O mundo que temos em nossas mãos não nos foi presenteado por nossos pais. Foi emprestado por nossos filhos.
Provérbio de origem africana
Entre as grandes obras que compõem o Sistema Cantareira, uma das mais importantes é a Estação de Tratamento de Água do Guaraú. Suas dimensões colocam-na em segundo lugar no mundo – só sendo ultrapassada pela similar de Chicago – e os recursos tecnológicos nela incorporados elevam-na a obra de grande nível técnico.
Informe técnico da Comasp publicado na edição de fevereiro de 1971 da revista O Empreiteiro
No começo de 1940 verificou-se que São Paulo tinha 1,3 milhão de habitantes. A explosão demográfica seria sinalizada em 18 anos depois quando a cidade, passando por um processo de industrialização, alcançou 3,5 milhões.
O passado tinha sido pontilhado por seguidas tentativas de resolver as carências de água da população. Dos chafarizes aos canais, e depois aos reservatórios, havia uma longa história que incluía graves crises no abastecimento durante os períodos de estiagem e algumas epidemias, como a de febre tifóide, em 1914, motivada pelo uso das águas sem tratamento do Tietê. Passou o tempo, mas no final da década de 60 as manchetes dos jornais alardeavam a escassez de água. O índice de mortalidade infantil era superior a 81 crianças para cada 1.000 nascidas.
Em fevereiro de 1968 foi criada a primeira empresa de atuação metropolitana de São Paulo: a Companhia Metropolitana de Água de São Paulo (Comasp), com o objetivo de suprir os municípios da Grande São Paulo. Ela foi seguida, dois anos depois, pela Companhia Metropolitana de Saneamento de São Paulo (Sanesp), destinada a interceptar e tratar os esgotos da região. Ambas deram origem, em meados de 1973, ao lado de outras companhias do interior do Estado, à Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp).
A curta história da Comasp, entretanto, foi pontuada por um conjunto expressivo de obras: ela recebeu a incumbência de dar andamento à construção do Sistema Cantareira (ex-Juqueri, concebido pelo engenheiro Paiva Castro), iniciada um ano antes pelo Departamento de Àgua e Esgotos (DAE), constituído por quatro reservatórios de regularização e captação formados pelas águas represadas de quatro rios da bacia hidrográfica do Tietê: o Juqueri, o Atibainha, o Cachoeira e o Jaguari. Sua função: atender às regiões norte, noroeste e nordeste da Grande São Paulo, as menos favorecidas no modelo de abastecimento então vigente.
A execução da primeira etapa do Cantareira compreendeu a captação, recalque e adução das águas do rio Juqueri até a Estação de Tratamento de Água Guaraú e a captação e reversão de parte das águas dos rios Atibainha e Cachoeira para o rio Juqueri. Em dezembro de 1973, um mês após a extinção da Comasp, o Sistema Cantareira foi inaugurado, marcando a operação dos reservatórios do Cachoeira, Atibainha, Paiva Castro e Águas Claras, quatro túneis, elevatória de Santa Inês e estação Guaraú. Acrescido em 1983 dos reservatórios do Jaguari e Jacareí e mais um túnel, no presente ele abastece 53% da população da Região Metropolitana de São Paulo (9 milhões de habitantes), fornecendo 33 mil l/s de água.
Acesso às modernas tecnologias
“Quando assumimos o empreendimento, não havia um projeto global, alguns trechos estavam com as obras iniciadas, e a primeira providência foi contratar consultores para fazer os ajustes necessários. A política da Comasp centralizou-se em abrir trabalho para todas as empresas interessadas, de modo que tivessem acesso às mais modernas tecnologias existentes em termos mundiais. Tivemos mais de 800 contratos”, informa o engenheiro Haroldo Jezler, presidente da companhia na época. Ele relembra: “Entre as consultoras atuantes estavam a Serete, a CNEC, a Figueiredo Ferraz, a Hidroservice, a Brasconsult e a Themag. O detalhamento da ETA foi feito pela Planidro e muitos escritórios de arquitetura também trabalharam, como o Aflalo Gasperini e o do Ruy Othake”.
Segundo Jezler, foi por intermédio da Serete, que tinha um contrato firmado já desde o tempo do DAE, que pôde ser acessado o escritório norte-americano James M. Montgomery Consulting Engineers, que ficou responsável pela supervisão geral do empreendimento e ainda pelo projeto básico da ETA Guaraú. Nesta foram introduzidas profundas inovações de cessamento do tratamento, as quais passaram a ser controladas integralmente; uso de filtros de duas camadas, com areia e antracito, em vez dos tradicionais filtros de areia; aplicação pela primeira vez no País de polieletrólitos para aumentar a eficiência dos processos químicos; e controle de todas as fases de purificação da água por meio de um centro de comando. Situada nas proximidades do Horto Florestal, a ETA Guaraú recebe a água vinda do reservatório do Juqueri, distribuindo-a por gravidade aos centros de consumo.
Vetor de modernização nessa área, o conjunto de obras da Comasp, que incluiu ainda o Sistema Adutor Metropolitano (SAM) e a reabilitação dos sistemas Rio Claro e ABC, promoveu o desenvolvimento de vários segmentos da engenharia, desde modelagem de contratos e julgamento de concorrências até planejamento dos trabalhos e tecnologia de materiais. Muitas das conquistas se devem ao fato de terem sido contratados especialistas internacionais, como a Booz Allen, que gerencia o Projeto Polaris, nos Estados Unidos, e que ficou responsável pela programação das obras do sistema Cantareira.
No campo das tecnologias de materiais, promoveu o avanço das indústrias de fabricação de tubos, pois na execução do SAM fora especificado o uso de tubulações de aço, que tinham de 1,80 a 2,10 m de diâmetro. “Apesar de a Trivellato ter vencido a concorrência internacional, mas ficando em segundo lugar a Confarb e, em terceiro, a Santa Marina, optou-se por entregar 50% do contrato para a vendedora, que instalou uma nova fábrica, e 25% para cada uma das outras duas, de modo que as três tivessem acesso à mesma tecnologia, de origem norte-americana”, conta Jezler. Foram também desenvolvidas novas tecnologia para realização de soldas dos tubos tanto no processo de fabricação quanto no campo, com controle por raio-X. Na fase executiva, foram elaboradas normas rígidas para assentamento dos tubos e compactação das valas. De forma geral, foram introduzidos conceitos pioneiros de controle de qualidade tanto na produção de materiais e equipamentos como nas tecnologias de construção.
Quatro séculos de luta pela água
Do primeiro poço aberto na época da fundação da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, a mando de Estácio de Sá, ao famoso aqueduto dos Arcos da Carioca, inaugurado em 1723, e daí à construção da Estação de Tratamento de Águas do Guandu, pela Companhia Estadual de Águas e Esgotos (Cedae), considerada no tempo de seu projeto (início dos anos 50) a segunda maior estação do mundo, foram quatro séculos de luta pela água.
Dirceu Mafaldo de Alvarenga Menezes, superintendente do Sistema Guandu e membro do Conselho de Administração da Cedae, que acompanhou desde 1955 o conjunto de obras, conta que o projeto da ETA do Guandu foi concebido em 1951 e, em 1953, a Patterson Engineering, da Inglaterra, foi escolhida para projetar e construir a estação. Sua construção se deu em três etapas e enfrentou muitos percalços de ordem técnica e política: a primeira foi completada em março de 1956 e empregava água transportada pela primeira adutora: a Henrique de Novaes. Com a criação do estado da Guanabara em 1960, o projeto de adução ganhou força, prevendo-se obter uma capacidade de adução de 2,4 bilhões l/dia. A segunda etapa foi levada à frente e concluída em abril de 1963, constando da execução de nova tomada d’água, elevatória de grande porte e do túnel adutor do Guandu, escavado em rocha e constituído por dois trechos de características distintas: um túnel-canal e um túnel sob pressão, em forma de ferradura, que constituiria o sifão para travessia da Baixada de Jacarepaguá.
A terceira etapa do sistema foi completada em 1965. As três etapas são idênticas e produziram 4,6 m3/s de água tratada cada uma. Alguns anos depois, em 1972, a capacidade de vazão da ETA passou para 24 m3/s, graças à redução do tempo de retenção de água na ETA. Dez anos depois, foi inaugurada a nova ETA do Guandu, ao lado da antiga, com vazão de 16 m3/s, a qual passou por mais um incremento de 5 m3/s em 1993 e possui capacidade de tratamento atual de 43 m3/s.
A captação da água do rio Guandu é feita por dois túneis de cerca de 300 m de comprimento. A água passa por sistema de gradeamento, desarenadores e elevatórias de água bruta, de onde segue por cinco adutoras, cada uma com 3.200 m de extensão, chegando à ETA onde é feito o tratamento com floculadores e decantadores. Na seqüência, a água é conduzida aos 60 filtros de areia e antracito, recebendo cloro para desinfecção, cal virgem para eliminar a acidez e flúor para prevenção de cárie dentária.
“Se as marombas são do ‘centro nervoso’ da ETA do Guandu, Dirceu Menezes representa o coração que pulsa, se emociona e não deixa todo o resto parar”, atestam os companheiros da Cedae. Farmacêutico apaixonado pelo saneamento, ele acompanha o sistema desde 1955, quando exerceu a função de auxiliar-técnico em Biologia; a partir de 1962 passou a ser o superintendente da ETA do Guandu. Com muitas histórias para contar do tempo das obras, recorda a inauguração, em 1975, da Nova Elevatória do Lameirão: na hora de ativar os motores, a tubulação que ligava a estação ao Guandu ficou praticamente fechada, pois houve uma espantosa compressão de ar, o que obrigou os engenheiros a injetarem água do Guandu para o Lameirão, para que a situação se normalizasse.
Atualmente, a Cedae investe R$ 34 milhões em um conjunto de obras no sistema adutor Guandu, que acrescentará mais 8.800 l/s à sua capacidade (760 milhões l/dia). A adutora está sendo ampliada em mais 20 km. Ao mesmo tempo em que está sendo construída uma subadutora, a antiga rede de alimentação e distribuição passa por readequação, uma elevatória é formada e são construídos novos reservatórios.
Notas bibliográficas
Informe técnico da Comasp publicado na edição de fevereiro de 1971 da revista O Empreiteiro
Águas de São Paulo: passado e presente, publicado pela Secretaria de Recursos Hídricos, Saneamento e Obras/Sabesp (2001), 100 Anos da Engenharia Brasileira, da Editora Univers (2000)
Águas de São Paulo: presente e futuro, publicado pela Secretaria de Recursos Hídricos, Saneamento e Obras/Sabesp (2001)
100 Anos da Engenharia Brasileira, da Editora Univers (2000)
Ás águas Rolaram, publicação da Secretaria de Estado de Saneamento e Recursos Hídricos/Cedae (2001)
Jornal da Cedae (1983)
Luta pela Água, do engenheiro Rosauro Mariano da Silva
Fonte: Padrão