos seus recursos nas receitas comerciais que os espaços disponíveis nos empreendimentos pudessem oferecer. Vieram, então, os projetos dos aeroshoppings e outros expedientes, nos quais a estética e o conforto possível, como contrapartida da rentabilidade obtida junto aos usuários, tivessem peso compensatório. Com a busca da rentabilidade a qualquer custo, deixou-se de encarar os riscos dos aeroportos urbanos, encaixados em sítios densamente urbanizados, mandando-se para as calendas a prioridade da aquisição ou modernização dos equipamentos para melhorar o controle das operações de pouso e decolagem. Sob esse aspecto, a gritaria dos controladores de vôo é apontada como justificável. Além disso, enquanto se dava ênfase aos adereços e à estética, não se atentou para outro dado essencial: a construção de áreas de escape, onde esse acréscimo de pista fosse crucial. Alguns especialistas em obras aeroportuárias acham que o relaxamento com a segurança refletiu-se no ânimo das empresas de aviação, para as quais o lucro está acima de todas as coisas. O usuário, favorecido pela massificação do uso da aviação comercial, seria o último a ser ouvido. Houve, então, investimentos nas acomodações de embarque e desembarque, nos espaços para lanches e compras, nos edifícios-garagens e em outros itens dessa ordem. A prudência foi deixada de lado, assim como foi deixada para segundo plano, no caso da pista recém-reformada de Congonhas, a execução das ranhuras (grooving) destinadas a aumentar a segurança da frenagem. Da mesma forma, foi esquecida a necessidade da melhoria e do aparelhamento dos aeroportos situados fora dos eixos urbanos, que poderiam ser a alternativa segura para desafogar aqueles que, pela localização, não poderiam atender aos vôos das aeronaves de grande porte. Ao contrário das recomendações do bom-senso, inflou-se a operação de Congonhas e do Santos Dumont, enquanto aeroportos tais como o “Tom Jobim” e o “Tancredo Neves”, em Cofins, eram deixados literalmente às moscas. De repente, no entanto, o impacto: o Airbus da TAM projeta-se na tarde do dia 17 de julho contra o prédio da empresa matando 199 pessoas. Com o fantasma dos riscos desse aeroporto exorcizados, o governo do presidente Lula da Silva descobre, para surpresa do País, que o Ministério da Defesa, criado no dia 10 de junho de 1999 no governo Fernando Henrique Cardoso, nunca existira. Ou só existira no papel, cabendo ao gaúcho Nelson Jobim, substituto de Valdir Pires, colocá-lo em funcionamento.

O USUÁRIO COLOCADO EM QUESTÃO

Com a tragédia de Congonhas, o usuário voltou à cena. As autoridades lembraram que ele existe e que fora vítima do desastre da Gol, em setembro do ano passado; da tragédia anterior com o Folker 100 da TAM, em 1996, também nas proximidades de Congonhas, quando morreram 99 pessoas; do desastre com a “cratera” escancarada nas obras da estação Pinheiros do metrô paulistano, quando houve sete óbitos, e do medo recente quando o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) apontou falha do consórcio Via Amarela em trecho da rua do Pinheiros, que não foi fechado preventivamente durante os trabalhos de escavação do shield no subsolo. Independentemente dos resultados das investigações para identificação das falhas com o Airbus, o fato concreto é que o usuário, em todos esses desastres, foi o grande desamparado por parte do poder público. Da mesma forma como continua desamparado quando é vítima dos desastres nas estradas reduzidas a pó – ou lama – pelo País afora, em razão da falta de um planejamento articulado ou de políticas públicas para a conservação, manutenção e ampliação das rodovias existentes, ou aberturas de novos acessos rodoviários para eliminar os gargalos nessa área. A exemplo da BR-164 e BR-163 e de outras mais da malha federal, chega a notícia de que a BR-319, construída com extremos sacrifícios humanos e técnicos na selva amazônica na década de 70, para ligar Manaus a Porto Velho, está submergida nas crateras e na lama. Um repórter, que se aventurou, de ônibus, por essa estrada, registrou que gastou 5 horas e 50 minutos em um trecho de 206 km, 100 dos quais ainda tinha pavimento asfáltico. E outros dados revelam que o governo insiste em uma política que economiza em investimentos para a infra-estrutura enquanto, na outra ponta, favorece o pagamento de juros ou acumula recursos para o superávit primário. Dados do Tesouro, reproduzidos pela imprensa, mostram que, em junho, os projetos prioritários, que não poderiam sofrer bloqueio de verbas, receberam R$ 195,4 milhões, 33,8% a menos que os R$ 295,2 milhões liberados no mês anterior. Uma demonstração de que o dinheiro continua curto para a infra-estrutura e elástico para os bancos, enquanto o usuário é abandonado à própria sorte.

A RESPONSABILIDADE DO ESTADO

Nesse cenário, o usuário e o Estado se colocam frente à frente. E, para órgãos que trabalham de olho na proteção do consumidor – ou usuário – o Estado tem a obrigação de oferecer aos cidadãos infra-estrutura adequada, com eficiência e segurança. Está na Constituição. Ela determina as obrigações do Estado, considerada a modalidade de tarifas, na prestação de serviços de sua responsabilidade, extensivos ao transporte aéreo, telecomunicações, energia, transporte terrestre e hidroviário, portos, equipamentos urbanos, tudo. “E, não bastasse a letra da Constituição Federal” – diz o advogado Paulo Pacini, coordenador de ações judiciais do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec) – “está aí o Código de Defesa do Consumidor, surgido em 1990 como uma conquista da sociedade, que passou a vigorar a partir do ano seguinte justamente para assegurar aos consumidores a prestação adequada dos serviços públicos por concessionárias ou diretamente pelas instâncias do Estado.” Explica ele que os serviços públicos alcançados pelo Código são aqueles prestados mediante remuneração, tanto por meio de concessionárias, quanto por meio dos próprios órgãos do Estado. Ficam fora apenas os serviços genericamente prestados pelo poder público mediant

e o pagamento de impostos, como iluminação pública, por exemplo. De qualquer modo, sempre que houver lesão aos consumidores no mercado de consumo, o Código deverá ser aplicado, pouco importando se entre o consumidor e o causador do dano exista relação direta de consumo. Pacini enfatiza que “o governo é responsável por qualquer ação que provoque impacto e cause lesão a terceiros, inclusive por omissão”. O cidadão que se sinta prejudicado por algum ato específico da União, ou pela omissão do governo, tem o direito de ação, podendo ajuizar pleitos indenizatórios. “No caso de obra pública, como uma rodovia que ocasiona prejuízos aos usuários” – salienta o representante do Idec – “está aí o Ministério Público que pode mover ação civil pública, a fim de que a União seja condenada a mandar reparar e melhorar as condições da estrada. E, se a estrada é objeto de exploração econômica por concessionária, esta é obrigada a proceder aos reparos, sendo-lhe aplicada todas as regras e princípios do Código de Defesa do Consumidor”. O advogado reitera que qualquer cidadão que venha a sofrer danos pela má conservação de uma estrada ou de outro bem poderá promover ação contra os responsáveis pela sua manutenção, ficando claro, o seguinte: quando os recursos para aquela manutenção resultam da captação de impostos, aí são aplicadas outras leis e não o Código. Este é aplicado, quando a estrada é mantida mediante a cobrança de pedágio (remuneração) ou concessão. Pacini cita o desastre nas obras da estação Pinheiros do metrô como emblemático. “Houve ali uma atuação estatal específica falando-se até em imperícia, erro de cálculo, falta de fiscalização da Companhia do Metrô sobre o consórcio responsável pelos serviços. Há, portanto, um conjunto de fatores, incluindo omissões, que acabou concorrendo para o dano, com a ocorrência de sete óbitos. Além de caber, nessa tragédia, a aplicação específica da legislação trabalhista, ressalta-se o dano causado ao usuário do serviço e das pessoas afetadas no entorno, que podem ser equiparadas a consumidores, para efeito de indenização.” Quando há falta ou má prestação de serviços da infra-estrutura, como vinha sendo denunciado no “apagão aéreo”, o entendimento do Idec é de que as companhias são responsáveis imediatas pelo dano. O consumidor tem legitimidade para promover ação judicial contra o Estado por lesão identificada no exercício de uma relação de consumo, com base no Código de defesa do Consumidor, entendendo o consumidor como aquele abrangido pelo entorno da área onde aconteceu a tragédia. “Quando sustentamos a responsabilidade da companhia aérea” – salienta o advogado do Idec – “estamos considerando os princípios do Código que estabelece a chamada responsabilidade solidária. Se pensarmos que antes da entrega do serviço do transporte aéreo há uma série de atos praticados por outros agentes – a Infraero, a Anac, o Comando da Aeronáutica – todos ligados à União – conclui-se que no fato objeto dessa análise houve um encadeamento de fatores intervenientes na relação de consumo. E, nessa cadeia de fornecimento ampla, qualquer um dos agentes pode ser acionado individualmente para responder pela responsabilidade na ocorrência.” O Estado, portanto, é responsável pela infra-estrutura disponível e responsável, também, pela segurança do usuário. O problema é que a impunidade continua a ser uma das principais armas do governo, contra os cidadãos.

Fonte: Estadão

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