Aluizio de Barros Fagundes*
Este artigo, que publiquei em 1994 na revista Prefeitura Municipal, da mesma editora que edita O Empreiteiro, é reproduzido aqui, com as devidas adequações, para mostrar a atualidade do tema e das discussões em torno da Lei 8.666/93.
O recente questionamento da integridade das empreiteiras no trato com o dinheiro público, incluindo a validade de seu lobby junto aos poderes contratantes, suscita diversas reflexões a respeito do modus actuandi das empresas de engenharia que servem ao poder público, sobretudo na atividade de comercialização de seus serviços e produtos.
No que tange à formalização dos contratos, que finalizam a comercialização e dão início ao fornecimento de serviços, obras e equipamentos, bem ou mal, parece que a nova Lei de Licitações e Contratos que vigora desde 21 de junho de 1993, sob o nº 8.666, busca cercear vícios e suas consequências danosas ao processo. Ao mesmo tempo, amplia as chances de empresas menores disputarem contratos, assim estimulando a benéfica competitividade nesse amplíssimo mercado de trabalho.
A Lei nº 8.666 determina que obras só poderão ser licitadas a partir de Projeto Básico capaz de definir com precisão o objeto da licitação e, consequentemente, ser acompanhado de orçamento detalhado das obras e fornecimentos em questão.
Para que se impusesse tais conceitos e critérios às licitações de obras e fornecimentos, como se vê, houve necessidade de lançar mão, como pré-requisito, da existência do Projeto Básico.
Mais uma vez, a mesma Lei nº 8.666 contempla os procedimentos para licitação e contratação dos serviços de projetos e consultoria em geral. Desta, no entanto, o espírito do legislador, pela própria natureza intelectiva e criativa desses serviços, não conseguiu a mesma nitidez e objetividade do critério de escolha da proposta mais vantajosa e segura. Em sua maior parte, os referenciais dos projetos desejados não têm condições de prévia definição e, daí, o legislador se viu obrigado à criação da subjetiva modalidade de “melhor técnica” como critério principal ou auxiliar para eleger a proposta mais interessante.
Aqui cabe a primeira reflexão sobre o assunto em pauta
Antes da Lei nº 8.666, sob a égide do Decreto-Lei nº 2.300, não havia uma clara obrigação de se licitar projetos. A escolha de uma empresa de projetos, sobretudo em empreendimentos de maior responsabilidade ou magnitude, partia da pressuposição da confiança na especialização da empresa a contratar.
A abertura do D.L. nº 2.300 para uma contratação direta estava no preceito da notória especialização. Sem dúvida, este preceito pode ser subjetivo e até possibilitar discriminações entre empresas com similar especialização notória, bem como manter permanentemente à margem de tal mercado empresas nascentes e de grande potencial para atingir maior conceito e divulgação no meio técnico. Este fato suscitou muitos debates no meio técnico-profissional, inconclusos a nosso ver.
A nova Lei de Licitações pôs fim ao debate sobre a notória especialização, obrigando o poder público a licitar projetos.
Independentemente do mérito da questão, este ato está propiciando igualdade de oportunidades para empresas diversas, antigas e novas, grandes e pequenas, mais e menos conhecidas do público geral, na disputa de contratos.
Passa-se assim à segunda reflexão
sobre o assunto em pauta
Um empreendimento que envolva a Engenharia, à semelhança dos demais, inevitavelmente passa por diversas fases, subsequentes e, de certo modo, obedecendo a uma hierarquia de precedência.
Inicialmente é detectada a necessidade ou oportunidade por parte do promotor do empreendimento, a partir do que se passa à fase da Engenharia Consultiva:
– procede-se aos estudos técnicos preliminares, que fixam índices sobre a atratividade do empreendimento;
– segue-se com estudos da viabilidade técnica e econômica do objeto, ocasião em que os primeiros valores são assumidos com determinada faixa de aproximação e os resultados dão condições de se avaliar a efetiva condição de prosseguir nos trabalhos;
– elabora-se o projeto básico, preliminares, a configuração final, dimensionam-se as estruturas componentes das obras e preparam-se as especificações técnicas.
Em seguida, passa-se à fase de implantação do empreendimento com a execução das obras. Uma vez implantado o empreendimento, passa-se à operação e uso, que envolve, em maior ou menor grau, o concurso de profissionais engenheiros em atividades peculiares de vistorias e manutenção.
Vê-se logo que, no campo da Engenharia, num empreendimento há três modalidades diferenciadas de emprego de profissionais engenheiros: consultor/projetista; construtor/montador; e operador/mantenedor.
Na primeira fase, os estudos e projetos exigem somente a aplicação da Engenharia Consultiva, cuja forma de trabalho é altamente intelectiva, típica de gabinete, exigindo criatividade e abstração. Na segunda fase, a implantação exige a alocação de outro tipo de profissional engenheiro cuja obrigação é materializar no campo as obras e montar os eventuais equipamentos constantes do projeto, seguindo as especificações correspondentes. São as equipes das Empreiteiras e Montadoras. Na terceira e última fase, outro tipo de profissional engenheiro é requerido: aquele vocacionado para a operação e manutenção de obras civis e equipamentos, com atividades rotineiras.
Apesar das suas sutis deficiências, a Lei nº 8.666 atentou para o problema, mas o que antecede a licitação, ou seja, a fase mais nobre da comercialização, que é a detecção da oportunidade e a influência no consumidor (o poder público, no caso), não ficou codificada de modo claro e irreprochável.
Para que essa atividade comercial seja correta só resta a persecução da ética, que concita à terceira reflexão que se passa a expor.
Aspectos Éticos e Comerciais e os Equívocos
O Código de Ética do Engenheiro, regulamentado pela Resolução nº 205 do Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia, permite vislumbrar, em seus nove artigos, que os deveres dos profissionais se dirigem a três públicos distintos: o público em geral; o meio profissional; e a clientela.
Sob tais preceitos de conduta profissional, a comercialização dos produtos de engenharia torna-se assunto delicado, sobretudo quando se considera que nem sempre o cliente contra
tante é engenheiro e, assim, desconhece as normas de relacionamento profissional correndo o risco de arbitrar inadequadamente nas disputas comerciais.
Porém, há um entrave estrutural no exercício da atividade: os custos da Engenharia Consultiva e de Projetos representam cerca de 10% do valor total dos empreendimentos, sendo os 90% restantes destinados à Engenharia de Construção.
Os custos de comercialização virgem da Engenharia Consultiva são elevadíssimos em relação ao valor presumível do contrato propugnado. Isto é um fator inibidor muito significativo para a deflagração de um processo comercial de Consultoria, sobretudo sabendo-se do risco, inevitável, de que se poderá gastar muito dinheiro orientando os primeiros passos do Cliente, e depois do caminho arrumado, em uma simples licitação, profissionais concorrentes que nada investiram antes, ganhem o contrato.
Por causa dessa evidência, quem acaba militando no campo comercial citado é o Empreiteiro. Os custos comerciais de abordagem inicial ao Cliente são praticamente os mesmos. Porém, os riscos econômicos do Empreiteiro são muitíssimo inferiores aos do Consultor, pois sua incidência sobre o valor do contrato pleiteado é nove vezes menor. E assim tem acontecido.
Nem sempre acontece a autocrítica do Empreiteiro para perceber que, eticamente, não deve resolver assuntos técnicos fora de sua alçada no exercício profissional. Mas independentemente desse mérito, a atual Lei nº 8.666 proíbe que o Projetista seja organizacionalmente ligado ao Empreiteiro.
Como visto, essa situação é típica de um impasse que, para melhor entendimento, utiliza-se um exemplo. Suponha-se que o Prefeito de uma cidade com 30.000 habitantes resolva suprir toda a população com água tratada.
Em função das circunstâncias naturais da vida dessa pequena cidade, a Prefeitura não dispõe de um corpo técnico de profissionais engenheiros experientes em empreendimentos de infraestrutura.
No que toca à Engenharia, as pessoas do lugar estão habituadas à construção predial de casas térreas e, raramente, assobradas. Para tanto, contratam pequenos empreiteiros, mestres de obras práticos.
Pois bem, o Prefeito procura uma Empreiteira de porte médio sediada na Capital para resolver o seu problema de abastecimento, pois parece-lhe que é assim que deve ser feito.
Ou, em outra situação, o Prefeito é procurado pela Empreiteira, interessada em fazer obras, a qual lhe oferece e dá todo o apoio administrativo necessário, inclusive para captar recursos financeiros.
Grosso modo, sabe-se que os investimentos necessários para tais obras estarão na casa de US$ 3.000.000. Os projetos e o gerenciamento custarão algo em torno de US$ 300.000 e as obras US$ 2.700.000.
As atividades iniciais de comercialização e estudos técnicos preliminares, seguidas das atividades administrativas de montagem do processo, inclusive de pesquisa e diligenciamento de obtenção dos recursos, têm custo bastante variáveis, mas podem chegar a US$ 50.000, ou mais.
Ora, US$ 50.000 são quase 17,0% do valor do contrato de Consultoria (em termos de negócios, uma taxa elevadíssima), e apenas 1,8% do valor do contrato das Obras (uma taxa muito aceitável para despesas comerciais).
Por causa disso, dificilmente uma empresa de Consultoria se disporá à iniciativa de procurar o Prefeito e explicar a ele que o empreendimento nascerá corretamente com os seus préstimos profissionais. Mas, com a maior frequência, é a empresa Empreiteira que fará a aproximação.
Se antes da Lei nº 8.666 já não era hábito a Empreiteira prestigiar e reconhecer os serviços de Consultoria, com a atual proibição de interação, esta, com base na memória de obras similares antes executadas, traçará no papel um esboço graficamente bem desenhado, ao qual dará o nome de “Projeto do Sistema de Abastecimento de Água”.
Já está incutido nos costumes que a gorjeta do garçom é de 10% (número inicialmente aleatório), a taxa de contingência destinada a suprir as deficiências dos projetos orçados é de 15% a 20% (também um número inicialmente aleatório).
Somando-se as taxas de superdimensionamento das obras às taxas de contingência orçamentária, tanto a Empreiteira quanto o Prefeito passarão a racionar com custos mais de 30% superiores àqueles que deveriam realmente ser considerados. Portanto, o “projeto” aparentemente veio “de graça”.
Sugestões para Melhor Análise do Tema
As grandes empresas públicas e as administrações municipais mais portentosas já estão aparelhadas e dispõem de corpo técnico permanente bem preparado para os estudos técnicos preliminares que definem os projetos básicos a licitar e contratar.
Porém, as Prefeituras de porte médio e pequeno, por não necessitarem permanentemente, não dispõem de um corpo técnico altamente experiente e capacitado para análises de tal tipo.
Propõe-se, como sugestão, uma ampla divulgação do assunto, desenvolvida de modo honesto, transparente e, por consequência, convincente, para que os prefeitos busquem contactar empresas consultoras ou consultores individuais, de grande experiência, para contratar diretamente seus préstimos profissionais em orientação, assessoria técnica e estudos preliminares necessários à subsequente licitação de projetos básicos, obrigatórios para a futura licitação das obras.
Os contratos individuais ou de pequenas equipes para tal tipo de serviço requerem a inquestionável notória especialização. A formulação de dados para referência de Projetos Básicos pode caracterizar, em muitos casos, emergência em face de curtos prazos disponíveis e necessários para o processamento. Via de regra, os custos desses assessoramentos estão dentro dos limites de custo estatuídos na Lei nº 8.666 para dispensa de licitação. Daí, não é complicado dar um bom início aos empreendimentos municipais.
Em suma: informar para bem fazer.
*Aluizio de Barros Fagundes é presidente do Instituto de Engenharia e diretor-presidente da Infra Engenharia e Consultoria S/C Ltda.
Fonte: Padrão