Por uma metrópole aberta.

O futuro das cidades, pequenas, médias, grandes ou megas, movimenta a caravana Urban Age, uma organização com suporte acadêmico da London School of Economics and Political Science e dote financeiro do Deutsche Bank. Nada mal. Até porque São Paulo abrigou, na última semana, a oitava conferência internacional da entidade. Entre os especialistas convidados para as mesas de discussão, lá estava Raquel Rolnik, docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, ex-secretária de Programas Urbanos do Ministério das Cidades e hoje relatora do Conselho de Direitos Humanos da ONU para o setor de moradia.

Raquel não se impressiona com a multidisciplinaridade da Urban Age, embora a endosse sem hesitar.

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A razão disso se encontra nesta entrevista: a professora ensina que o Brasil, há pelo menos três décadas, percebeu que a questão urbana é missão para profissionais de diferentes áreas.
“Pensar a cidade com olhar múltiplo é tradição brasileira”, diz, referindo-se aos grupos que se ocupavam do tema ainda no regime militar, mirando a redemocratização. “Pensa que na Europa é assim? Não, não.” Raquel também fala do urbanismo à la mode, alerta sobre o perigo de cidades importarem de outros países soluções descontextualizadas e critica o sistema de financiamento do desenvolvimento urbano brasileiro. Quando a conversa chega no tópico “segurança”, conclama que a metrópole seja mais aberta. Tem convicção de que “trancar ricos em condomínios e pobres em prisões” não é, definitivamente, uma boa política de combate à violência. Nem uma boa prática urbana.

A discussão urbanística no Brasil está atrasada?

Ao contrário. No Brasil há muito se discute cidade com olhar múltiplo. Lembre-se da trajetória dos movimentos ligados à questão urbana, nos anos 70. Eles se articulavam com o movimento geral pela redemocratização.
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Ali se constatou o seguinte: a urbanização brasileira acontecia sem a incorporação da maior parte dos moradores das cidades. Tal percepção surgiu na academia, nos setores populares, no debate político em torno da reorganização dos partidos. Alguns livros publicados na época – posso citar Crescimento e Pobreza, organizado por Fernando Henrique Cardoso e editado pela Arquidiocese de São Paulo – já traziam reflexões importantes sobre urbanismo, democracia e desigualdade. Fora isso, inúmeros intelectuais, estudiosos da vida nas cidades também se animaram a participar da política institucional como prefeitos, secretários, parlamentares. Esse engajamento é bem nosso. Na Europa, garanto, o mesmo não aconteceu.

Há um artigo do diretor do Design Museum de Londres e crítico de arquitetura, Deyan Sudjic, no programa do Urban Age, em que ele diz que São Paulo projeta sua influência sobre a América do Sul da mesma forma que a Cidade do México o faz em relação à América Latina. Não é uma visão meio equivocada?

Sem dúvida. E discordo dela. São Paulo não é uma metrópole sul-americana, porque tem um raio de influência e uma globalidade que estão muito além das fronteiras da América do Sul. Como saber se a metrópole é internacional, nacional ou regional? Pelo grau de interação econômica que ela tem com outros lugares. São Paulo, evidentemente menos que Londres ou Nova York, é uma cidade global. Suas relações cotidianas ultrapassam o continente, alcançando países africanos, asiáticos. E o que dizer das relações de São Paulo com os EUA, relações absolutamente independentes, que jamais passaram pelo México? Confesso que fiquei chocada com esse texto.

Comparações entre cidades é uma prática comum e não raro lançam modas urbanísticas.

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Como confrontar experiências do Rio ou de São Paulo com experiências em cidades como Bogotá ou Medellín?

As experiências colombianas foram muito comentadas neste fórum. Tanto nas discussões sobre mobilidade urbana quanto na área de intervenção em assentamento precário, ou seja, favelas. Mas sempre desconfio desse papo de “boas práticas urbanas”, segundo o qual a cidade não funciona por falta de idéias novas, então vamos copiar alguma coisa. Retiradas do contexto em que foram produzidas as práticas urbanas se esvaziam, portanto, não existe transposição automática. Vou dar um exemplo: o programa Cidade Limpa, de São Paulo, está super na moda entre os urbanistas, assim como Curitiba também esteve, anos a fio. Faço questão de dizer que o Cidade Limpa foi uma intervenção urbana extremamente bem-sucedida e sempre fui favorável a ela. O problema é ver esse tipo de intervenção no contexto de um governo propenso a políticas de higienização social, como tirar morador de rua do centro da cidade usando violência. Isso acontece em São Paulo. Eu já vi caminhões da prefeitura jogando jato d?água em cima de gente que dorme em calçadas. Então, é preciso pensar bem antes de importar uma idéia.

Afinal, o que a senhora acha das experiências colombianas?

Eu as conheço bem. Estive na Colômbia diversas vezes, estudei o que está sendo feito, discuti com o pessoal de lá e, de fato, as intervenções urbanas, em Bogotá e Medellín, são maravilhosas. Só estranho uma coisa: quando debatem estas experiências no Brasil, contam o milagre, mas escondem o santo.

Como assim?

A experiência “star” de Bogotá é o TransMilenio. Trouxe outro padrão de mobilidade urbana, com transporte coletivo eficiente, ciclovias, valorização dos pedestres, etc. Em Medellín, o projeto star é a organização de favelas.
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Lá conheci o Metrocable, aquele sistema de bondinhos para transportar as pessoas que vivem nos morros, bem como o programa de construção de bibliotecas públicas, em torno das quais se reorganiza o espaço urbano. É fantástico. Mas vamos falar dos santos do milagre? Antes de inaugurar o TransMilenio, houve uma ampla movimentação social e cívica em Bogotá para debater o projeto. Aprovou-se uma nova lei de uso e ocupação do solo e criou-se um imposto sobre valorização imobiliária. Foi este imposto que permitiu à administração local tocar experiências tão radicais. Sabe qual foi o santo em Medellín? Foi a companhia de fornecimento de água, uma empresa pública altamente lucrativa, que financiou tudo. Isso é contado no Brasil? Não. Aqui se conta a história até o ponto em que os interesses corporativos e empresariais não se sintam atingidos.

Mas uma reforma urbana financiada com aumento de impostos tem chance de êxito no Brasil?

Não se trata de aumentar a carga tributária, mas de revê-la. Essa é discussão que devemos fazer. O IPTU é um imposto muito mal cobrado no Brasil, se compararmos com o que se cobra em países de condição urbanística boa. Temos enormes problemas de financiamento urbano. Municípios dispõem de “zero” em recursos para investir porque as fontes de arrecadação de impostos ou estão nas mãos do governo federal ou do estadual. No caso da saúde e da educação, há repasse obrigatório de recursos. Isso não acontece no desenvolvimento urbano.

O governo do Rio tenta tirar os moradores das favelas com indenizações.

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Algo como “desapropriações” para moradias precárias. Com dinheiro no bolso, os moradores vão para outro lugar. É certo?

Defendo que as favelas tenham o direito de permanecer onde estão e sejam urbanizadas de forma decente. Não é uma defesa minha, mas a visão expressa na nossa ordem jurídica, nos princípios da Constituição, no Estatuto da Cidade. Defesa destacada na Urban Age, tanto quanto a idéia de que precisamos parar a expansão horizontal do tecido urbano e promover cidades mais compactas, servidas por transporte público de massa.

Como compactar uma cidade que já é tão verticalizada?

Quando falo em compactar a cidade penso no repovoamento das áreas vazias e subutilizadas. Em São Paulo essas áreas existem não só na região central, mas em toda a orla industrial. O espaço urbano continua revelando uma ocupação desorganizada, em que a população pobre é empurrada para a periferia, sendo que hoje convive com ricos trancafiados em condomínios de luxo.

Anos atrás, a senhora afirmou em entrevista que o entrave da questão urbana no Brasil é a setorização dos interesses. Continua?

Completamente. Tem a ver com a lógica que ainda rege o financiamento do desenvolvimento urbano, onde a concentração dos recursos convive com a fragmentação dos serviços. Para fazer uma quadra esportiva ou construir um sistema de esgoto, preciso de editais, concorrências, orçamentos, consultorias, tudo feito de maneira distinta. É a lógica da empreiteira. Só que a cidade não é uma soma de iniciativas, mas o entrelaçamento delas. É preciso pensar tudo junto.

Como é a lógica de empreiteira?

É uma lógica segundo a qual os interesses políticos e empresariais estruturam-se em torno de setores definidos. Ou melhor, setores corporativos arraigados na estrutura do Estado e na estrutura político-eleitoral no País. O Ministério das Cidades, criado em 2003, não conseguiu reverter isso.

Faltou vontade política?

Não diria isso porque o problema é antigo. Vem dos anos 60, tempos do BNH.
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Se você me perguntar se há diferença entre as políticas urbanas da era FHC e as da era Lula, direi “em termos”. Agora há mais recursos. No tempo do FHC não havia porque foi o momento do ajuste estrutural, não tinha investimento, o crédito para o setor público estava travado. Porém, se compararmos as duas épocas do ponto de vista da concepção administrativa e da concentração de recursos, então continuamos na mesma.

Violência é um tema recorrente quando se discute a metrópole. O pensamento urbanístico tem sido convocado a propor soluções?

Em primeiro lugar, é preciso dizer que caiu muito a violência em São Paulo. Temos 13 assassinatos por 100 mil, quando nos anos 90 tínhamos 58 por 100 mil. Só que uma bala perdida no Rio apavora os paulistanos, que vão se esconder em condomínios fechados – veja como o imaginário da violência é capaz de transformar uma cidade… Definitivamente, trancar ricos em condomínios e pobres em prisões não é bom modelo de superação da violência. Nesse sentido penso que os urbanistas têm de participar do debate, para pensar espaços urbanos abertos, iluminados, onde as pessoas possam circular com segurança, contando com policiamento, fechamento de bares se preciso for, enfim, é um conjunto de medidas.

A saída, então, é abrir as cidades?

Sem dúvida. Este é um pensamento que vem lá do século 19, quando urbanistas ousados estruturaram cidades em torno de parques. Caso do Central Park, em Nova York, ou do Hyde Park, em Londres. Projetaram parques imaginando que funcionariam como câmaras de descompressão mesmo. Mas hoje também não dá para falar “bom, vamos criar um belíssimo parque” e deixar o povo viver pendurado em favela, sem esgoto e com escola de quinta. O ideal mesmo é criar espaços seguros, com qualidade, tanto nas regiões centrais quanto nas periféricas. Porque a cidade é essencialmente heterogênea.

Fonte: Estadão

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