A BR-319 é uma rodovia federal que corta o Brasil em sentido diagonal, ligando as cidades de Porto Velho e Manaus, na Região Norte do País. Com cerca de 880 km de extensão – dos quais 859,5 no Amazonas e 20,9 em Rondônia – ela é o principal acesso a várias cidades do sul do Amazonas. A exemplo da BR-136, sua construção aconteceu durante o regime militar, no início da década de 1970, dentro do contexto de colonização da Amazônia. Especialistas asseguram que as obras, inauguradas em 1973, foram executadas às pressas, sem uma fundação adequada de cascalho sob o pavimento de asfalto. Tanto que, poucos anos depois, a rodovia tinha se tornado intransponível, na prática.
Outros analistas, de espíritos mais desarmados, preferem dizer que se trata de uma das mais curiosas experiências da engenharia rodoviária brasileira, uma vez que foi construída praticamente “sobre as águas”, ao longo de terreno invariavelmente plano, caracterizado por grandes áreas pantanosas. O projeto original previa a implantação básica e pavimentação, 17 obras-de-arte especiais, cerca de 23 milhões de m2 de desmatamento, 40,9 milhões de m2 de destocamento e limpeza, e 20,8 milhões de m3 de terraplanagem, 18,1 milhões de m3 de compactação controlada, 1,1 milhão de m2 de sub-base de solo estabilizado e 855 mil m3 de base estabilizada de solos lateríticos.
Os engenheiros, responsáveis pela execução do projeto, procedentes, em sua maioria, do estado de Minas Gerais, desconheciam as características do terreno e só diveram a exata dimensão do desafio que teriam que enfrentar quando chegaram à região. Ao longo de todo o traçado na nova rodovia não havia qualquer capaz de oferecer o apoio logístico necessário, o que os obrigou a se preocuparem não só com as questões de engenharia, como também com serviços administrativos. Eles tiveram que prover o canteiro e, ao mesmo tempo, prestar assistência a centenas de operários isolados na selva e a suas famílias.
Em vários momentos, as condições climáticas se configuraram em obstáculos intransponíveis. Engenheiros e operários viam a obra progredir e, de repente, vinham as chuvas, colocando literalmente por água abaixo tudo o que havia sido construído. Mal um trecho dificil era transposto e surgiam pela frente novas áreas alagadas a serem vencidas. Do km 25 ao km 40, a partir de Manaus, tudo ficava sob as águas no período das cheias.
Na busca desesperada por uma faixa de terra firme, capaz de dar sustentação às obras em andamento, os operários escavam as laterais da faixa de domínio, na época de seca, e jogavam terra na pista. Com isso iam se formando enormes crateras nas laterais da rodovia que, com novas chuvas, se tornavam piscinas com até 10 m de profundidade. Para agravar a situação, não havia rochas na região, para fazer a sub-base do pavimento. Era preciso ir buscá-las a 420 km de distância, numa pedreira cujos acessos também ficavam minundados durante as cheias. A brita extraída era embarcada em barcaças e levadas a um ponto estratégico de suprimentos das obras.
O diesel para as máquinas também era trazido à distância, transportado em tambores em viagens que duravam horas, muitas vezes em canoas. Por todas essas dificuldades, a construção da BR-319 se constituiu em uma epopéia.
Abandono e destruição
Tanta dificuldade para construir o rodovia só torna mais dramática a situação de abandono em que ele se encontra hoje. Crateras, pontes e pinguelas de madeira destroçadas, enormes bolsões de lama compõem o triste cenário daquela que deveria “promover a integração nacional”.
Esquecida, abandonada e coberta pela floresta, a estrada conserva uma pequena parte asfaltada. Ao longo do seu traçado não há postos de gasolina, postos da Polícia Rodoviária ou fiscalização da Receita – num completo abandono da administração pública.
Mesmo em época de seca, a velocidade média possível é de 40 km/h. Porém, pior é na época das chuvas, quando a poeira e o calor dão lugar à lama e à inundação dos rios, que impedem a circulação dos veículos. Dos menos de 100 km que estão asfaltados, cerca de 28 km estão recém-reformados e em boas condições de tráfego. Eles foram recuperados em obras executadas no início de 2007, pelo 7º Batalhão de Engenharia e Construção do Exército, – a partir do repasse de recursos da ordem de R$ 51,2 milhões, pelo Departamento Nacional de Infra-estrutura de Transportes (DNIT).
De acordo com o DNIT, outros R$ 695 milhões serão aplicados em obras de recuperação da rodovia, dentro do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). A previsão é de que as obras sejam executadas até 2012.
O projeto de recuperação da rodovia, no entanto, depende de outros fatores além de vontade política e disponibilidade de recursos. O trecho mais longo dos lotes de obras da rodovia, que vai de Igarapé-Açu (PA), km 250, até a região de Humaitá, no km 655, está interditado desde outubro pelo Ibama, por falta de informações complementares no Estudo de Impacto Ambiental (Eia/Rima). Segundo a direção do Ibama no Amazonas, o Eia/Rima está em fase de análise pela diretoria de licenciamento do órgão, em Brasília.
Nessa fase o Ibama verifica se estão contemplados no estudo todos os itens necessários para avaliar os riscos da obra.
Os outros sete lotes em que foram divididosos 880 km da rodovia, já estão em obras, segundo o DNIT.
O embargo das obras
O anúncio da suspensão das obras trouxe alívio a parte da população de Manaus, pesquisadores e instituições ambientalistas envolvidos na discussão dos impactos da rodovia. Após três anos de disputas judiciais e pressões políticas, finalmente o poder público admite a gravidade dos impactos ambientais e sociais gerados pela possível pavimentação da rodovia. Segundo cientistas do Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia (Inpa), a pavimentação da rodovia ocasionaria a perda de cerca de 3 a 5 milhões de hectares de floresta, liberando aproximadamente entre 1,3 e 3 bilhões de toneladas de dióxido de carbono na atmosfera – mais do que as emissões anuais de CO2 de todo o Brasil.
“Neste momento em que o mundo discute a absoluta necessidade de parar o desmatamento como contribuição para reverter os efeitos do desastre climático que paira como uma bomba sobre nosso futuro próximo, permitir o asfaltamento dessa estrada seria um contra-senso ambiental e econômico”, afirma Paulo Adario, diretor do Greenpeace. Segundo ele, há opções mais adequadas economicamente e muito mais corretas do ponto de vista ambiental,
tais como a construção de uma ferrovia, possibilidade que estaria está sendo analisada pelo próprio governo do Amazonas e BNDES. Outra alternativa, segundo ele, seria a hidrovia do Rio Madeira.
“Rodovia é uma solução obsoleta da década de 50, quando o petróleo era barato e farto e o mundo não tinha acordado para as mudanças climáticas. Não temos mais tempo a perder com procastinações e política paroquial”, afirma Adario.
As obras da BR-319 também estão na mira do Tribunal de Contas da União. Com as investigações da Policia Federal que culminaram com a Operação Navalha, veio à tona um esquema de corrupção envolvendo a Construtora Gautama e políticos através do qual emendas ao orçamento da União teriam sido aprovadas, superfaturando os custos da obra.
Fonte: Estadão