Chuvas, mortes, desvios de recursos e obra inacabadas

Destruição, mais de 40 mortos e milhares de desabrigados, sobretudo em Minas Gerais e no Rio de Janeiro, neste começo de ano. Cenário que se agravou porque recursos para obras de prevenção, contenção e reconstrução, liberados durante as enchentes do ano passado, não chegaram a ser aplicados corretamente, havendo até denúncia de desvios

Nildo Carlos Oliveira

O mapa da destruição ocasionada pelas chuvas deste começo de 2012 mostra o traçado dos rios que alagaram campos e áreas urbanas da região Sudeste. Relatório de recente inspeção realizada por órgão da engenharia em municípios serranos do Rio de Janeiro traz a informação de que, do volume de obras que deveriam estar prontas para reduzir o impacto de novas chuvas, inundações e deslizamentos, poucas foram aquelas efetivamente entregues.
O engenheiro Agostinho Guerreiro, presidente do Crea-RJ, diz que até aqui apenas medidas paliativas e de curto prazo foram adotadas e que obras de maior fôlego precisam ser planejadas a fim de serem executadas até abril próximo, para evitar que a tragédia venha a se repetir no verão de 2013.

Em meio às notícias de graves ocorrências, incluindo denúncias de desvios de recursos liberados para obras prioritárias, alguma coisa positiva está acontecendo: a Carta Geotécnica, resultante das discussões avivadas pelos eventos geológicos-geotécnicas do final dos anos 2009 e 2010, e que deverá integrar o Estatuto da Cidade por intermédio de projeto do senador Rodrigo Rollemberg (Projeto de Lei 2330/11), está a um passo da aprovação.
Diversos organismos da geologia e da engenharia geotécnica estão se mobilizando – e procurando mobilizar a sociedade – para que aquele estatuto seja alterado, de modo a instituir a obrigatoriedades da inserção da Carta Geotécnica nos planos diretores municipais. Esse documento poderá tornar-se peça-chave para impedir, na origem, eventual adensamento urbano em áreas de risco.

Outro dado positivo, que veio no bojo das inundações e deslizamentos, é a constatação de que a engenharia rodoviária precisa atualizar-se em razão das mudanças climáticas observadas aqui e em outras regiões. “É inconcebível”, diz um engenheiro a este jornalista, “que no período das longas estiagens as nossas estradas virem pó e que no tempo das chuvas elas virem lama. Estrada deve continuar a ser estrada em qualquer período do ano.”
O mapa da destruição registrou ocorrências em Belo Horizonte, Ouro Preto, Guaraciaba, Visconde do Rio Branco, Lage de Muriaé, Guidoval, Além Paraíba, Governador Valadares, Reduto, Vespasiano e Ubá (MG); em Sapucaia, Cardoso Moreira, Campos dos Goytacazes, em território fluminense e também em Vitória e em outras localidades do Espírito Santo.

Na maior parte desses municípios houve inundações, deslizamentos, casas e estabelecimentos comerciais destruídos. Em Sapucaia e Além Paraíba, amplas áreas ficaram submersas, o mesmo ocorrendo com os demais municípios, o que levou o governo federal a criar uma força-tarefa de geólogos do Serviço Geológico do Brasil e hidrólogos da Agência Nacional de Águas (ANA) para acompanhar o monitorar a ação das chuvas. Em Belo Horizonte as precipitações, nos primeiros seis dias do ano, foram da ordem de 77% das chuvas previstas para todo o mês de janeiro.  

AS RODOVIAS

A maior parte das estradas do Rio, Minas e Espírito Santo foi afetada pela ação das chuvas e das águas dos rios que transbordaram. A ocorrência de maior repercussão aconteceu em trecho da BR-356, na região de Campos (RJ), que se rompeu. Ali, a estrada funcionava equivocadamente como um dique. A rodovia, naquele município, não foi dimensionada e construída para servir de anteparo às águas do rio Muriaé, em época de enchente. Se fosse para operar como tal, a especificação da obra teria sido outra e o rompimento não teria acontecido. 

Somente no Rio de Janeiro foram afetadas mais de dez estradas importantes. E, em Minas Gerais, fatos semelhantes aconteceram em 70% das rodovias que cruzam o Estado. O Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) registrou deficiências de toda ordem em perto de 8 mil km de rodovias, conforme observou o ministro Paulo Sérgio Passos, dos Transportes.

O descalabro gerado pelas chuvas levou à constatação de que falta ao País uma política de conservação e manutenção de estradas. O que vem sendo feito, segundo engenheiros e geólogos que sobrevoaram as áreas atingidas, são meras “operações tapa-buracos”, com aparência de obras de manutenção. Não há efetivas obras de contenção; as drenagens são falhas e o resultado aparece com as chuvas. As estradas se tornam vulneráveis até com as precipitações consideradas normais. São realizados reparos na superfície de estradas antigas, sacrificadas por tráfego pesado e sem fiscalização e há casos em que as estradas são aparentemente construídas com o emprego de tecnologia superada.  

O RELATÓRIO DO CREA-RJ

Fato auspicioso, que emerge pela força da tragédia, é o relatório (o 3º) elaborado pelo Crea-RJ após inspeção realizada na região serrana do Rio de Janeiro. Auspicioso porque desmascara algumas administrações públicas, revelando que as obras de prevenção, contenção e reconstrução previstas depois das chuvas do ano passado em áreas dos municípios de Bom Jardim, Nova Friburgo, Teresópolis e Petrópolis – e que deveriam estar prevenindo as chuvas deste começo de ano e as próximas – simplesmente não foram feitas ou, se o foram, acabaram sendo realizadas apenas pela metade.

“O Crea-RJ vem avisando desde o ano passado sobre os riscos evidentes na região serrana. O poder público teve tempo para atuar ali, mas muito pouco foi feito. Se  tivesse sido registrado, este ano, na região, metade do volume da chuva de janeiro de 2011, as consequências teriam sido mais graves, porque as áreas afetadas continuam fragilizadas, diz Adacto Ottoni, engenheiro do Crea-RJ. E o presidente desse, Agostinho Guerreiro, enfatiza: “Houve em 2011, na Austrália, enchente similar à ocorrida na região serrana fluminense. Ela inundou, naquele país, uma área de dimensão equivalente à área do Rio de Janeiro. E houve também o tsunami no Japão, que prejudicou a usina nuclear de Fukushima. Contudo, as áreas afetadas naqueles países foram rapidamente recuperadas, diferentemente do que acontece aqui.”

O relatório registra que do total de mais de 170 áreas indicadas como de alto risco de deslizamento de encosta foram iniciadas obras de recuperação de taludes
em apenas oito. A maior parte dessas poucas obras deveria estar concluída até outubro de 2011, o que não aconteceu. E serviços de reconstrução de pontes e de recuperação de taludes estão inconclusos. 

Os sedimentos carreados pelas erosões do solo na região entupiram o sistema de drenagem urbana na parte inferior das encostas, gerando “o aumento da turbidez das águas dos rios e a consequente poluição, impactando negativamente a biodiversidade do ecossistema fluvial”.

Esses fatores, segundo o documento, acabam acelerando o processo de assoreamento dos rios, reduzindo a seção de escoamento hídrico nos períodos das chuvas intensas, podendo agravar ainda mais o processo de extravasamento da calha e provocar inundações de diversas proporções.

O relatório revela que em diversas áreas da região serrana continua a haver o processo de ocupação anárquica do solo, em geral para atividades agrícolas e de pecuária e para a construção de habitações irregulares. Ao mesmo tempo, há registro de ocorrência de desmatamento em áreas de preservação permanente (topo de morros, taludes de encostas com inclinação acima de 45º e faixas marginais de proteção de rios), revelando “total descumprimento do que prevê o Código Florestal”.

MITIGAÇÃO DE CATÁSTROFES

Para o engenheiro geotécnico Francis Bogossian, presidente do Clube de Engenharia, “os repetidos desastres ambientais causados pelas chuvas no Rio” – e poderemos acrescentar: em outras regiões do País – “são o reflexo da inexistência, durante mais de 30 anos, de uma política habitacional, o que propiciou uma ocupação desordenada nas margens de rios e encostas”. 
O Clube de Engenharia considera que é urgente a criação de um Departamento Nacional de Prevenção e Mitigação de Catástrofes, composto por engenheiros geotécnicos e florestais, geólogos, hidrólogos etc., para, através de seções estaduais, atuar junto às prefeituras executando o que Francis chama de tratamento passivo, ou seja, ações e/ou obras de prevenção.

Em sua opinião, as prefeituras municipais, a despeito de serem as responsáveis legais e, portanto, as que concedem licenças de obras, não têm, em geral, estrutura e condições financeiras para manter uma equipe técnica altamente qualificada, como é necessário para a elaboração de mapas geológicos, identificação de áreas de risco e determinar as prioridades para as obras de prevenção.

“O custo das obras de prevenção representam cerca de 10% do que será gasto após um desabamento, isto sem falar nas perdas de vidas e de patrimônio. Sem um trabalho preventivo, as obras emergenciais são uma certeza. Mas não se pode generalizar, dizendo que obras emergenciais são um sinônimo de corrupção. Obras emergências são muito mais difíceis de serem executadas do que as obras preventivas, e em muitos casos causam prejuízo às empresas.”

Francis explica que, para atender a uma emergência, “a construtora mobiliza pessoal, máquinas e equipamentos imediatamente, mas sem nenhuma previsão de receber pelo trabalho que vai realizar. Depois do primeiro momento, precisa elaborar projetos, fazer ensaios de laboratório, obter as licenças ambientais antes de iniciar efetivamente a obra. Isto leva tempo e dinheiro, que na maioria das vezes custa a chegar”.

A forma mais rápida e efetiva, na opinião de Francis, para prevenir as tragédias que se repetem todos os anos nos períodos de chuva é a implantação imediata de um Departamento Nacional de Prevenção e Mitigação de Catástrofes.
  
CARTA GEOTÉCNICA, TAMBÉM UMA SAÍDA

É possível que a inserção da Carta Geotécnica, debatida, elaborada e aprovada pelos geólogos, geotécnicos e urbanistas, venha a ser uma saída, para prevenir desastres ocasionados pelas chuvas e pelas mudanças climáticas, desde que inserida no Estatuto da Cidade. O projeto de lei do senador Rodrigo Rollemberg (PL 2440/11) prevê essa mudança como ponto de partida para a definição de critérios de ocupação do solo e prevenção de riscos geológicos.
O projeto tem em vista evitar tragédias como o desmoronamento de encostas e alagamento de vales e várzeas. Para esse fim, os planos diretores, instituídos pela Constituição de 1988, incorporariam medidas para adoção de práticas de geologia e geotecnia, de modo a evitar ocupação de áreas de risco e também evitar tragédias como aquela que ocorreu no Morro do Bumba, em Niterói.

O geólogo Álvaro Rodrigues dos Santos, em análise que orienta as alterações previstas no Estatuto da Cidade, informa que, do ponto de vista legal e institucional, a Carta Geotécnica “é o passo essencial e elementar para conquistar um novo patamar na gestão geológica e da expansão urbana – “medida que, bem implementada, eliminaria, na origem, a produção generalizada de áreas de risco geotécnico”.

Em artigo que ele elaborou e foi difundido no meio técnico, o geólogo reconhece que, isoladamente, o plano diretor não expressa o necessário casamento entre a ocupação urbana e as características do meio físico onde ela ocorre. Para se corrigir isso, é preciso que os planos diretores e demais instrumentos públicos de gestão do uso do solo pautem-se por uma carta geotécnica do município.

O projeto do senador Rollemberg se encontra em trâmite na Câmara Federal, e todos os pareceres anexos são favoráveis à incorporação da Carta Geotécnica ao Estatuto da Cidade. Geólogos, geotécnicos, urbanistas e administradores públicos com visão de futuro, estão na expectativa de que o projeto seja aprovado. A sociedade agradecerá.

Fonte: Padrão

Deixe um comentário