De caçadores de empresas ao homem comum

Em 1986, Sir James Goldsmith (1933-1997) tentou adquirir a Goodyear Tire and Rubber Company. Sua estratégia era buscar empresas com valor de mercado inferior ao valor patrimonial (ou de liquidação), comprar o controle destas empresas, substituir a administração e “fatiá-las”, realizando lucros. Empresas antigas com gestão ineficiente e ativos em abundância, mas com problemas de lucratividade, eram os alvos preferidos desses indivíduos, chamados de caçadores de empresas (corporate raiders).

Após uma massiva reestruturação, a administração da Goodyear conseguiu evitar perder o controle da empresa, vindo a adquirir as ações em poder de Goldsmith, que faturou US$ 90 milhões.

Mais de 20 anos depois, no meio do turbilhão financeiro de hoje, novamente a comparação entre o valor de liquidação e o valor de mercado passou a ser o foco para alguns investidores. Algumas empresas no Brasil estão sendo negociadas a preços inferiores ou próximos dos valores patrimoniais. A relação preço da ação/valor patrimonial por ação (P/VPA) passou a ser inferior ou próximo do número mágico de 1.

Entre os diversos múltiplos financeiros usados por analistas, o P/VPA é aquele que compara o preço de uma ação com o seu valor patrimonial, sendo este último a diferença entre ativos e passivos contábeis divididos pelo número de ações emitidas. Seria uma referência para o valor de liquidação da empresa.

Um valor abaixo de 1 indicaria teoricamente que, se uma empresa encerrasse suas atividades, vendesse seus ativos e pagasse seus débitos, teria como resultante um valor residual superior ao valor de mercado. Entretanto, sem o ativismo e a interferência direta na administração da empresa por um caçador de empresas, o que isso indicaria para o investidor comum? Uma barganha para compra ou prelúdio de problemas?
O P/VPA é muito usado pelo investidor comum, mas talvez não possua o mesmo respeito que outros múltiplos, como o preço/lucro (PL) ou lajida/VE (lucro operacional/valor do empreendimento), gozam pelos analistas. Usado para estudos de empresas com possível descontinuidade ou de empresas com ativos e passivos altamente monetizados (setor financeiro), a sua aplicação em outras situações é mais restrita.

Algumas razões:

1. O P/VPA compara o preço de mercado da empresa contra o valor do patrimônio líquido acumulado em diversos períodos a custos históricos. Ignora os efeitos de inflação e da obsolescência tecnológica sobre o valor dos ativos;

2. A comparação do valor patrimonial entre empresas é muitas vezes comprometida por causa dos diferentes tamanhos de ativos nos diferentes tipos de negócios. Uma estrutura industrial em geral, por exemplo, exige muito mais capital do que uma empresa na área de serviços;

3. O P/VPA ignora ativos intangíveis derivados do capital humano (marcas, distribuição, tecnologia, entre outros).

4. O valor patrimonial de uma ação está sujeito a convenções e às já famosas distorções contábeis;

5. O preço/lucro, o lajida/VE e o preço/fluxo de caixa comparam o valor de mercado de uma empresa com um fluxo econômico dinâmico derivado da demonstração de resultados. O P/VPA compara o valor de mercado contra um valor de estoque oriundo do balanço patrimonial.

Talvez o caso do P/VPA seja semelhante, em aspectos psicológicos, ao do índice Dow Jones Industrial. Apesar de o Dow Jones ser o principal índice de ações da classe média americana, ele é rejeitado pelos analistas em favor do Standard & Poor’s 500. Os motivos apontados são seu processo amostral e sua metodologia de precificação. Contudo, sua correlação com o S&P 500 é nada menos que 0,982 nos últimos dez anos. Nada mal para o índice do homem comum.

Não seria adequado o papel do P/VPA quando a dificuldade de se fazer projeções é grande e mesmo quando as perspectivas de continuidade de algumas empresas são duvidosas?

É por usarmos um valor de estoque (o patrimônio líquido) no cálculo do P/VPA que este múltiplo apresenta uma volatidade menor comparado a outros. Enquanto o valor do P/L das ações que compõe o índice Bovespa a preços correntes varia entre -2,08 e 84,34 (excluindo valores extremos acima de 100), o P/VPA destes mesmos papéis trabalha num de intervalo de 0,35 a 23,74 (incluindo todos os extremos de alta e baixa). Isso faz com que o P/VPA seja uma alternativa interessante de avaliação.

Dificilmente também uma empresa apresenta um P/VPA negativo, enquanto isso é usual com o P/L. Quando uma empresa apresenta prejuízos, o P/L fica negativo. A interpretação fica prejudicada.
É importante destacar que setores com capital intensivo (petróleo, mineração e materiais, concessionárias e infraestrutura) possuem naturalmente menores P/VPAs. Estes que são setores de grande importância nos mercados emergentes. Cemig, Aracruz e a Petrobras ON possuem valores correntes de 1,88, 2,19 e 2,46, respectivamente, enquanto empresas como Lojas Americanas, Natura e RedeCard, com ativos expressivos fora dos livros contábeis (marca, rede de distribuição), possuem em ordem 14,06, 19,55 e 23,74. Justamente são estas empresas que constituem os extremos de alta do P/VPA no Ibovespa.

Das 66 ações que compõe o Ibovespa, cerca de 13 possuem o múltiplo menor que 1. Entre elas estão Eletrobrás, Usiminas ON, Cesp, Sabesp e Metalúrgica Gerdau.

O P/VPA possui também defensores acadêmicos. Existem testes empíricos que demonstram que ações com menores P/VPAs possuem maiores retornos no longo prazo. O mais conhecido deles é o de Eugene Fama e Kenneth French, que gerou um modelo de três fatores, dentre eles apontando ações com maior valor patrimonial em relação ao valor de mercado como geradora de retornos em excesso à média de mercado.

O uso do P/VPA segue a abordagem de investimento de valor (“value investing”) o que inclui:

a. O uso de métricas da análise fundamental como baixos P/Ls ou P/VPAs na tentativa de identificação de papéis que possam embutir descontos no seu preço em relação ao seu justo valor intrínseco;

b. Indicação de momentos de compra e venda de ações cíclicas dentro de uma análise temporal;

c. Papéis que distribuem maiores retornos de dividendos (dividend yield).
Finalmente, o uso combinado do P/VPA com uma medida de lucratividade é recomendado para tornar a análise mais dinâmica. O retorno sobre patrimônio líquido (return on equity, em inglês) é ideal. Principalmente se considerarmos que, conforme o modelo de Gordon, o valor justo de uma empresa é a soma do seu patrimônio líquido mais o valor presente do rendimento deste patrimônio multiplicado pela diferença do ROE menos o custo de capital: valor de mercado = valor patrimonial + valor presente [valor patrimonial X (ROE – custo de capital)].

Em termos mais simples, a rentabilidade sobre o patrimônio da empresa tem que ser superior aos custos totais de captação (de terceiros ou próprios) para que o valor de mercado de uma empresa se justifique superior ao valor patrimonial.

Ao utilizar esse múltiplo para a realização de um investimento, procure antes:

1. Checar a evolução do desempenho do P/VPA do índice Bovespa (sim! O índice Bovespa também tem múltiplos – peça dados ao seu consultor ou corretor). O Ibovespa apresentou um P/VPA 1,46 em 12/2000, um valor de 0,74 em 12/2002 e um pico de 1,97 em 12/2006. No final do ano passado, o múltiplo era de 1,32;

2. Comparar o P/VPA da ação com empresas similares do próprio setor;

3. Estudar o valor do P/VPA da empresa ao longo do tempo, verificando se seu valor se encontra distante do valor médio dentro do período estudado;

4. Avaliar em conjunto o P/VPA e o ROE da empresa. Caso haja empresas com baixo P/VPA e alto ROE, verificar com seu corretor se há algum evento específico (reorganizações, projeções de baixo resultado, problemas de endividamento etc);

Um baixo valor de P/VPA pode ou não indicar uma barganha. A associação não é direta. Muitas empresas apresentam baixos P/VPAs e simplesmente não possuem boas perspectivas. O mercado já precificou. Um P/VPA baixo, associado com um ROE fraco, é, em geral, indicador de investimento de alto risco. A análise qualitativa da empresa é necessária e o risco de algum evento existe. Principalmente se a empresa é deficitária e endividada.

A diferença principal entre os dias de hoje e os anos 1980? Talvez o homem comum não possua os mesmos recursos de capital e conexões que um megainvestidor como Goldsmith possuía. Mas certamente em termos de informação ele é muito privilegiado. Mesmo não sendo um caçador de empresas, nada impede que o homem comum seja um investidor esclarecido.No turbilhão financeiro, novamente a comparação entre valor de liquidação e de mercado passou a ser foco para investidores.

Fonte: Estadão

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